Publico hoje um excelente texto da escritora e fã de ficção científica Lady Sybylla. Ela o publicou no seu blog, Momentum Saga.
Os fãs de ficção especulativa (ficção científica, fantasia e terror e todos os seus subgêneros) já ouviram várias vezes que suas leituras favoritas são "apenas escapismo". Não só isso, estamos também acostumadas a ver os grandes prêmios literários preterirem obras que se encaixam neste gênero para aquelas consideradas "literárias", que tenham mérito, ou então eles criam categorias de "entretenimento" para encaixar obras de FC, fantasia e horror (os outros são chatos, então?). Na academia não é muito diferente. Grupos de estudos se debruçam sobre obras literárias que fujam de qualquer ligação com as "ficções especulativas". A elite literária e acadêmica continua repetindo a questão do escapismo dessas obras. Enfim, a hipocrisia.
A ficção, toda ela, é por definição uma construção de eventos, lugares e indivíduos irreais e imaginados. Eles podem ser inspirados em eventos, lugares e indivíduos reais, mas nunca serão, fenomenologicamente reais. A mentira é a base e a premissa para a ficção, já dizia nossa saudosa Ursula K. Le Guin que dizia que a função do romancista é mentir. Se um trabalho de ficção conta uma história real, ele passa a ser de não ficção.
Todo e qualquer trabalho de ficção transporta aqueles que o leem para mundos que, apesar de parecerem com a realidade ou de terem semelhanças com a realidade, não são a própria realidade. Para que possamos mergulhar e usufruir do texto ficcional é preciso nos desconectar dos fenômenos reais e da contemporaneidade. É preciso suspender nossa descrença para viajar na ficção.
Quando uma leitora pega um livro como Dom Casmurro, existe um limite bem nítido entre a contemporaneidade da leitora e sua realidade com a realidade do texto. Bentinho nos conta suas histórias e desventuras, em um Rio de Janeiro do século XIX. Não importa que a cidade do Rio de Janeiro exista de fato. A cidade de Bentinho está longe de nossa realidade, de nossa contemporaneidade e também da realidade de críticos literários e acadêmicos. Ao mergulhar no livro que é baseado em uma cidade real, ela ainda está situada em um tempo e contexto específicos -- o século XIX. Estamos escapando de nossa realidade contemporânea, de nossa realidade fenomenológica e entrando em um universo ficcional criado por Machado de Assis.
Este escapismo de Dom Casmurro não é diferente do escapismo oferecido por Guerra do Velho, de John Scalzi. É uma realidade diferente da nossa, que sai da Terra e se passa no espaço e em outros planetas, em naves espaciais, mas que discute guerra, política e sociedade, além dos dilemas humanos. É um mundo totalmente ficcional, mas com as mesmas idiossincrasias de nossa realidade, com alienígenas e sobre-humanos atuando em situações familiares. De novo somos transportadas para uma realidade largamente diferente da nossa ao mergulharmos no texto, escapando de nossa contemporaneidade.
Quem tenha preconceito com a ficção especulativa ao ler um livro como esse do Scalzi vai ignorar os comentários tecidos pelo autor sobre guerra, política e sociedade, focando apenas nas naves estelares e nos planetas exóticos. Estes temas podem ser bem mais metaforizados na figura de alienígenas e situações extremas em um ambiente espacial, mas não significa que não estejam presentes.
Ou seja, não há nenhuma diferença entre transportar as leitoras para as ruas do Rio de Janeiro do século XIX ou para os planetas da União Colonial. Para nós no século XXI não há outra maneira de mergulhar nestes lugares sem a ficção. O Rio de Janeiro de Bentinho é tão ficcional para nós quando o planeta Phoenix, sede da União Colonial de Scalzi. Qualquer trabalho de ficção, por mais próximo da realidade que ele seja, não é real; são construtos da imaginação, são criações das mentes daqueles que as escrevem.
É aqui que chegamos à hipocrisia do escapismo e o que prejudica muito a ficção especulativa de ser reconhecida como alta literatura. Se um livro fala de um dilema político e social situado nas ruas de São Paulo dos anos 1990 ele é tido como alta literatura. Se o livro fala dos mesmos dilemas políticos e sociais, mas ele se passa em um planeta orbitando Próxima Centauri, é tido como "ficção de gênero" e jogado na gaveta da "literatura de entretenimento". Críticos e acadêmicos se aproximam de textos literários como Dom Casmurro ignorando seus elementos escapistas, mas não fazem o mesmo com um livro como A Mão Esquerda da Escuridão. Se o livro se passa em outro planeta, de repente não tem valor literário.
É óbvio que ficção especulativa pode ser lida apenas por seu escapismo. Mas esse escapismo é julgado como uma tola frivolidade por aqueles que não consideram a ficção especulativa como algo sério. Ao encarar o texto como apenas entretenimento, eles estão perdendo as grandes discussões do nosso mundo envelopados em raças alienígenas, monstros, planetas e universos paralelos. Uma história é uma série de eventos imaginados intercalados de maneira a evocar o prazer da leitura, do entretenimento, da reflexão. Não importa se é pelas ruas de São Paulo ou à bordo de uma nave espacial.
Usar apenas o escapismo para criticar a ficção especulativa é ser reducionista e elitista, já que qualquer trabalho ficcional é escapista por definição e natureza. Se críticos e acadêmicos dessem a atenção necessária a esses textos como dão para ficções literárias, descobririam que o mundo fantástico tem muito mais a oferecer do que apenas fadas, duendes e alienígenas. Todos os trabalhos ficcionais são escapismo e se forem tratados como tal, talvez o preconceito com esse tipo de literatura diminuísse e, quem sabe, começasse a ser tratado com o mesmo respeito com que outros gêneros são.
5 comentários:
postagem fantástica. Parabéns Lady Sybylla e obrigada Lola. O escapismo é excelente para nos fazer afastar um pouco deste mundo, mas não significa necessariamente alienação completa. É possível transmitir muitas lições pertinentes para nosso mundo. Abraços e boa semana!
O mesmo acontece com livros de cenários de RPG, muitos trazem um rica e enorme quantidade de detalhes, tanto culturais, políticos e geopolítica, alguns são tão detalhados nesses aspectos, que chegam a ter livros inteiros dedicados a esses temas, como nos casos de Reinos de Ferro, e o brasileiro Tormenta.
Realmente, já passa da hora de esses critérios serem reavaliados. Penso que há um descuido (talvez uma má vontade) com relação ao gênero. Lembrando-me agora do Nobel de Literatura que foi dado ao cantor-compositor Bob Dylan, me ocorreu que os 'especialistas' sabem prestigiar uma obra e um autor quando querem fazer isso.
Infelizmente o preconceito tá tão entranhado na humanidade que aparece em todo produto humano. Júlia Lopes de Almeida mesmo, uma das idealizadoras e cofundadoras da Academia Brasileira de Letras, não pôde entrar na ABL como imortal por ser mulher. Entrou o marido dela, Filinto de Almeda, cujo conjunto da obra quem estuda literatura diz ser menos importante que o de Júlia. Mas como ele tinha pênis, entrou. Só em 1977, 80 anos depois de criada a ABL, é que foi admitida a 1a mulher, Rachel de Queiroz. A literatura de ficção científica só vai ser considerada alta literatura com a benção do mundo acadêmico. Certamente já vem sendo estudada nas universidades. Nos cursos de Letras talvez até já tenha alguma cadeira sobre o assunto. Vai demorar, mas as academias vão dar "a benção". Hoje em dia as obras de Tolkien (Senhor dos Anéis) e C S Lewis (Crônicas de Nárnia) são consideradas alta literatura, acho eu, que infelizmente não sou estudioso aprofundado de literatura e crítica literária (é muito pouco tempo livre pra muita coisa pra ler...). Só sei que Clarice Lispector hoje é considerada o maior escritor brasileiro do século XX (assim mesmo no masculino, pois ela é tida como a maior entre homens e mulheres literatos, e não apenas a melhor entre as escritoras), e não chegou a ser admitida como imortal na ABL. Muitas vezes o reconhecimento do valor literário de um escritor só vem (muito) tempo depois que ele/a morreu. C'est la vie, por mais irônico que seja. De Clarice sugiro a leitura de um conto chamado Viagem a Petrópolis. Me arrepiei todo quando soube e me arrepio de novo quando me lembro que Clarice escreveu esse conto quando estava com 14 anos de idade. Conta a história de Mocinha, Margarida o nome de batismo dela. Uma senhoria sem lugar no mundo (estrangeira como Macabéia. E também nordestina...). Meio sem lugar até em si mesma: a memória dela era um vaga-lume, alternando luz e escuridão. Só de vez a luz vinha e ela recordava trechos do passado. O coração da gente vai sendo espremido até sair sumo pelos olhos à medida que a leitura avança. Mas a história tem um final feliz. Pelo menos assim me pareceu. Acho que é fácil encontrar Viagem a Petrópolis no Google. Publicado está em A Legião Estrangeira. A Legião Estrangeira também é um conto muito bom. O crime do professor de matemática também. Mas aí já é em outro livro, Laços de Família.
De vez em quando. Faltou. Meu vaga-lume apagou enquanto escrevia.
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