Cheguei à faculdade na sexta de manhã, um pouco atrasada, e encontrei todas as minhas colegas em pé, num círculo, em grande alvoroço. E assim que entrei, todas olharam pra mim e se calaram. Eu pensei: “Ish... Aí tem!”. Mas não conseguia imaginar o que poderia ser. Acontece que naquele dia o jornal tinha publicado uma carta revoltada da turma de Pedagogia da Univille. Lembro pouco do teor da carta, só que ela levava a minha crônica muito, muito a sério. Implicava com dois termos, “pestinhas” e “cultura inútil”. Dizia que eu não tinha nada a ver com o curso. Que elas sim eram estudantes sérias. E aproveitava pra cutucar a ACE. Que eu saiba, existiam apenas duas faculdades de Pedagogia em Joinville na ocasião. Ambas pagas. Eu comecei na Univille, cursei um ano lá (na realidade, apenas três disciplinas, porque consegui ser dispensada das outras – quem disse que o curso de Propaganda de doze anos atrás não havia servido pra nada?), e notei que, se eu me transferisse pra ACE, conseguiria me formar um semestre antes. Fiz os cálculos e dava uma economia de 4 mil reais. Então me transferi, sem dor na consciência. O nível dos dois cursos era muito parecido, e lamento dizer, não muito bom. Mas lá estava uma carta da turma inteira da Univille (elas não se mobilizavam tanto pra pedir paz na Terra) protestando contra uma inocente crônica minha. E era essa carta que minhas colegas da ACE estavam lendo na sexta, quando cheguei atrasada.
A professora mandou ler a carta em voz alta, e a aluna que tinha o jornal a leu. Leu a crônica também, e confesso que não é legal ver um texto que você escreveu ironicamente, com humor, ser lido com voz de enterro. A professora manifestou seu desapontamento com a crônica. Disse que jamais poderia esperar uma coisa assim vinda de mim, e admitiu, com voz embaçada, que quando leu o texto, no dia anterior, até chorou. Eu pensei: devo estar sendo castigada por todos os meus pecados. Fui chamada à diretoria da faculdade, enquanto minhas colegas redigiam uma carta pro jornal protestando, elas também, contra a minha crônica.
Lá na diretoria, quiseram me intimidar. Disseram que a crônica fazia muito mal à imagem do curso. Expliquei que em nenhum momento eu me pus como porta-voz do curso, e que estava falando apenas em meu nome, o que tava bem claro no texto. Disseram que da próxima vez me expulsariam da faculdade. Perguntei se eles já tinham ouvido falar em liberdade de expressão. Disseram que eu estava terminantemente proibida de publicar qualquer palavra relacionada ao meu estágio. Perguntei se eles estavam me censurando assim, na cara dura. Disseram que sim.
Fiquei bem revoltada. Escrevi e mandei pro jornal duas crônicas relatando o bafão. A primeira foi esta (repare que deve ter sido pouco depois dos atentados de 11 de Setembro):
MEREÇO A PENA DE MORTE
Olá, esta é a pária da sociedade falando. Uma crônica que escrevi sobre o meu estágio causou grande comoção. Ainda não entendi o porquê, já que trata-se de um textículo pessoal, inocente e leve. Opa, “textículo” pode?! Agora me acusarão também de usar linguagem chula. Parece que eu fui a primeira criatura na história da humanidade a: 1) referir-se às crianças como “pestinhas” (um termo que pode até ser visto como carinhoso); 2) cursar uma faculdade sem o objetivo de seguir a profissão; e 3) dar graças aos céus que o curso esteja perto do fim. É óbvio e irrefutável que jamais qualquer estudante, de qualquer cadeira, tenha iniciado uma contagem regressiva para receber seu diploma.
Por causa destas observações inéditas, quase fui linchada em praça pública. Seguiram-se cartas de protesto e reuniões intermináveis, e, apesar de eu não haver presenciado crises de choro, imagino que elas tenham ocorrido. Por pouco não queimaram meu artigo e me jogaram junto na fogueira. Me senti numa inquisição de dar inveja a Torquemada. Podem me chamar de Lola, a Bin Laden de Joinville.
Talvez não devesse publicar isso, pois trata-se de outra revelação surpreendente, mas há pessoas que não são muito afeitas à leitura. Como não lêem, têm dificuldades em compreender ironias. Levam um texto sarcástico ao pé da letra. Tudo na vida é sisudez pra quem interpreta humor de forma literal.
E, oh, Santo Ofício, o que eu quis dizer com “cultura inútil”? Pra ilustrar, vou citar uma piada contada por gente mais competente que eu. Lembram do TV Pirata? Havia um esquete fantástico, do qual nunca me esqueço. Uma família calmamente assiste à TV, na sala. De repente, um grupo de terroristas invade a casa, aponta uma metralhadora pro pai e pergunta: “Rápido! Quais são os afluentes da margem esquerda do Rio Amazonas?” O pai responde corretamente, os terroristas vão embora, e ele suspira: “Ufa! Sabia que um dia isso ainda ia ser útil!” É, sou mesmo uma herege por rir destas blasfêmias.
Só que a editora do jornal se confundiu e publicou a segunda (e última) crônica antes. Esta aqui:
RECEITA DE BISCOITO
Sabe o que os jornais faziam na ditadura militar, quando seus artigos eram censurados? Publicavam longas receitas culinárias ou poemas de Camões, e os leitores logo reparavam que algo estava errado. Nestes tempos bicudos de hoje que, infelizmente, não são tão democráticos quanto parecem, lá vou eu dar uma receita. Outras crônicas deveriam estar neste espaço, mas não estão, e não por causa d’A Notícia, que está sendo uma mãe pra mim. Você entende.
Não sou nenhuma maravilha na cozinha. Na realidade, nunca tinha feito nada antes de vir pra Joinville. Só uma vez, na escola (uó, uó, patrulhamento em alerta!), quando tinha 14 anos (ufa, respire aliviado!), tentei preparar uma torta de café. Ninguém me avisou que o café da receita era em pó, não líquido. Só uma corajosa menina aceitou provar um pedaço, e ela passou o resto do dia na enfermaria. Meus outros colegas usaram minha torta para fins mais nobres, como jogar futebol com ela. Ela era borrachuda e pulava uma beleza. É tudo verdade, como diria o Orson Welles.
Após uma experiência traumática dessas, o correto seria nunca mais chegar perto de um fogão. Mas eu sou teimosa, e descobri como se fazem deliciosos biscoitos com pedacinhos de chocolate. Certo, talvez não seja uma das grandes invenções do século, é provável que nem invenção seja, mas é fácil. Qualquer um pode fazer. Até eu. Pegue ½ xícara de margarina, ½ xícara de açúcar, ¼ de xícara de açúcar mascavo, um ovo, um tiquinho de baunilha, de fermento e de sal, e misture tudo. Acrescente 1 xícara de farinha de trigo e 100 gramas de chocolate amargo picado. Se quiser, ponha nozes. Sempre jogo um gostinho de licor pra dar aquele tchan a mais. É interessante, neste estágio (oh Deus! Palavra proibida!), provar a massa. Acredite: o negócio é muito bom cru. Depois de provar, geralmente sobra uma coisinha de nada pra levar ao forno. Com sorte, isto se transformará no biscoito sobrevivente. Coma-o logo, antes que surjam visitas inesperadas. Serve uma pessoa.
Tá, essa crônica não tinha nada de inocente, eu sei, mas seriamente, era tão escandalosa? Deu o maior chabu. O último capítulo vem aí.
Último capítulo aqui.
17 comentários:
Nossa Lola! Que pessoas sem senso de humor! Tem alguns assuntos tabus na sociedade, né? Não se fala mal de crianças nem de velhos nem de deficientes. E censurar alguém por causa de uma bobagem dessas! Não tinha nada a ver com o curso. As pessoas simplesmente não estão acostumadas a serem criticadas. E no caso da sua crônica, a tomaram como uma crítica pessoal e à profissão. Provavelmente são inseguras, e temem que alguém tenha dito em voz alta aquilo que todos pensam...
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As meninas da classe de Pedagogia... hum...
Será que elas estão em Orlando, terminando o doutorado, num convênio com a Tia Augusta Turismo???
Ana Maria, tem que untar a forma?
O engraçado é que essas coisas acontecem com mais frequencia do que se imagina, não é?... Me lembrei de um episódio que ocorreu numa revista eletrônica matinal que costumava passar na bandeirantes muito tempo atrás, havia um psiquiatra que dava resposta para coisas importantes, inclusive sexuais, e acho que o retiraram do programa quando ele começou a falar de sexualidade infantil...coisas que a sociedade sabe muito bem que não existe. Afinal esses psiquiatras não sabem de nada mesmo, e acham que podem falar esses disparates na tv.
Quem nunca ouviu falar, ou fez,troca-troca, ou brincou de médico ou mexeu na passarinha da priminha.
O chocante é ver que as pessoas levam a peito coisas que para elas nem significam nada!
E dica importante lola, se te arrastarem para a fogueira, lebre-se de esconder sob a saia dezenas de dinamites.
Uma dúvida me persegue: por que pedagogia?
É, Leo, eu me lembro de ter conversado com amigas professoras naquela época, professoras da sétima série pra cima, e elas diziam que as professoras das séries iniciais não têm senso de humor. É uma generalização, claro, mas minhas colegas de Pedagogia me passaram um pouco essa impressão. Insisto que, na minha crônica "Estágio Sabor Abacaxi", não critiquei a profissão de ninguém. O que critiquei foi a MINHA falta de entrosamento com a profissão. Tem uma diferença enorme, não tem?
Ricardinho, Vitor, vcs ficam brincando, mas o negócio foi sério... Amanhã publico a última parte.
Cavaca, eu me lembro do psiquiatra! É, falar de sexualidade infantil é um tabu enorme. Quase lincharam o Freud quando ele veio com o papo de complexo de Édipo, de masturbação infantil... Aliás, continuam linchando-o. Ontem vi a propaganda de um livro chamado "Os Dez Livros Mais Prejudiciais na História da Humanidade", ou coisa assim, escrito por um conservador americano. O Manifesto Comunista é o número 1, óbvio, mas ele também joga na fogueira Darwin, Freud, Thoureau... Ele inclui o Hitler lá pela décima colocação, mas sabe quando dá a impressão que é só por obrigação, e que Marx, Freud, Darwin e Thoureau fizeram muito pior à humanidade que Hitler?
Ah, e obrigada pela dica sobre o dinamite, mas faz um tempão que não uso saia.
Li, por que Pedagogia? Boa pergunta. Bom, eu precisava de um diploma antes de fazer mestrado. E eu trabalhava das 2 às 10 como coordenadora acadêmica de uma escola de inglês, então tinha que ser um curso matutino. E não havia muita coisa. Acho que não havia Letras de manhã (abriram pouco depois). E eu tinha acabado de fazer pós-graduação (antes da graduação) em Inglês e não tava com muita vontade de fazer Letras. Hoje me arrependo, porque tá cheio de concurso que exige graduação na mesma área que vc fez mestrado e doutorado. Mas tenho quase certeza que, na época, não havia Letras de manhã. Eu queria Jornalismo também, mas só tinha curso à noite e custava o dobro. Acho que tinha Psicologia pela manhã. Anos antes eu havia me interessado brevemente por Psicologia, até ver que a grade curricular incluía Anatomia, Química, e um monte de estatística. Joinville é a maior cidade de SC, mas não tem muitas opções. E faculdade pública, só pros cursos de exatas. Só agora vão abrir um ramo da Federal lá. A faculdade de Pedagogia era (e é) a única possível, financeiramente, pra muitas mulheres de classe média baixa.
Nossa, acho que nao vou conseguir entender como que essa sua cronica deu tanta confusao! Mas eh certo que o perigo de publicar coisas eh que nunca se sabe como a pessoa vai ler/interpretar da maneira que voce gostaria. Mas queria saber o que saber a populacao dos paises tem de util mesmo.. haha.. talvez elas ficaram revoltadas porque se esses detalhezinhos forem inuteis, la se vai a profissao delas neh. hehe que mal.. :)
Eu entendi o porquê de todo o falatório, quer dizer, eu entendi o que elas disseram, mas ainda não entendi o motivo de eles acharem tudo isso.
Sabe que esse negócio de censura é extremamente freqüente né? Eu lembro que até sair do colegial eu não podia falar mal de um professor, mesmo que tivesse toda a razão do mundo e milhões de provas contra, sempre era chamada na coordenação e tinha a opinião completamente oprimida.
Isso que dá viver nessa democracia fajuta.
Lola, deu pra notar que o negócio foi sério. Eu já passei por situações parecidas, mas de alcances menores, claro, nunca escrevi num jornal. As pessoas me acham calado, mas quando eu abro a boca acho que nunca entendem bem o que eu falo.
Um exemplo: Quando eu era do segundo ano médio, eu era da turma C, e a turma A era conhecida por ser a "turma da pesada". Como eu era da comissão de formatura, tinha contato maior com os representantes da turma A. Um dia eu havia ouvido um comentário de que na turma A só havia "putas" e "marginais", e eu comentei isso com a comissão numa reunião. Todo mundo riu. No dia seguinte os alunos da turma A colocaram uma placa na frente da sala escrito "Puteiro da Febem". Estavam revoltados com os comentários. E adivinha quem levou a culpa pela autoria?
Lógico que a minha história é diferente. Houve de fato um desrespeito, que no seu texto eles mal interpretaram e no meu comentário a autoria da ofensa foi mal interpretada.
hahaha excelentes suas crônicas! as duas. senso de humor fino é pra poucos ;)
Andie, tem razao, nao tem como a gente saber como um texto nosso sera interpretado. Dez pessoas podem interpreta-lo de dez formas diferentes. Mas quando vem uma interpretacao coletiva, forcada (tipo: o grupo todo "analisando" o texto junto), ai eh que nao da mesmo pra ter diversidade de interpretacoes. Fica uma so, e nao era a que eu tinha em mente! Agora, nao pense que minhas colegas pedagogas sabem a populacao dos paises. Eu ate acho importante saber, nao acho TAO cultura inutil saber, pra gente ter nocao de que faz parte de um mundo, que nao eh so aquele bairro, aquela cidade, aquele estado, aquele pais. Tem um mundo inteiro, e os povos sao diferentes, mas a gente precisa aprender a conviver. Sera que se os americanos, por exemplo, soubessem que sao apenas a 3a maior populacao mundial, e o 4o maior pais em tamanho (se contar o Alasca!), eles se achariam os maiorais do universo?
Eh, Nita, numa escola a gente ve bem como democracia e liberdade de expressao sao conceitos muito relativos. Alias, numa familia a gente tambem ve isso. "Cala a boca! Eu sou seu pai/sua mae, eu eh que mando". Quantas vezes a gente ouve isso? Eu tenho um pouco de dificuldade pra entender como democracia pode existir em instituicoes onde a hierarquia continua sendo a coisa mais importante. Porque sempre vai haver conflito entre "Eu eh quem mando aqui!" e "Posso falar?".
Vitor querido, sua comparacao nao foi feliz. Se eu houvesse publicado no jornal que em curso de Pedagogia so tem putas e marginais, ou mesmo termos menos ofensivos mas igualmente preconceituosos, como dizer que aluna de pedagogia so ta la porque nao vai conseguir nenhum outro emprego fora ser professora, elas teriam toda a razao pra ficar revoltadissimas comigo. Se eu tivesse escrito que as alunas da faculdade X de Pedagogia eram "da pesada", se comparadas com a turma Y, idem. Mas eu nao falei mal delas. Nao falei mal do curso em si. Nem falei muito mal do estagio. Falei mal de mim! (mais de como sou um desastre em descascar abacaxi do que qualquer outra coisa).
No seu caso especifico, nao sei... Parece ser um caso tipico de "mate o mensageiro" (eh assim que se diz em portugues?). Ou culpe o mensageiro? Vc transmitiu um comentario que ouviu. Mas era mesmo necessario transmitir? Eu pergunto porque sou campea em transmitir coisas que ninguem quer ouvir!
Lu, obrigada. Vc vai ver no proximo (e ultimo) capitulo amanha que essas cronicas nao foram exatamente muito bem aceitas...
Lola, além de falta de humor do povo faltou bem noção também né? E que postura de censura mais idiota essa! Agora um pecado isso que vc tá fazendo de contar em prestações, viu? Porque eu fiquei mega curiosa pra saber a história toda. Beijos
Nalu, sei que é chato dividir a história em 3 capítulos. Quando a escrevi, semana retrasada,escrevi um texto só. Mas ficou tão longo (vc viu o tamanho dos posts?!) que tive de dividi-lo em 3. Primeiro porque é longo demais pro leitor ler - eu já devo ter os maiores posts da blogosfera, suponho -, e depois que, mesmo que eu quisesse, o Blogger não aceita textos tão compridos. Não sei como é com vcs, mas comigo, se o Blogger já muda TODOS os meus posts (fonte, espaçamento, tamanho da letra etc), inclusive os mais curtos, ele fica possesso com textos muito longos. Aí ele separa até as letras das palavras, se recusa a colocar fotos... Muito estranho, o meu HAL.
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