quinta-feira, 30 de julho de 2020

HOMENAGEM ÀS MULHERES É PUNIR AGRESSORES

Ontem publiquei um post sobre a iniciativa destemida da tenente-coronel Camila Paiva, do Corpo de Bombeiros de Alagoas, que começou a campanha #SomosTodasMarias, em que várias mulheres contam o machismo que enfrentam nos quartéis. 
Duas semanas atrás eu já havia publicado uma entrevista com uma mulher da segurança pública do Ceará. 
Hoje deixo aqui o relato de uma moça que trabalha na segurança pública do Acre, e que ficou indignada ao ver que uma corporação militar homenageou as mulheres, colocando uma imagem das bombeiras, em que junto aparece um sub-comandante acusado de assédio sexual e violência doméstica.
A ex-esposa dele moveu 15 processos contra ele nos últimos 3 anos. Em abril, ele foi preso em Rondônia, por quebrar uma medida protetiva que o proibia de se aproximar da ex. Foi condenado a um ano e 20 dias por violência contra a mulher, mas até agora não foi punido pelo Corpo de Bombeiros Militares do Acre. Não só não foi punido, mas sua imagem aparece numa homenagem às mulheres! 
Não posso deixar de registrar que hoje li duas notícias bastante relacionadas. Uma é sobre a técnica de futebol feminino do Rio Branco, Rose Costa, que corajosamente se demitiu em protesto à contratação do goleiro Bruno, um feminicida condenado. E a outra é que, numa palestra de retreinamento para 70 mil policiais militares em SP, um major disse que a PM comete abusos "há 188 anos e sempre vai fazer. Você, policial, tem que ficar atento porque sempre terá alguém filmando". Ou seja: o problema não são os abusos, são as filmagens desses abusos. 
É parecido com quem não vê nada de errado com os assédios cometidos contra as mulheres na segurança pública, mas ataca as mensageiras. Leiam o relato:

Nos últimos dias a internet, mais precisamente o Instagram, está estranhamente surpresa ao descobrir que mulheres não são bem vindas no militarismo, que sofrem machismo dentro dos quartéis e que alguns homens acham que deveríamos estar lá apenas para servi-los sexualmente.
A narrativa fantasiosa de que militar é um humano superior atrapalha na desconstrução desse cenário hostil para mulheres porque há o estigma de que o homem empático que daria a vida pelo próximo seria incapaz de tratar mulheres com desrespeito, de diminuir, silenciar, ridicularizar. Essa estrutura de silenciamento não começa no plantão, começou quando foi preciso obrigar as corporações a aceitar mulheres por força da lei, uma obrigação de 10% das vagas que geralmente é seguida à risca, nem uma a mais.
Em julho de 2018 um jornal acreano noticiou uma acusação a um coronel do CBMAC. O coronel havia espancado sua ex-companheira grávida e a agressão resultou em um abortamento. O coronel estava prestes a assumir o subcomando da corporação e nós decidimos que isso não deveria acontecer, que seria um desrespeito com as mulheres da corporação. Uma parte das mulheres comprou o discurso da "ex louca que estaria destruindo a vida do pobre homem", a outra parte resolveu lutar.
Ao levantar a nossa voz fomos abafadas por ameaças sutis, aquelas que não se tem coragem para fazer abertamente mas que deixam bem claro que se quiser fazer, pode. Algumas vindas de terceiros em forma de conselho. Continuamos firmes e o coronel não assumiu o subcomando. Porém, foi promovido ao último posto em maio de 2019. A vítima continuou sendo ameaçada, perseguida e agredida mesmo com várias medidas protetivas. O coronel nunca foi punido, e as mulheres pararam de se indispor com o comando por medo das retaliações.
A nós, mulheres, restou a indignação de ver uma corporação que deveria proteger as pessoas vulneráveis protegendo um homem que é capaz de manipular, agredir, ferir, na certeza da impunidade, porque sabe exatamente como o sistema funciona e que será protegido por ele. Tanto que há contra esse mesmo homem uma grave acusação de assédio sexual em outro estado, que também continua impune.
Dói muito ver que nossa missão, nossa farda, foi usada para cobrir o sangue de uma mulher que não teve paz nem quando mudou de cidade para fugir do agressor. 
Dói ver cada movimento feito para proteger um homem violento. Recentemente o instagram oficial do CBMAC usou uma foto antiga das mulheres reunidas em que o coronel citado aqui aparece sorrindo ao nosso lado, um posicionamento raso e hipócrita, um pronunciamento apenas para gerar engajamento, usando nossa imagem para fingir que se importa com nossa luta.
Escrevo esse texto na esperança de que as atuais discussões tirem de baixo do tapete tantas histórias de dor e sofrimento que as corporações militares escondem para não manchar a imagem. Que tantas mulheres que sofreram assédio moral e sexual por parte de seus companheiros e superiores se sintam abraçadas nesse momento e percebam que esta é a hora de fortalecer essa discussão e tornar os quartéis menos tóxicos para as mulheres.

6 comentários:

Caetano disse...

Saudações Lola!
Eu gostaria de te dar uma sugestão de pauta: eu gostaria que você escrevesse um texto dizendo o que pensa a respeito da monarquia. O que pensa da ideia de temos a monarquia de volta ao Brasil.

Anônimo disse...

Ótimo texto. Trazer à tona o assédio que as militares sofrem é de grande importância, pois a maioria das pessoas nem sabe sobre isso. Quando algo não é dito, pode soar como se não existisse

Anônimo disse...

Nao tenho nada contra a monarquia, mas os possiveis reis ou monarcas sao tudo de ruim, Ja parou pra pensar?

avasconsil disse...

Misturada à questão do machismo tem outro ponto negativo da cultura brasileira, que é o classismo representado pelo "manda quem pode obedece quem tem juízo". Trabalho no ministério público estadual e faz alguns anos, uma servidora estava sendo assediada pelo superior hierárquico dela, um promotor de justiça. Nada aconteceu com ele. E a razão da impunidade tem mais a ver com a diferença entre os cargos, e com o fato de a servidora não ser alguém considerado importante, ou não ter alguém importante do lado dela, tipo um papai, mamãe, vovô ou titio da elite do serviço público ou do mundo político, do que com a diferença de gênero. Eu também fui assediado por um promotor de justiça, casado, com 02 filhas e que seguiu a heteronormatividade de fachada pra não ser prejudicado na carreira. O assédio foi muito rápido e só aconteceu uma vez (ele pegou nas minhas coxas e segurou nas minhas partes pudendas). Como na época ele era o braço direito da procuradora geral de justiça, e eu não tinha como provar a ocorrência, deixei pra lá. Mas descobri que ele já tinha assediado guardas, motoristas e outros servidores, todos hierarquicamente inferiores e sem um QI poderoso que fizesse a diferença. Um servidor chegou a conseguir a abertura de uma sindicância contra ele na corregedoria, mas não deu em nada. O procedimento correu sob sigilo e no fim foi arquivado por insuficiência de provas. Recentemente esse homem foi promovido de promotor a procurador de justiça. Ainda não assumiu o cargo. Mas conseguiu o que queria. Posou de hetero e não foi prejudicado na carreira. Na surdina assediou outros homens, mas ficou impune porque só assediou os abaixo dele na hierarquia. Um subalterno dificilmente assediaria uma mulher. E uma coisa é um soldadinho bater na esposa e outra bem diferente alguém de coturno maior fazê-lo. Mas sim, somos uma sociedade machista e misógina. Mas infelizmente também recheada de outros preconceitos.

Carla Santos disse...

Na minha opinião, o maior problema do nosso país é a impunidade. Precisamos de cada vez mais forças para buscar nossos direitos, mesmo que individualmente. São portais como esse aqui que nos dão forças para lutar. Parabéns pelo seu trabalho! Gosto de motivar mulheres, crianças e até homens a procurar formas de se livrar do assédio, seja ele qual for.

avasconsil disse...

Acho que os maiores problemas do Brasil são desunião e paixões. Somos um povo heterogêneo e fragmentado. O país do coxinha, do mortadela, dos adoradores do Lula e do PT, e dos odiadores do Lula e do PT. Ou dos odiadores ou odiadores do Bozo... A elite do país, talvez por ser numericamente pequena, está unida e sabe com clareza o que quer. Além da organização e da união, tem dinheiro pra comprar votos de parlamentares, iniciativas de leis e votos ou sanções dos chefes do poder executivo, em todas as esferas de governo. Isso quando a própria elite não está diretamente presente no legislativo ou no executivo, como é o caso de um Tasso Jereissati no senado ou de um João Doria no governo de SP. O segredo do desenvolvimento do Brasil é o da superação dessa fragmentação e desunião, motivada por paixões. Quando a maioria conseguir deixar as paixões de lado, e se unir em prol dos seus bolsos e interesses, essa maioria terá a força pra pressionar parlamentares e chefes do executivo pra promoverem as mudanças na Constituição e nas leis que tornarão o Brasil um lugar melhor pra viver. Quando isso vai acontecer? Não sei. Talvez nunca. E enquanto não conseguirmos essa proeza, o Brasil vai continuar sendo um paraíso fiscal dos ricos e um inferno pra quem só tem sua força de trabalho como material de troca pra sua subsistência. Os ricos ganhando dinheiro aqui e morando em Portugal ou em qualquer outro lugar onde a qualidade de vida seja melhor que a nossa, e nós aqui nesse inferno, xingando uns aos outros feito patetas, desunidos exatamente como o biquinho da pirâmide quer, bem sucedida desde a redemocratização do país e mesmo antes.