quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

LIVROS QUE AMAMOS DEVEM TRAZER A BIBLIODIVERSIDADE

Publico hoje com muito orgulho o guest post de uma leitora antiga aqui do blog, a Denise. Denise Gomes é advogada, mora em Sydney, Austrália, e tem um podcast super popular sobre contação de histórias para crianças. Não deixe de seguir sua página no Instagram, ainda mais se você é professora, mãe, pai, avó, tia... Enfim, este post espetacular é pra todo mundo que convive com crianças!

Desde que me tornei mãe, há sete anos, ando cada vez mais envolvida com a literatura infantil. No início de 2019 criei um perfil no Instagram para falar sobre literatura infantil e sobre os livros que leio com meus filhos. Crio meus filhos (um menino e uma menina) para que eles tenham respeito para com todas as pessoas, e também para que sejam livres para vestir/ usar/ ser o que quiserem, por isso diversidade sempre foi uma constante na nossa biblioteca.

Como moramos na Austrália e eu queria que meus filhos mantivessem o português como língua de herança, comecei a apresentar podcasts infantis em português pra eles. Na época não  havia muitas opções, por isso no meio de 2019 criei meu próprio podcast, o “Livros que amamos - histórias para crianças”. Era pra ser algo despretensioso, mas em 2020 o podcast estourou e passou a figurar na lista dos top 5 mais ouvidos na categoria família (onde permanece até hoje), chegando inclusive a lista dos top 200 da Apple podcast pra todas as categorias!

Eu sempre falei de diversidade tanto no meu perfil do Instagram quanto no podcast, porque acho muito importante darmos as crianças uma educação antirracista, anti-homofóbica e mostrarmos a diversidade que existe no mundo. Acredito muito na máxima de que livros são espelhos, mas também são janelas (conceito criado por Emily Style em 1988). Os livros são espelhos porque refletem a própria cultura dos leitores e os ajudam a construir sua identidade (daí a necessidade de representatividade nos livros). Mas são também janelas por mostrar uma visão da experiência de outra pessoa.

Nunca é cedo demais para se falar com as crianças sobre raça e minorias! Existem estudos bem interessantes sobre racismo que demonstram que bebês notam diferenças físicas, incluindo cor de pele, antes dos 6 meses de idade. E ainda que, ao chegarem aos 5 anos de idade, as crianças já mostram sinais de preconceito racial. Assim, “Ignorar ou evitar o assunto não é proteger as crianças, mas sim deixá-las expostas ao preconceito que existe onde quer que vivamos”.

Eu faço sempre posts no Instagram sobre bibliodiversidade, e também tenho esse foco no podcast. Procuro escolher livros que sejam boa literatura e ao mesmo tempo tragam essa diversidade. Então já gravei livros na temática indígena, com protagonismo negro, biografias diversas que trazem empoderamento feminino, etc. O público do podcast vai de 1-12 anos, então alterno livros mais curtos pros menorzinhos e livros um pouco mais longos pros maiores (normalmente entre 5-20 minutos cada episódio).

No fim de outubro, fiz uma sequência de posts no meu Instagram sobre bibliodiversidade com foco na temática LGBTQIA+. Existem poucas opções de livros infantis nessa temática no Brasil, então fiz um apanhado do que eu achei no cenário nacional, mas também dos nossos favoritos publicados apenas em inglês (como a biografia do RuPaul), ou Love Around the World), só pra citar alguns dos livros favoritos dos meus filhos). Como sempre acontece quando faço posts sobre bibliodiversidade no meu perfil, perco seguidores. É incrível como falar de minorias incomoda tanta gente! O que pra mim só reforça a urgente necessidade de falarmos sobre diversidade, respeito e tolerância com as crianças!

Pausa para um adendo: quando meu filho tinha 4 anos, na creche que ele ia a professora levou o livro Heather has two mommies (Heather tem duas mães) para ler e debater com as crianças (a turma tinha entre 3-6 anos). Depois ela fez um relatório pros pais sobre o que as crianças acharam e falaram (não teve nenhuma estranheza ou comentário homofóbico por parte das crianças). Os pais amaram! Eu fui falar com a professora e ela estava super feliz de estar recebendo um retorno tão positivo dos pais. 

Aproveitei e levei outro livro que temos – Julian is a mermaid (lançado recentemente no Brasil -- Julian é uma sereia -- para que a professora debatesse com as crianças também sobre gênero. Aqui na Austrália isso é um debate normalizado (apesar de óbvio que ainda existe muito preconceito), e meu sonho seria ver todas as escolas no Brasil também debatendo diversidade.

Enfim, seguindo com meu intuito de diversificar as histórias do podcast, publiquei no início de novembro um episódio com um livro infantil sobre amizade entre meninos (aborda lindamente masculinidade tóxica, uma pérola!). Só que nesse livro um dos meninos cresce e se casa com outro homem (esse é o livro, lançado apenas em inglês). Tem outros detalhes lindos na história, mas o casamento gay em si bastou pra eu sofrer um ataque no Instagram. Perdi dezenas de seguidores, e isso em si não me abala, mas fiquei muito triste pensando em todas as pessoas que vivenciam esse ódio todos os dias -- como você, Lola!

Teve ainda muita gente que me mandou mensagem privada sem ataques mas dizendo que discordava de tratar sobre homofobia com os filhos porque eram religiosos, ou porque a criança era pequena, e ainda pedindo pra eu colocar um “alerta de conteúdo” no podcast (!?!?). Eu acho curioso como muitas pessoas são homofóbicas (ou racistas) mas defendem com unhas e dentes que não o são. Uma querida amiga fez uma excelente colocação: “homofobia é tratar uma pessoa diferente pela opção sexual dela. Aí a pessoa diz “tem que fazer alerta” para uma situação que deveria ser normal, mas o mesmo alerta não é necessário para  outras situações. E ao exigir tratamento diferenciado para algo que não deveria ser tratado diferente se está sendo homofóbico. Mas tenta dizer pra essa pessoa que ela foi homofóbica! O processo de negação das pessoas é forte, e assim a homofobia do dia a dia destilada em pequenas doses segue firme e forte.

Fiquei arrasada pensando em todos os meus amigos gays que sofrem ou já sofreram ataques. Em todas as crianças que tem dúvidas quanto a sua sexualidade/ gênero e precisam lutar contra esse mundo homofóbico em que vivemos, onde pessoas gays são “apagadas” e tem seu amor por outra pessoa do mesmo sexo visto como “tabu” que precisa ser “escondido” de crianças pequenas.

Recebi muito apoio também, muitas mães (e pais!) que me escreveram dizendo que amaram o episódio, a forma natural e delicada como o assunto foi tratado. A maioria das crianças sequer questionou os dois homens se casando (a homofobia está mesmo na cabeça dos adultos), mas foi uma oportunidade para muitas famílias abrirem um diálogo sobre o assunto e repensarem sua bibliodiversidade. 

Teve ainda uma seguidora (ouvinte do podcast com os filhos) que falou com o marido para ele aproveitar o alcance que ele tem no Twitter e no Instagram e falar sobre o ataque que eu recebi. Foi o suficiente pra eu receber uma avalanche de mensagens no Twitter e centenas de novos seguidores no Instagram. Fiquei feliz em ver o podcast chegando a mais famílias, e também em ver que o amor é poderoso! Acabei me inspirando pra entrar no Twitter e fiz meu primeiro tweet falando desse assunto.

Recebi mensagem também de uma editora brasileira de livros infantis, dizendo que meu trabalho a inspira a se posicionar nesse Brasil tenebroso. Por essas e outras que sigo na luta, Lola, inspirada por você e seu trabalho incansável por um mundo mais justo. Noutra semana publiquei mais um episódio antirracista, e em outra comecei uma série de episódios no podcast sobre liberdade religiosa (um passeio pelas quatro maiores religiões do mundo através de livros infantis encantadores). 

Esses dias li uma frase no perfil da Mariska Hargitay que me tocou bastante: “Você não pode forçar alguém a compreender uma mensagem que eles não estejam prontos para receber. Ainda assim, você nunca deve subestimar o poder de se plantar uma semente.”

10 comentários:

avasconsil disse...

Infelizmente essa coisa de "Casa Grande" e "Senzala" ainda tá muito presente no Brasil. Em Salvador, uma professora foi afastada por ter participado com os alunos de um projeto em que teria que indicar a obra de uma escritora negra. Ela indicou um livro da Conceição Evaristo. Mas parte dos alunos - já todos adolescentes, pelo que entendi - acharam certos trechos dos contos pesados demais. Uma linguagem muito chula, sabe, e uma realidade diferente demais da deles. Os pobres e as pobres criaturas de classe média ficaram horrorizadas com a vida dura de meninas pretas da periferia. Queriam uma história da Disney... Enfim, tanto auê aconteceu porque alunos e pais desejam cada um no seu quadrado. Preferem oficializar o apartheid e a proibição do aprendizado da empatia. Eles não são meninas pobres pretas, então qual a utilidade de aprender sobre a realidade delas, ainda que com a intermediação de um livro? Pra quê combater o preconceito, se não é sobre eles que o preconceito recai? O brasileiro é um dos povos mais pimenta no dos outros é refresco que existem no mundo... Mas felizmente nem tudo está perdido. Tem o trabalho de pessoas como a Denise Gomes, de quem ainda não tinha ouvido falar ainda. Vou ler a biografia do RuPaul. Acho-o tão inteligente. É preciso muita paciência e persistência com esse trabalho de cultivo da empatia, o antídoto do preconceito. É comum ele chegar bem mais exatamente às pessoas que não precisam tanto dele. Quem mais precisa, pra se tornar menos preconceituoso, comumente rejeita. Mas é como a chuva. Como o sol. Como os ventos. Acaba chegando também a quem não quer. As bolhas não são 100% isoladas. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2021/11/22/noticia-diversidade,1324744/livro-vetado-professora-e-afastada-por-indicar-obra-de-conceicao-evaristo.shtml

avasconsil disse...

Por falar em bibliodiversidade, um amigo compartilhou há pouco pelo WhatsApp foto dos livros que ele comprou recentemente. Só escritor homem... Já falei a ele que ele é machista. Mas ele nega. É gay como eu. Então não admite de jeito nenhum o machismo literário dele. Acho que na cabeça dele, por sofrer preconceito por ser gay e negro, ele não reproduz outros tipos de preconceito, como o machismo. Mas reproduz sim. A biblioteca dele é uma prova disso. Deve ter um Virginia Woolf lá perdido e olhe lá.

Denise disse...

"Diga-me o que lê e eu te direi quem és".

Todos os homens sao machistas, todas as pessoas brancas sao racistas, e todas os heteros sao homofobicos, em maior ou menor grau, por usufruirem dos privilegios inerentes ao grupo majoritario a que pertencem. Aconselho seu amigo a ler "Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça", da Reni Eddo-Lodge, e tracar um paralelo com o machismo. De quebra ele ainda vai estar lendo uma mulher e diversificando suas leituras.

titia disse...

É assim mesmo que se tem que começar, quando as crianças ainda não estão contaminadas pelas merdas da cabeça dos adultos. Como mostrou a pesquisa, crianças percebem as diferenças mas não as vêem como intrinsecamente negativas, são os adultos merdas que estragam tudo, que tiram a graça de sermos todos diferentes. Obrigada por esse lindo trabalho, Denise. é por causa de pessoas como você que tem chance do futuro ser melhor do que o presente.

Anônimo disse...

a) Lola cada vez mais amo seu blog.

b) Vc viu a deputada federal Samia Bonfim fez uma lei que permite que as vítimas de abuso sexual possam ter um prazo maior para denunciar seus algozes. Vamos colocar mais mulheres progressistas no congresso.

c) Amei o texto e um sopro de esperança diante destes tempos tenebrosos que vivemos no Brasil

Alan Alriga disse...

Meu Deus, como a escola pode ter chegado ao ponto de afastar uma professora por causa disso, se isso não for considerado censura, eu não sei o que é então.

Alan Alriga disse...

Esse texto me faz lembrar dos ataques que os homofóbicos fazem, sempre que criam algum personagem LGBT novo nas HQs, ou quando algum personagem que não tinha gênero definido por ser muito jovem (criança), mas depois descidem "colocar" qualquer gênero que não seja hétero, por mais que existem milhares de personagens héteros nas HQs de super heróis, sempre têm algum ataque homofóbico.

avasconsil disse...

Acho que perdi o comentário que estava escrevendo. Como ainda estou sem sono, vou escrever de novo. Eu tinha dito que muitas mulheres também são agentes do machismo. A Camille Paglia, por exemplo, é machista que só. Mas acho que ela é um homem trans. É a impressão que eu tenho quando vejo fotos dela e leio entrevistas com ela. Eu a acho tão irritante... A possibilidade de haver homens em corpo de mulher e mulher em corpo de homens (sem serem transexuais) torna mais complexa a discussão sobre os agentes do machismo. Eu mesmo por um triz não sou trans. Eu me sinto uma mulher desde meus 07 anos de idade. Não sou trans porque estou conformada com meu corpo masculino. É um avatar que me proporciona experiências interessantes, como não me preocupar com maquiagem. Com magreza. Com "looks" e acessórios. Com botox. Com parecer sempre jovem. Com o encontrar um vaso sanitário limpo pra sentar na hora do xixi - fazer em pé é bem mais fácil. Meu amigo foi criado por um homem bem tradicional. O padrasto dele era um juiz culto, de uma cultura adquirida numa época em que tinha pouca mulher no mundo dos clássicos. Pra esse meu amigo é importante conhecer os "clássicos ". Como eu me interessei por leitura numa produção independente, vou me interessando pelos livros sem ligar pra quem escreveu. Me interessou eu leio. E meu interesse é meio errático, vai simplesmente acontecendo. Em 2019 eu li a biografia da Clarice Lispector pelo Benjamin Moser. Me afeiçoei a Clarice, e comecei a ler obras dela. Acabei me interessando também pela Nádia Batella Gotlib, que estuda Clarice e a família Lispector há uns 40 amos. Mês passado vi um vídeo sobre Wuthering Heights, da Kate Bush, e foi só aí que vi que é sobre "O Morro dos Ventos Uivantes". Acabei pegando pra ler na estante (tenho há uns 10 anos aquela coleção de clássicos da Abril, da qual li poucos volumes...). Acabei ficando interessado nos outros livros das irmãs Brontë. E assim vou indo, um livro me levando a outro. Desde criança acho que a gente é um ímã das coisas que precisa aprender. Mesmo sem planejamento, sou um ímã de textos escritos por mulheres. Tenho Personas Sexuais, da Camille Paglia. Mas, como com ela aconteceu o inverso do que houve com a Clarice Lispector, até hoje não peguei esse livro pra ler (antes de começar a ler Clarice, desenvolvi simpatia por ela. Até mais que simpatia, uma afeição. Mas pela Camille tenho abuso. O machismo dela me deu um ranço danado de livro dela...).

avasconsil disse...

Lendo essas coisas que a Camille Paglia diz morro de pena do patriarcado. Como vocês mulheres conseguem ser tão ingratas?!

Você disse antes que homens e mulheres devem se aproximar. Como isso poderia ser feito?

Na minha opinião, o constante ataque aos homens pela ideologia retórica feminista tem de parar. Foi o homem que construiu este mundo com seus escritórios, empresas, organizações e permitiu que as mulheres fossem financeiramente autossuficientes pela primeira vez na história. Isso não só no passado. É também o homem que está constantemente fazendo o trabalho sujo que mantém esse mecanismo fantástico da moderna sociedade industrial e pós-industrial. Essa falta de gratidão ao homem é um veneno terrível no feminismo contemporâneo. A liberdade moderna das mulheres vem deste mundo que o homem criou. Então, para mim, a grande resposta é que o feminismo precisa parar de atacar o homem. Há homens que se comportaram mal, eu acho que eles são uma minoria. Eu sou uma feminista da equidade, eu quero que o mundo público seja estruturado de uma forma que permita às mulheres avançarem igual aos homens nos campos profissional e político. É sobre isso que o feminismo deveria tratar. O feminismo não deveria tentar mudar as pessoas em suas vidas privadas, foi aí que ele deu errado. Eu quero que esse limite seja estabelecido para que se torne racional de novo e seja respeitado novamente. Para isso, o feminismo não pode permitir que mulheres loucas, realmente neuróticas, se tornem o rosto do movimento. Isso está afastando as mulheres racionais modernas. O feminismo não pode ser um lugar para as mulheres que têm ódio ao homem e problema terríveis em suas vidas privadas. Movimentos políticos costumam atrair pessoas loucas e fanáticas e, a longo prazo, isso tende a ser uma praga. Isso realmente aconteceu na primeira onda do feminismo. As pessoas em geral tendem a se afastar dos movimentos quando esses atraem fanáticos.

https://arte.estadao.com.br/focas/capitu/materia/feminismo-nao-pode-ser-lugar-de-mulheres-com-odio-de-homem-diz-camille-paglia

Kasturba disse...

Amei!!! Vou seguir!!!!