Pedi para a escritora Irka Barrios redigir um post sobre seu livro Lauren, que foi finalista do Prêmio Jabuti 2020, na categoria Romance de Entretenimento. Ela também tem um conto premiado, "O coelho branco" (Concurso Brasil em Prosa, Amazon, 2015). Você pode encontrar Lauren pelo Instagram da autora ou pelo site da editora Caos & Letras.
As notícias sobre a atitude vergonhosa da justiça catarinense durante o julgamento do homem que estuprou a influencer Mariana Ferrer me abalaram por dias. E fizeram com que eu refletisse sobre os motivos que me levaram a escrever o romance Lauren.
Eu queria, num primeiro momento, contar uma história de terror que fosse possível (verossímil) no Brasil de 2019. Mas eu também pretendia explorar a época conflitante que é o desabrochar da sexualidade de uma menina com algumas características importantes: Lauren é membro de uma família de classe média, frequenta a escola pública e passa seu tempo livre na Internet. Sem muita dificuldade, todos nós lembramos e reconhecemos este período selvagem da vida que compreende a fase de autoafirmação no ambiente escolar. Especialmente para meninas que não se encaixam no padrão de beleza ditado pela mídia.
O terceiro elemento que, penso eu, deu a liga para que a história funcionasse foi a opção religiosa dos pais de Lauren. Hoje muitos lares vivem o mesmo roteiro: família desalinhada, pai ausente, mãe autoritária (ou o contrário: pai autoritário e mãe submissa), que buscam respostas e absolvição através de uma crença. O que eu não sabia, e descobri com o processo da escrita mais adiantado, é que o florescer da sexualidade de uma menina reprimida pode se transformar num autêntico filme de terror. Lauren se sente feia e desinteressante. Sua moeda de ouro são as lutas clandestinas, 'esporte' que instantaneamente eleva seu status entre os colegas. De repente ela é vista. Torna-se popular, mas mal consegue usufruir da nova condição. O triunfo dura pouco, afinal nada é suficiente para a geração vaidosa e triste que necessita da aprovação diária através de curtidas nas redes sociais.
E é neste vale de dúvidas e inseguranças que surge o pastor Lair, o mentor intelectual da comunidade. Homem de meia idade, sedutor, com inteligência suficiente para usar o demônio como álibi, Lair a elogia e bajula. Faz questão de afirmar que Lauren está se tornando uma moça bela, quase tão bela quanto a mãe. Para uma menina de 13 anos, o elogio de um homem tão inchado de pequenos poderes é um convite irresistível. A partir de então, Lauren é exposta a uma complexa cadeia de sofrimentos: ela quer ser desejada, mas sente culpa. Ela quer desejar mas não pode. É feio, é proibido, a mãe afirma. É coisa do demônio, o pastor argumenta.
Sem saber em quem se agarrar, Lauren apela para o fantasma de Inês, uma figura misteriosa que a cidade inteira rejeita. Inês não é um bom refúgio. Ela vive na mata, é adúltera, iniciada em rituais de bruxaria. A culpa que nos é impingida por 'provocar o demônio que vive dentro dos homens' é um dos temas que mais me interessou abordar no romance. Sempre houve algo de muito perverso em induzir esta confusão de sensações nas mulheres. Especialmente nas que estão ingressando no período em que deveriam ter conhecimento e segurança para determinar quem pode se aproximar e quem deve se manter afastado de seus corpos.
Quando iniciei minhas pesquisas relacionadas ao terror e ao Gótico, logo me interessei pela representatividade da personagem mulher nestas narrativas. Em geral, se somos boas, somos jovens, bonitas, virgens ou sem interesse em sexo. Personagens boas são criaturas ingênuas, prestes a serem ludibriados por alguém. Já as más são velhas e feias, invejosas e competitivas que, quando precisam obter vantagens ou enganar, se transformam em belas mocinhas. Mas algumas narrativas rompem este ciclo e é então que o assunto fica interessante.
O terror nada mais é que a expressão artística dos medos de uma sociedade. O Conde Drácula encheu cerca de 50 caixões com a terra da Romênia e empreendeu uma perigosa viagem de navio porque queria seduzir as mulheres e, assim, tomar a Inglaterra vitoriana, uma sociedade tão reprimida e casta que morria de medo de tudo o que era exótico e vindo do Oriente. Lucy Westenra, a primeira vítima (ou noiva?) do Drácula na Inglaterra não é uma personagem que nos diminui e, inclusive, pode ser considerada uma mulher com pensamentos de vanguarda para a época em que o romance foi publicado. No momento em que a história inicia, Lucy se vê em dúvida, precisa escolher um noivo entre três pretendentes e confessa (numa carta para Mina) o desejo de ficar com os três. Lucy não chega a se casar, antes disso ela sofre o ataque do vampiro e cai doente. A incompreensível doença deixa Lucy fraca, anêmica e, surpreendentemente, a transforma numa criatura ainda mais voluptuosa (tudo o que o homem vitoriano teme). E esta transformação é uma das chaves de leitura que gosto de utilizar, porque me leva a crer que o vampirismo surgiu para libertar as mulheres, para permitir que elas pudessem exercer sua sexualidade sem culpa, afinal uma morta-viva não precisa dar satisfação aos costumes da sociedade, correto?
Pelo mesmo motivo libertário, as narrativas de bruxaria também me interessam. Noto que, com a evolução do entendimento, cada vez mais as bruxas tendem a ser compreendidas como uma irmandade. A fuga para a floresta não representa mais banimento, mas liberdade e acolhida. Nesta nova visão, as mulheres seguem uma escolha as liberta, mesmo que a pecha de perseguição permaneça na trama.
Vivemos tempos ruins, muito difíceis, talvez os mais difíceis para muitas gerações. Gosto de dizer que pertenço ao grupo que ergue a bandeira em favor do uso da literatura, da música, das artes em geral e da cultura pop como meio de refletir sobre os nossos tempos. É, também, uma maneira inteligente de ampliar a discussão, levá-la até pessoas que não acessam determinadas artes.
Um exemplo muito claro do poder da arte foi a proliferação de bons filmes de horror no rico período do Expressionismo na Alemanha. A estética opressiva, os cenários angulosos, pontiagudos, as maquiagens pesadas, as interpretações teatrais, tudo serviu como uma alegoria para a fome e a falta de perspectivas que a população viveu após a Alemanha sofrer a derrota na Primeira Guerra Mundial. E (acreditam alguns teóricos) este sentimento de opressão e falta de esperança serviu como combustível para inflamar uma população que logo depois aclamou Hitler como seu líder. Segundo estes teóricos, a arte já apontava para um desfecho ruim e, quando a população percebeu, o autoritarismo havia se instalado.
Tais exemplos reforçam a certeza de que nós, mulheres, precisamos nos manter vigilantes. Todos os dias. Criar e nos manter vigilantes, criticar e nos manter vigilantes. A arte está aí como expressão e luta, em sintonia com os horrores de nossos tempos.
5 comentários:
Lendo esse post, lembrei do meu próprio desabrochar para a sexualidade. Sou exatamente filha de classe média, mãe muito autoritária, pai relativamente ausente (estava sempre em casa, era carinhoso mas não se envolvia na educação das filhas - minha mãe decidia tudo) e uma religiosidade exagerada. Não falávamos sobre sexo, nunca. Mas nas entrelinhas sempre ficou claro que aquilo era algo pecaminoso, sujo e feio, muito feio. Na minha ânsia de ser sempre a "filha perfeita", nunca pensei no assunto. Até que com 16 anos comecei a namorar. E depois de alguns meses de namoro, surgiu o tema sexo. Eu sentia vontade, mas ao mesmo tempo não me sentia preparada, pois me julgava muito nova. Além disso, era algo tremendamente sujo, lembra? Quis muito conversar sobre isso com a minha mãe, mas nunca tive coragem. E nem com minha irmã, nem com minhas amigas. Eu morria de vergonha só de pensar. E o namorado continuava insistindo. Procurei em algum lugar da minha religião (eu era espírita kardecista - hoje não sou mais) alguma mensagem clara falando que sexo antes do casamento é errado, pra justificar minha decisão de não fazer, e não achei nada. Por fim, por falta de argumento e insistência do namorado, iniciei minha vida sexual aos 16, sem estar realmente preparada.
Eu achei que depois da primeira vez, meu namorado iria ficar satisfeito e parar de insistir. Mas a verdade é que aí que ele insistia mais para a segunda, terceira, quarta, etc... ele sempre falava "você não é mais virgem, qual é o problema?, e eu sempre cedia, por falta de argumento. E me sentia cada vez mais suja. E comecei a mentir pros meus pais, quando dizia que ia a um lugar, mas na verdade ia transar. E comecei a associar sexo a algo cada vez mais errado... Era como se eu tivesse traindo meus pais.
Mesmo depois que eu saí da casa deles e fui pra faculdade, eles (principalmente minha mãe) continuava me controlando. Sábado a noite normalmente era (obviamente) o dia que eu podia passar a noite com meu namorado (esse já era outro), e coincidentemente minha mãe sempre me ligava sábado de noite... Eu sempre tinha que mentir quando ia dormir fora com meu namorado: ligava mais cedo fingindo que ia dormir cedo, ou dizia que ia estudar até tarde, ou desligava o celular e no dia seguinte dizia que acabou a bateria... Eu, que nunca gostei de mentiras, tinha que ficar inventando desculpas pra minha mãe me deixar em paz, pra poder usufruir da minha vida sexual saudável... e isso me trazia muita culpa. Novamente, o sentimento de culpa, de estar traindo meus pais, me assombrava toda vez que eu ia transar com meu namorado. E isso me seguiu por muito tempo.
Até hoje, já casada, eu sou travada sexualmente. Ainda tenho essa idéia de que sexo é algo sujo, errado... Só consigo me entregar e curtir depois de beber, e tive pouquíssimos orgasmos na minha vida.
E tenho certeza que isso tudo aconteceu pela forma como sexo sempre foi tratado na minha família de origem. Se eu tiver uma filha algum dia, pretendo ensiná-la de maneira totalmente oposta à que fui ensinada.
Muito importante teu depoimento, Kasturba. A intimidade das mulheres e nossa libertação sexual é um assunto que deve ser amplamente debatido. Acredito na união das mulheres, no empoderamento como meio de vencermos tabus tão antigos. Um abração e obrigada!
Fiquei bem interessada em ler o livro!
Me identifiquei bastante com a Kasturba, na questão das mentiras para poder fazer sexo com o namorado. "Família é uma maravilha", mesmo.
Vai ter versão em ebook?
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