Que lindo! André Fermago, 18 anos, estudante de Psicologia em SP, feminista recente, graças a amigas que lutam contra o machismo no dia-a-dia e que lhe apresentaram a este blog do qual ele diz ser fã e acompanha há cerca de um ano, me enviou dois poemas maravilhosos. E ainda fez questão de comentá-los.
Antes de postar os poemas e as análises, queria recomendar, pra quem quiser ler mais poesia escrita por mulheres brasileiras, o excepcional trabalho de Rubens Jardim.
Alice Sant’Anna (Rio de Janeiro, 1988) é uma poeta brasileira. O poema “Meu assassino” foi tirado do livro “Rabo de Baleia”.
Meu assassino - Alice Sant’Anna
hoje encontrei meu assassino.
dispersa, olhei para a plateia e ele estava lá
os olhos fixos em mim.
soube na mesma hora
de quem se tratava
tentei disfarçar a chuva
que deixou a franja bagunçada
na frente dos olhos mas o assassino
me olhava mas eu revidava
muito dura: era um jogo.
sabia que a qualquer respiração
se eu desconcentrasse ou tropeçasse
ele não perdoaria nunca (isso já aconteceu antes).
lembro bem quando
o meu assassino me atirou
pela primeira vez
a diferença é que agora sei
como se chama sei o formato do maxilar
e como ele me olha com esses olhos
de assassino.
pensei em chamar a polícia, os jornais
pensei sobretudo
em mudar de cidade
e não contar para ninguém, assim
o meu assassino me procuraria
nos mesmos lugares de sempre
mas frustrado voltaria para casa
e me escreveria longas cartas
dizendo fique avisada, seus dias estão no fim.
contudo meu assassino jamais seria
capaz de me encontrar
e por isso as longas cartas
que ele levaria ao correio muito bem
dobradas em envelopes com cheiro
de canetinhas coloridas
as cartas não chegariam em parte alguma
pois não constaria o meu nome
em nenhuma página amarela
ou conta de luz.
meu assassino bateria na porta
da minha antiga casa
no que eu o convidaria para entrar
ofereceria um café e diria
que pena! que desencontro! que perda!
ela não mora mais aqui.
O poema “Meu assassino” de Alice Sant’Anna parece-me um poema sobre a cultura do estupro, sendo o assassino (aquele que mata) metaforicamente um estuprador, ou o próprio machismo. O poema trata do encontro da poeta com esse assassino, mais especificamente da tomada de consciência de tudo o que ele causa e do seu perigo.
Ela conta que da primeira vez que se encontrou com ele, levou um tiro (se feriu), e sabe que uma simples bobeada frente a esse adversário é fatal. Entretanto, após a tomada de consciência ela aprende a reconhecê-lo. Pensa então em chamar a policia ou os jornais, mas essas soluções não parecem totalmente satisfatórias.
A solução que mais agrada a poeta é “mudar de cidade”, não fisicamente, mas no sentido de não aceitar mais o machismo, de abandonar essa antiga casa que o assassino conhecia e onde era aceito.
Acho muito bonito e importante esse movimento de tomada de consciência do assassino para então negá-lo. Confesso que mesmo feminista, em algumas situações práticas já agi como o assassino, sendo machista e só percebendo depois. Acho que todos estamos sujeitos a isso em maior ou menor grau, já que o assassino não perdoa se nós nos distrairmos. Mas tenho certeza que vale a pena continuar lutando e que a vida fica melhor sem ele.
Wisława Szymborska (Kórnik, 2 de Julho de 1923 — Cracóvia, 1 de fevereiro de 2012) foi uma poeta polonesa, ganhadora do premio Nobel de literatura em 1996. O poema “A mulher de Lot” foi tirado do livro "Poemas", com tradução de Regina Przybycien.
A mulher de Lot – Wisalwa Szymborska
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
Em “A mulher de Lot”, Wislawa resgata uma história bíblica, mas traz uma interpretação nova da história dessa mulher que, fugindo da destruição de Sodoma e Gomorra, olha para trás desobedecendo a Deus e, por isso, é castigada e transformada numa estátua de sal.
Numa análise tradicional, a culpa recai na mulher pecadora que olha curiosa e por isso merece ser punida. Vale frisar que essa história é do antigo testamento, que possui um Deus em geral paternalista e vingativo, mas que ainda hoje está presente no imaginário da população e transparece de diversas formas no machismo cotidiano.
Por exemplo, sobre duas grandes questões que são o aborto e o estupro: na visão machista, a culpa do estupro é da mulher que se veste como “vagabunda” ou que “bebeu e mereceu”, assim como a culpa da gravidez é somente da mulher e a responsabilidade do filho é só dela, que ainda por cima nem pode abortar.
Esse poema é a atribuição de voz a uma mulher, no contexto de uma história bíblica, mas simbolicamente representa a atribuição de voz às mulheres nas mais diversas atitudes da nossa vida cotidiana, num movimento de luta contra uma sociedade patriarcal e numa história machista que dá a própria versão distorcida dos fatos.
A poeta transporta-se para o corpo dessa mulher não nomeada (conhecida apenas por ser esposa de Lot) e castigada sem nem ter sido ouvida, transformando-se nela para poder explicar-se. E isso tudo está contido nos primeiros versos do poema, de maneira sutil: “Dizem que olhei para trás curiosa. Mas quem sabe eu também tinha outras razões.”
E a partir daí começam as possíveis razões que a poeta vai enumerar para a mulher ter olhado para trás: pena, distração, o absurdo da existência, o marido que não se importava com ela, a morte, Deus, família, finitude, desejo, vergonha, solidão, raiva, acaso. Com todas essas razões, nós, leitorxs, temos uma visão que humaniza essa mulher tida como pecadora, e nos fazem questionar a própria atitude desse Deus absurdo e rigoroso.
No final do poema, apesar dos mil motivos humanos da mulher da história ter olhado para trás num momento de fraqueza, a poeta insiste de maneira corajosa que a mulher de Lot, ela mesma, Wislawa, e toda e qualquer mulher, não olhou para trás.
Ela defende que essa mulher tinha todos os motivos para ter recuado e olhado para trás (olhar para trás remete diretamente ao passado, e a um medo de enfrentamento do que virá), mas que não olhou. Que se a viram olhando para trás, foi porque ela tropeçou, apesar de prosseguir com todas as suas forças. Que se a história "tradicional" diz que as mulheres olharam para trás, foi por um erro de quem a escreveu.
13 comentários:
Querida Lola, lindo o post.
Eu penso na poesia "Todas as vidas" de Cora Coralina onde sinto um feminismo escrito.
Se ele ler este comentario sugiro que analise esta poesia. Com o google e facil achar.
Hamanndah
Lindos poemas. Amo poesia, poesias feministas então... ganham o meu prestígio.
Mas nem sempre escritoras brasileiras foram feministas, a Amália Prado por exemplo, se dizia antifeminista.
Belíssimos poemas e ótimas análises. O primeiro me tocou de uma forma singular e o segundo me lembrou um post do meu blog sobre Sodoma e Gomorra, no qual reescrevi um trecho da Bíblia e atribuí a destruição das cidades ao homem e não a deus. http://wallof-hearts.blogspot.com.br/2013/06/a-destruicao-de-sodoma-e-gomorra-pela.html
(Se não for permitido postar links aqui, peço desculpas.)
entendo que se possa usar "poeta" tanto pra homens quanto pra mulheres, mas ainda faço questao de "poetisa" pra mulheres. é uma palavra tao bonita e cada vez mais esquecida.
chantal
Apesar de não gostar mais tanto assim de poesia, adorei as duas e as análises. A primeira me fez lembrar de uma própria situação vivida por mim.
Anônimo das 17:40
Vc está se referindo à Adélia Prado? (Fiquei achando que o "Amália" foi um ato falho com "Amélia", hahaha)
De fato, ela dizia que as feministas a achavam antiquada, era uma mulher católica que "gostava" de seu lugar de mãe e dona-de-casa. No entanto, ela tem vários textos e poemas em que a questão do gênero aparece e é discutida por um olhar próximo do feminismo, sim. Eu às vezes tenho essa impressão de que, por mais que tentem escapar, as mulheres nunca conseguem fugir por tanto tempo do feminismo; ele ressoa dentro da gente... :)
Que lindos esses poemas, e as análises, estão incríveis. Principalmente a segunda, achei fascinante.
Lindos.
Leila
Eis a linda poesia de Cora Coralina:
"Todas as vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras."
Ela começou a publicar suas poesias na terceira idade porque o seu marido( homem honrado e de bem, segundo a logica machista) a proibia. Inclusive, suas poesias poderiam já ter sido conhecidas na semana de arte moderna de 1922, ou seja, seu talento poderia ter sido mostrado ao mundo há mais de 90 anos, mas o seu honrado marido não a permitiu.
Fica como boa resposta aos machistas que dizem que mulher não tem talento nem para literatura.
Quantas Coras Coralinas esconderam seus escritos nos armários, quantas destas não tiveram seus escritos publicados em nome de seus maridos, pais, irmãoes, etc?
Bjs
Hamanndah
Certa vez me pediram pra gravar alguns poemas sobre mulheres pra ir ao ar na emissora de rádio que trabalhava... Em um deles, que bem bonito por sinal, era citado uma vez a palavra seios... Resultado: esse não foi ao ar na programação.
Gostei dos poemas, das análises, tudo lindo. Amei o segundo poema e já vou procurar conhecer melhor a escritora.
Leila
lindos e tocantes poemas e corretas análises,nossa arrepiei com o poema da mulher de Ló....!
Lindos, lindos os poemas. Foi óimo conhecer esses poemas e ser apresentada a nomes que não conhecia. Adorei as análises.
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