EXTREMA DIREITA EXPÕE MENINA DE 10 ANOS VÍTIMA DE ESTUPRO

A menina de 10 anos no caso real é negra, não ruiva

Ontem foi um dia cheio. O que deveria ser algo simples -- o aborto de uma menina de 10 anos que foi estuprada e, se prosseguisse com a gravidez, corria risco de morrer -- se desenrolou numa verdadeira saga trágica.

Primeiro foi o Hucam, o hospital universitário no Espírito Santo, que, a meu ver covardemente, não quis realizar o aborto. 

Entendo que, nesses dias obscurantistas em que vivemos, todo cuidado é pouco. Estamos num governo que é fiel à ideologia da extrema-direita internacional e que persegue seus inimigos (reais ou imaginários; vide o dossiê contra os "antifas" organizado pelo próprio Ministério da Justiça). Ninguém sabia ao certo o tempo de gestação da menina. Todas as notícias haviam falado em 3 meses, mas parece que ela estava com 22 semanas e 4 dias, o que equivale a 5 meses. A lei diz que o aborto pode ser feito até as 22 semanas ou o peso de 500 gramas do feto. Porém, para especialistas, essa restrição não vale quando a vida da gestante está em risco.

O fato é que, para garantir o direito da menina, ela teve que ser transferida para outro Estado, o que mostra a dificuldade que é fazer um aborto legal no Brasil. E, infelizmente, o caso dela não é atípico. A cada hora, 4 meninas de até 13 anos são estupradas. 6 abortos legais por dia são realizados em meninas entre 10 e 14 anos.

Ainda assim, num caso que deveria ser completamente sigiloso, já que envolve uma menor de idade que sofreu violência sexual durante 4 anos, um grupo religioso foi importunar a avó da menina em São Mateus, ES. Foram à casa dela não uma, mas duas vezes. "Queremos salvar o bisneto da senhora", disseram. A avó, que é quem cria a garota, chegou a desmaiar.

Um cara do grupo, candidato a vereador pelo PSL, tentou convencê-la que gravidez de crianças de 10 e 11 anos são comuns -- no Nordeste, não lá no Sudeste. Disse também que tinha contato com a assessoria de Damares e toda uma equipe médica à disposição e "juízes que são cristãos, que são do bem, estão do nosso lado".

Há um vídeo gravado com essa perturbação à família da menina. Um homem do grupo religioso alega que "Se tem uma alma ali, foi Deus quem colocou". Uma mulher o rebate, lembrando que a menina foi vítima de estupro durante anos: "Não foi Deus não. Não foi Deus que colocou". Outra mulher interrompe: "Mas Deus permitiu". "Deus permitiu uma barbaridade dessa?", pergunte, perplexa, uma mulher ligada à família. E tenta encerrar a conversa, enfatizando que a família é a favor do aborto. Ela também quer saber como eles tiveram acesso ao nome da menina. A promotoria vai investigar.

Um profissional que havia atendido a garota em Vitória afirmou que ela não queria nem saber em continuar com a gravidez. Só chorava. O juiz que autorizou o aborto confirmou que, no seu despacho, levou em consideração a vontade da vítima. 

Os jornais não queriam nem dizer para onde a menina foi levada para poder realizar o aborto. 

Mas a militante de extrema-direita Sara Giromini, mais conhecida pela alcunha da espiã nazista que adotou, Sara Winter, divulgou, além do nome da garota, o endereço do hospital no Recife. Foi a deixa para que grupos católicos e evangélicos se dirigissem ao hospital. Lá fizeram barulho, xingaram o médico (o mesmo que havia sido excomungado em 2009 por realizar um aborto numa menina de 9 anos que havia sido estuprada pelo padrasto e estava grávida de gêmeos), tentaram invadir o hospital. Quem passou essas informações sigilosa ao grupo religioso do ES e a Sara?

Para não ser hostilizada pelos manifestantes "pró-vida", a menina teve que entrar no hospital escondida no porta-malas do carro! 
Feministas do Fórum de Mulheres de Pernambuco também estiveram no hospital para defender que a menina pudesse exercer seu direito. Elas cantavam "Gravidez forçada é tortura! Aos 10 anos, é morte!" Parabéns a essas mulheres!

Enquanto isso, com o direito a ter sua identidade preservada tendo sido jogado no lixo por fanáticos religiosos, a barbárie corria solta nas redes sociais. 

Uma bolsonarista típica cidadã de bem (que depois alegou ter sido hackeada) escreveu: "4 anos sendo estuprada até engravidar e não fala nada com ninguém? Será que ela é tão inocente assim? A maioria das mulheres de hoje estão piores que cachorras no cio".

Outra "mulher honrada" escreveu que teve um bebê de 5,5 meses que viveu 3 dias. Viveu 3 dias, mas era "toda perfeita". Baseado na sua experiência, essa cidadã exigia que a menina de 10 anos seguisse com uma gravidez. Mesmo arriscando a vida. Mesmo sendo vítima de estupro. Mesmo se fosse para ter um bebê que só vivesse 3 dias.

Ainda outro cidadão de bem fantasiado de cavaleiro templário e que nem precisamos dizer em quem votou sentenciou sobre a menina de 10 que engravidou após ser estuprada: "Se o corpo dela não estivesse preparado ela não engravidaria. Se engravidou, está apta a ser mãe".

Apesar de todas essas violências, a menina conseguiu fazer o aborto e passa bem. Uma vitória da vida: se ela não abortasse, provavelmente morreria (e o feto também). Outra boa notícia é que dois youtubers importantes se pronunciaram: Whinderson Nunes se ofereceu para custear o tratamento psicológico da menina até seus 18 anos, e Felipe Neto, a "arcar com todos os custos da educação dela até o fim da faculdade". Na realidade, isso deveria ser um direito, não uma caridade, mas, sabendo o tipo de "ajuda" que pode vir de uma Damares da vida, que não respeita a laicidade do Estado, a atitude dos dois rapazes é importante.

O crime de Sara contra ECA

Hoje, muito tarde, a Justiça do Espírito Santo determinou que o Facebook, Twitter e Google (responsável pelo YouTube) retirem do ar as postagens em que Sara expõe a menina. As plataformas têm 24 horas para obedecer. Sara, que está usando tornozeleira após ser presa pelo STF por ameaçar um ministro, teve sua conta no Twitter derrubada por uma decisão. Mas, assim como outros reaças, ela simplesmente abriu outra. Como isso é permitido? Por exemplo, os ativistas da direita, ao exporem e xingarem um médico, incitaram "a violência e assédio direcionado a alguém", o que é proibido pelo Twitter. 

Como muito bem pontuou uma matéria na Intercept, "Não tem outro jeito de dizer: os fanáticos religiosos estão usando as gigantes da tecnologia como palanque para seu extremismo, colocando a vida de uma criança em risco, e as empresas são coniventes".

Sara, que será processada por um grupo de advogadas feministas por expor a menina, teve a pachorra de dizer: "Todos de joelhos pela recuperação física e psicológica da menina de 10 anos, vítima desse circo de horrores". Sara, uma das principais responsáveis pelo circo, também havia dito que o feto pesava 500 quilos e tinha nove meses.

Não foi só isso de asneira que disse a militante: enquanto lucrava com doações via picpay durante uma live, explicava como foi feito o aborto na menina ("enfiaram a mão na vagina dessa menina"), e gritava: "Não é aborto, é parto prematuro, seus retardados, não é aborto. Não existe aborto, você pode gostar ou não gostar". Ué, então o que esses "pró-vida" (muitas aspas nessa hora) estão reclamando? Não houve aborto, houve parto prematuro. 

Mostrando mais uma vez que são contra a educação sexual (pedófilos também são, pois sabem que a ignorância é aliada dos abusos), Sara afirmou que os profissionais de saúde nunca deveriam ter falado pra menina que ela estava grávida, e sim que estava "dodói da barriga". Ou seja, Sara defende não só desrespeitar a vontade da menina, como enganá-la abertamente. Para a militante, deveriam ter dito pra menina que ela teria que ir ao médico e fazer uma cirurgia, e só depois que o bebê tivesse 6 ou 7 meses, ele seria tirado de sua barriga através de uma "cesárea humanitária". Só na cabeça negacionista dessa gente que uma cesárea é menos arriscado numa menina de 10 anos que um aborto.

O caso foi péssimo pros pró-vida. Eles obviamente queriam que a garota morresse durante o aborto. Se isso tivesse acontecido, hoje já haveria um ou mais projetos na Câmara proibindo o aborto no Brasil em todas as situações. E não caiam nas mentiras da extrema-direita: não faria a menor diferença se a menina estivesse grávida de 22 semanas em vez das 23. Eles organizariam esse escândalo de qualquer jeito. Tanto que o grupelho religioso foi à casa da avó antes de saber das 23 semanas.

Duas coisas ficaram muito claras neste caso todo: primeiro, que os tais cristãos "pró-vida" que posam de defensores das crianças não estão nem aí pra elas. No momento em que se chama uma menina de 10 anos que foi vítima de estupro durante 4 anos de "assassina", essa narrativa furada de que a preocupação é com as crianças já não cola mais. Não é à toa que o cartum mais retuitado nesses últimos dias foi um em que um menino sem teto pede esmola para um trio de manifestantes anti-aborto e uma moça o dispensa dizendo: "Você já nasceu, querido". 

A outra coisa que ficou clara é que a agenda da extrema-direita e, aliás, da direita em geral, é criminalizar o aborto em todos os casos, inclusive naqueles em que ele é permitido por lei, como em gravidez decorrente de estupro e risco de vida para a gestante. Temos que continuar resistindo. Se depender deles, fazem do Brasil um enorme Gilead. 

Tuíte de Sara com nome da menina e
endereço do hospital (eu apaguei)

Que a menina fique bem, que o tio estuprador seja encontrado e punido, que tenhamos educação sexual nas escolas para combater abuso infantil, e que a extrema-direita conheça seus limites. Expor uma garota de 10 anos vítima de estupro passa longe da liberdade de expressão.

Uma charge do Nando Motta que diz tudo. Leia mais em: Boas notícias