sexta-feira, 9 de maio de 2008

CRÍTICA: BANQUETE DO AMOR / Banquetezinho adulto, pelo menos

Estréia hoje no Brasil Banquete do Amor (Feast of Love), um filme que vi nos EUA no final de setembro. Isso dá o quê, mais de meio ano? Pois é, já tinha desistido que o troço desembarcasse aí. Mas chegou, e vale a pena uma espiada. É um filme adulto, o que já é raro, sobre o amor entre vários casais. Não vá pelo trailer, que é enganoso (e conta tudo), pois tenta vender a obra como comédia. Comédia? De jeito maneira. É de chorar. Eu sou um farrapinho humano, mas com dignidade. Odeio quando o filme termina, as luzes se acendem, e eu tô lá, com a cara toda inchada de tanto chorar, lágrimas ainda escorrendo pelo meu rosto, formando um dilúvio. Aí todo mundo passa por mim com uma cara de “Você tá bem?”.

O ator principal é o Morgan Freeman, que confere dignidade a quase toda produção que estrela, tirando Apanhador de Sonhos, que não tem salvação. Hollywood deve adorar o Morgan porque, em geral, ele pode interpretar personagens que foram escritos pra serem brancos sem mudar uma só linha. E ainda cumpre a cota e atrai o público negro. Em Banquete não é bem assim. Morgan faz um professor universitário casado com a Jane Alexander, que causou furor nos EUA uns meses depois por encarnar uma psiquiatra que aparece nua (mezzo) na minissérie Tell Me You Love Me. E se nessa sociedade conservadora já é um escândalo uma atriz de primeiro time (ela foi indicada ao Oscar de coadjuvante por Kramer vs Kramer e Todos os Homens do Presidente) tirar a roupa, uma atriz de quase 70 anos ser vista transando é motivo pra um golpe militar. Tudo bem que é transando com o marido (ficcional), mas o povo não quer saber de sexo entre velhinhos, e muito menos ver uma senhora despida, porque, óbvio, mulher pós-menopausa não tem mais função no mundo. Mas claro, ela é uma excelente atriz, e é uma pena que não apareça mais em Banquete. Já o personagem do Greg Kinnear é muito mais difícil. Ô carinha triste. Traído por duas esposas, ainda tem que roubar o cachorro da irmã... E o pior é que a gente o acha patético. Sem falar que a Selma Blair parece filha dele. A Selma faz uma mulher que se apaixona por outra mulher, e logo em seguida ambas estrategicamente somem da história.

Falando nisso, dê uma olhada no pôster (acima). Há três casais heteros e brancos. O casal de lésbicas não tá lá. A Jane, que forma par com o Morgan, tampouco. É porque poderia ofender o americano médio, que ainda se opõe a casamentos interraciais e a casamentos entre o mesmo sexo? Não lembro tanto do filme, porque faz um tempão que o vi e não anotei tudo, mas acho que o Morgan e a Jane não têm filhos (me corrijam se eu estiver errada). Ou, se tem, isso não carrega o mesmo peso do livro. No livro, em que o personagem do Morgan é branco, o casal tem um filho problemático que mora longe e que o odeia, é viciado em drogas e vive tirando dinheiro dele. Nada disso tá no filme. Por quê? Pode ser porque já há personagens demais do jeito que está. Mas eu aposto a minha vida que é pra não ferir a sensibilidade do espectador americano, que se já se choca com casamentos interraciais (em pleno século 21!), teria um chilique por esse casal ainda se reproduzir (lembre-se que faz 40 anos que esse tipo de casamento deixou de ser proibido na maior parte dos estados dos EUA. Obama ou não Obama, o país continua racista que só ele). Isso soa inadmissível pra nós, brasileiros, provavelmente o povo mais misturado do mundo, mas aqui nos EUA ainda se discute se um casal misto deve ter filhos. Há muito negro e branco contra. Pra resolver o conflito, Morgan e Jane se abstêm de deixar um herdeiro. No final, o casal mais ou menos adota uma filha - branca, porsupuesto.

Continuando com o elenco, quem mais me chamou a atenção foi o Billy Burke. Quem? Eu sei, eu sei. Ele faz o detetive traído de Um Crime de Mestre. Em Banquete ele tá bem sexy formando um par com a Radha Mitchell (de Melinda e Melinda e Terror em Silent Hill). E tem o casalzinho jovem que eu nunca vi mais magro. Inclusive, uma das subtramas de Banquete me fez perguntar pro maridão: se acaso a gente acreditasse em previsão de vidente, e eu fosse a uma mulher que lesse a minha sorte e ela dissesse “Esse homem não tem futuro” (eu responderia “Isso eu já sei há 18 anos”, e ela diria: “Não, não tô falando de dinheiro, quero dizer que ele não vai viver muito”), se ele gostaria que eu contasse pra ele ou não. Ele disse que não, que era pra eu me angustiar sozinha, “e nem coloque no blog”. Tentei argumentar com ele que, como é certeza que ele iria partir desta pra melhor, por que esperar ele bater as botas pra eu redigir um classificado pessoal do tipo “Procura-se rapaz de vinte anos”? Ele não respondeu e só me olhou como se eu fosse um monstro.

Ah sim, depois de ver o filme, li o livro do Charles Baxter, que por uma incrível coincidência já deu aula na mesma universidade em que estou pesquisando. O romance é muito bom e se passa em Ann Harbor. Pelo jeito essa cidadezinha aqui perto deve estar na moda, porque é lá também onde Jumper começa. Mas pra Banquete, o filme, levaram a trama pra Portland, Oregon, que tem a fama de ser uma das cidades mais pra frentex dos EUA. De que adianta, se varrem todos os aspectos minimamente progressistas pra debaixo do tapete?

8 comentários:

Leo disse...

Lendo a sua crônica me lembrei da minha viagem à Africa do Sul pós-apartheid no início do ano em visita a uma tia que mora lá. Você sabe que um amigo da minha tia, branco, me disse:
"Um homem branco pode até casar com uma negra, mas nunca ter um filho juntos. O que diriam à criança? Et Tenho gatos e cachorros na minha casa. Eles convivem juntos, mas não podem procriar."
E depois de eu perguntar o que ele faria se a filha dele casasse com um negro, ele disse na maior frieza:
"Mato ela. Mas ela não faria isso. Ela sabe. Certo dia encontrei uma amiga dela indiana, brincado com ela na minha casa. Falei pra ela (a filha): Tudo bem, você tem uma amiguinha indiana. Mas vai brincar come ela lá fora, porque eu não a quero dentro da minha casa."
Esse mundo tá definitivamente muito longe de ser um lugar para todos...

lola aronovich disse...

Que horror, Leo! E isso que vc foi à África do Sul PÓS-apartheid?! Às vezes não dá pra acreditar na cretinice humana. Mas aqui nos EUA não é tão diferente, sabe? A segregação é muito, muito grande. E de ambas as partes. Fiquei pasma quando li uma reportagem na Ebony ou na Jet, nem lembro (duas revistas pro público negro) discutindo se tudo bem, hoje em dia, casais interreaciais terem filhos. Apesar do racismo no Brasil, não consigo imaginar uma discussão dessas aí! Mas aqui nos EUA isso ainda é muito tabu. E o pior foram as cartas dos leitores nas edições seguintes: grande polêmica. Vários leitores negros dizendo "não importa que o casal se ame, ele precisa pensar nas crianças!". Porque aparentemente uma criança mulata sofreria muito. Não sei, eu gostaria que não houvesse racismo de nenhuma forma, mas acho que prefiro o nosso racismo "cordial" à essa segregação tamanha.

Leo disse...

É verdade Lola. "Nosso" racismo é mais financeiro do que racial, né? também não consigo imaginar alguém discutindo sobre ter um filho mulato aqui. É totalmente fora da nossa realidade. O brasileiro aceita mais facilmente a miscigenação, que não começou agora e não tem volta. Melhor assim...

lola aronovich disse...

Pois eh, Leo, so que o racismo dos americanos, alem de nao ser nada cordial, TAMBEM eh financeiro! Por coincidencia, acabei de ler isto num blog. Eh de uma americana que relata sua infancia em Cincinatti (que nao eh uma cidade tao retrograda assim) 15 ou 20 anos atras:

" Growing up, I remember the biracial couple who moved in several houses down from ours or rather, as my father called them, "the oreos down the street." He claimed that the neighborhood was surely going to hell in a handbasket because "once you let one in, they'll soon take over," fearing his house value would soon decline. I recall the time my grandmother made my brother get out of the hotel pool when a few African-American kids jumped in, claiming there'd be "oil slicks" in the water. Or the time my mother became irate because I was walking with a black friend when she came to pick me up from school, hissing that I had embarrassed her by consorting with "that black boy." [...] The solution to Cincinnati's soaring crime rates? Easy, my dad claimed, "just cage all the blacks in and let em' kill each other."

Continua aqui:
http://media.www.rwcactivist.com/media/storage/paper248/news/2003/06/03/Opinion/My.World.What.I.Unlearned.At.College-437057.shtml

Me diga se nao lembra o apartheid sul-africano...

lola aronovich disse...

Sera que coube o link ou tenho que repetir (eh pra colar numa parte so):
http://media.www.rwcactivist.com/
media/storage/paper248/news/2003/06/03/Opinion/My.World.What.
I.Unlearned.At.College-437057.shtml

Leo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Leo disse...

Lembra sim, Lola! Muito! E o que mais espanta é ver que esta sociedade dita as regras de nosso mundo contemporâneo.
As descrições da americana são surreais. Impressiona pensar que ela, pelo menos, conseguiu mais tarde enxergar com seus próprios olhos e tirar conclusões diferentes das passadas por seus pais. Acredito que isso não aconteça com a maioria dos outros "average" cidadãos que crescem ouvindo as mesmas coisas...
Lembrei mais uma vez da Africa do Sul quando ela diz que o pai sugeria que a solução para a criminalidade era deixar que os negros se matassem uns aos outros. Ouvi muito isso por lá também.

lola aronovich disse...

Bom, pra ser franca, ja ouvi isso no Brasil tb. E muitas outras coisas racistas. A casa que a gente comprou em Joinville foi atraves de uma imobiliaria, entao jamais conhecemos os antigos donos. Mas os vizinhos mais antigos ainda hoje dizem (depois de 15 anos!) que os donos anteriores eram "pretos". E que eles tinham pintado a casa de amarelo, "coisa de preto!". Ja ouvi essa frase chocante, "Coisa de preto", muitas vezes. Acho que eu pintei a casa de laranja (com janelas e portas amarelas) como uma resposta a esses vizinhos que de-tes-to. Ha muitos exemplos de racismo "bem pouco cordial" no Brasil. Mas o legal eh que ninguem se considera racista. Pergunte pros meus vizinhos se eles se consideram racistas. Podem ate se sentir insultados com a pergunta!