terça-feira, 31 de dezembro de 2013

UM 2014 MARAVILHOSO

Eu brindo com água sem gás

Pessoas queridas, como só restou eu em toda a internet (estou me sentido o Will Smith em Eu Sou a Lenda), porque pelo jeito todo mundo foi viajar pra uma terra sem conexão, vou ficando por aqui em 2013. Tinha escrito uma retrospectiva pessoal do meu ano, mas deixarei pra ser publicada amanhã -- quando continuarei vendo rolos de feno passando na minha frente na internet. 
Desejo a todas e a todos uma ótima passagem de ano. Vamos entrar em 2014 com o pé esquerdo, que a direita não tá com nada! E sem fogos, por favor. Pensem em todos os animais fofos que ficam em pânico e fogem de casa e nunca mais são encontrados por causa dessa droga de barulho (eu nem sabia disso até conversar com ativistas de direitos animais, mas essas datas festivas são recordistas em animais de estimação abandonados e perdidos). 
Tudo de bom pra vocês! Um 2014 cheio de coisas boas!

ÚLTIMA ESTUPIDEZ DO ANO?

Uma leitora me informou que, na última quinta-feira, o programa religioso Fala que Eu Te Escuto, da Record, um dos mais toscos (e divertidos, sem querer) da TV brasileira, veio com este tema: "Machismo x Feminismo: A luta de ambos os movimentos é justa ou só promove a guerra entre os sexos?"
Eu não vi o programa, e o site da Marcha Mundial das Mulheres já escreveu sobre o tema.
Mas é muita estupidez considerar o machismo um movimento. Certo, sabemos que faz parte do lugar comum ver feminismo como o oposto do machismo. Pessoas ignorantes costumam dizer: "Ah, sou contra o machismo e o feminismo, os dois estão errados". Duvido que exista alguma feminista que nunca ouviu essa bobagem.
Pra ser machista, não precisa fazer nadinha: basta respirar. Vivemos num mundo machista, e racista, e homofóbico, e cheio de outros preconceitos. Se não nadarmos contra a corrente, seremos preconceituosos, porque somos produtos da nossa época e lugar. Machismo é uma ideologia, não um movimento (o masculinismo, se existisse seriamente, o que não é o caso, poderia ser um movimento).
Feminismo sim é um movimento, e é revolucionário. Sem dúvida é um dos movimentos mais transformadores dos últimos tempos. Acho que até os pastores da Record sabem disso, senão não fariam enquetes tão babacas.
Guerra entre os sexos! É engraçado esse lugar comum de que as feministas declararam uma guerra! A guerra foi declarada há alguns milênios, muito antes de existir o feminismo. Todo um sistema determinou que homens e mulheres são totalmente diferentes, que isso é natural, e que mulheres são inferiores e devem servir aos homens. Quem inventou o termo "sexos opostos", como se fossemos tão diferentes que precisamos estar em oposição? Foi o feminismo?
Fica aqui a torcida pra que esse programa da Record tenha sido a última estupidez de 2013. Mas, como faltam doze horas pra terminar o ano, creio que mais uma vez estou sendo uma otimista incorrigível. 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

GUEST POST: MATERNIDADE E VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA, PAUTAS FEMINISTAS

Ligia Moreiras Sena, Ana Lucia Keunecke, Carolina Pombo e Raquel Marques escreveram este lindo texto defendendo o que deveria ser bastante óbvio: que existem inúmeras pautas feministas, e que a maternidade, o parto humanizado, a violência obstétrica, estão entre elas. 
O texto que elas escreveram é bem mais longo, e você pode lê-lo aqui. Gostaria que o post não fosse visto como um grito de oposição ou de polarização, e sim como um chamado à luta coletiva. À mais uma luta feminista. 

Recentemente, um grupo de mulheres fundou a Artemis, organização não governamental que tem entre seus objetivos a erradicação da violência obstétrica no Brasil. A Artemis tem promovido atuação efetiva, com presença decisiva no Fórum Mundial de Direitos Humanos e junto à Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
No início do mês de dezembro, por ocasião do IV Ciclo de Conferências da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, as ativistas deste grupo foram duramente atacadas, não virtualmente mas presencialmente, por pessoas que afirmavam não ser a maternidade uma causa feminista. A Conferência é um espaço da sociedade civil, onde todas as 90 propostas apresentadas devem ser de extrema importância para a sociedade em geral e para o Estado de São Paulo.
Ali estavam propostas importantíssimas para a questão da mulher: funcionamento das delegacias da mulher 24 hs/dia, inclusive finais de semana; acolhimento de mães puérperas em situação de rua; criação de casas de passagem e abrigo especializado para mulher em situação de violência; criação de Juizados Especializados em Violência Doméstica; proteção à identidade de gênero; campanhas pela legalização do aborto; atuação na questão da violência obstétrica, entre outras de igual importância. 
É facilmente perceptível a grande relevância de todas as propostas, as quais, certamente, estão dentro do escopo dos movimentos feministas. E a inserção da violência obstétrica como mais um tema a ser trabalhado e a ser combatido na sociedade é prioritário num contexto do Poder Judiciário onde pouco ou quase nada tem sido feito sobre o assunto. 
Após a defesa da proposta, duas delegadas de movimentos feministas da capital paulista se manifestaram contrariamente à inserção da violência obstétrica como violência contra a mulher: uma sugerindo que a questão da maternidade não agrega o feminismo, já que a maternidade, segundo ela, seria “uma forma de controle do patriarcado sobre o corpo da mulher”, e outra sugerindo que as delegadas deveriam votar em questões sérias e não em “questões que ainda estão no imaginário e não acontecem de fato”. 
Tais manifestações de negação da violência obstétrica como causa feminista nos causaram perplexidade. Não apenas pelo caráter discriminatório para com milhares de brasileiras que estão sendo violentadas durante o nascimento de seus filhos, como também pelo desconhecimento e desatualização de ambas as delegadas a respeito do tema. 
Não é possível ignorar dados de pesquisas brasileiras realizados nos últimos três anos e amplamente divulgados nos cenários científico e midiático brasileiros, os quais já mostraram a toda sociedade civil a gravidade da questão. Muito menos desmerecer a violência sofrida por uma a cada quatro mulheres que dão à luz no Brasil, atribuindo a essa violência caráter de “invenção”, de “imaginário”, ignorando mulheres e suas dores. 
Não sabemos se nesse contexto ou fora dele, alguns dias depois foi publicado no coletivo Blogueiras Feministas o texto “O ativismo materno para além do parto”.
Ao começarmos a leitura do referido texto, sentimos algo como o que sentimos quando ouvimos alguém dizer: “Não sou racista, mas...” ou “Não sou machista, mas...”, ou “Acho que mulheres têm direitos, mas...”, à semelhança do cartoon ao lado. O “mas” que veio em seguida foi muito parecido com os “mas” mencionados anteriormente e o tom do texto se assemelhou em muito ao ataque sofrido pelas ativistas da Artemis em função do suposto não pertencimento da maternidade à pauta feminista.
O texto “O ativismo materno para além do parto” foi explicitamente direcionado a um blog, o Mulheres Empoderadas. Arriscamos dizer que 90% das mulheres que curtem e “fazem” a página Mulheres Empoderadas não se intitulam empoderadas porque defendem e vivem a autonomia da mulher para parir de cócoras, na piscina, sem intervenções ou porque amamentam seus filhos no peito por tantos anos. Intitulam-se assim porque venceram muitas lutas pessoais -- e coletivas -- para conseguirem fazer isso, lembrando que tudo isso aí representa grandessíssimas exceções no Brasil. 
O texto tem razão quando diz que mulher empoderada vai muito, mas muito além de parir. E é exatamente isso que queremos dizer aqui: essas mulheres não podem ser resumidas a um corpo que pariu, mas a mulheres que, sim, venceram um sistema violento e degradante. São mulheres que travaram grandes lutas para conseguirem parir do jeito que queriam e amamentar. Muitas delas foram demitidas por incompatibilidade entre a bombinha de extrair leite e o cartão-ponto. Então não, não são empoderadas porque paririam assim ou assado ou deram o peito, mas por terem enfrentado um modelo cruel, machista e patriarcal para fazer isso. E muitas vezes enfrentaram e desafiaram a si próprias, gente que nunca pensou que fosse capaz de dar conta desse tipo de enfrentamento.
E se, à semelhança dos exemplos citados no texto mencionado, houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mulheres que escolheram não ser mães? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mulheres que nasceram com pênis? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por quem nasceu com ovários e vagina mas não se reconhece como mulher? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mães de plantas, mães de gatos, mães de projetos? Faria mais sentido? Seriam empoderamentos mais bem vistos no contexto do “feminismo”? Essa crítica ao uso do “empoderadas” ainda seria feita? Sejamos sinceras: não seria.
Mulheres mães brasileiras vivem em péssimas condições. Pelos rankings internacionais, feitos por diferentes instituições de pesquisa, como a Save the Children, o Brasil tem péssimo desempenho no que se trata do bem estar materno. Enquanto Cuba aparece com a melhor posição da América Latina, em 33o lugar, nosso país permanece na 78a posição, atrás da Ucrânia (país mais pobre da Europa) e da África do Sul. 
Mas o que os rankings não mostram é que os melhores desempenhos, medidos por variáveis como saúde gestacional, mortalidade materna e infantil, renda, emprego, educação, dentre outras, foram construídos ao longo do tempo, principalmente por políticas públicas focadas no bem estar das mães, pais e crianças. A Suécia, por exemplo, que figura há muito tempo entre a primeira e a segunda posição em diferentes rankings como esse, construiu políticas sociais focadas nas famílias, sob influência de um feminismo forte e preocupado com as condições de vida das mães -- casadas ou não. 
Uma das medidas mais antigas e importantes nesse país foi o financiamento de creches acessíveis e de qualidade para as crianças de famílias monoparentais. Sabendo que em 90% dessas famílias quem se responsabilizava pelo sustento e cuidado das crianças eram as mulheres, os movimentos feministas do início do século 20 já cobravam medidas especiais para acolhê-las. Com o tempo e o aumento da consciência da desigualdade de gênero nas famílias e no mercado de trabalho, e com a preocupação crescente com os direitos das crianças, a Suécia desenvolveu um sistema de pré-natal totalmente baseado na prática das enfermeiras obstetras, doulas e casas de parto, concomitante a uma política de licença parental remunerada de até 13 meses, a ser desfrutada por homens e mulheres, e que assim contribui para uma das melhores taxas de amamentação da Europa. 
Em nosso país, parece ainda pairar uma ideia majoritária de que maternidade e paternidade são assuntos da vida privada, que nada têm a ver com movimentos sociais e políticas públicas. Esse abismo de políticas para as famílias acaba reforçando também a reprodução da desigualdade econômica e racial entre as mulheres. Sem garantia de vagas em boas creches, e sem licenças parentais razoáveis, a mão de obra de outras mães, pobres e geralmente negras e/ou migrantes, é explorada pelas famílias de classe média. Essas trabalhadoras ainda não têm seus direitos trabalhistas respeitados, na maior parte dos casos, e não encontram apoio público para o cuidado com suas próprias crianças.
Ao contrário do que parecem achar outras pessoas, não temos visto um culto exacerbado ao lugar da “mulher mãe” como sinônimo daquela que larga tudo para cuidar dos filhos em tempo integral. O que temos visto, isso sim, são milhares de mulheres em luta constante para satisfazer simultaneamente seu próprio desejo de cuidar de suas crias de perto e a necessidade de subsistência, o desejo de seu patrão de produzir, ou o próprio desejo de ter uma vida profissional ativa. 
O que há é uma pluralidade de vozes e, entre tais vozes, há as das que decidem se dedicar exclusivamente ao cuidado com os filhos -- embora esteja muito longe de ser majoritário. A grande maioria das mães precisa contratar creches para poder trabalhar, e são poucas as que continuam a tirar leite do peito para amamentar. Ou vamos cair no erro de achar que os poucos gritos de “VAMOS VOLTAR PARA CASA!” que ouvimos nas redes sociais representam a maioria das brasileiras? O que algumas feministas têm chamado de privilégio representa também uma conquista árdua, a partir de tomada de consciência e desejo de mudança sobre as condições gerais de maternagem em nosso país. 
Uma das críticas de alguns grupos à inclusão da maternidade como questão feminista é o fato de que isso reforçaria o estereótipo de que as mulheres são as únicas responsáveis pelos cuidados com as crianças. Não querer reforçar a ideia comum de que os cuidados com a criança é algo natural na mulher é diferente de negar que não apenas a maternidade, mas todas as funções de cuidados, são executadas majoritariamente por mulheres. Ao afastar isso das frentes de debates feministas perdemos a oportunidade de não apenas desnaturalizar estas associações, mas também de exigir políticas públicas que liberem a mulher de tal condição. 
Como falar em cuidados compartilhados entre os pais se a licença paternidade é de apenas cinco dias enquanto a licença maternidade é de quatro a seis meses? A não criação de vínculo parental pelo pai da mesma forma como acontece com a mãe, pela ausência de tempo dedicado, leva a nefastas consequências, como o acúmulo de tarefas pela mãe que também trabalha fora de casa. Esse é um exemplo sobre como agregar questões de maternidade ao debate feminista, a fim de pleitear causas como aumento da licença paternidade, resultam em melhoria de condições para as mulheres, em especial maior possibilidade de escolhas em suas vidas.
O parto humanizado no Brasil, atualmente, está mesmo limitado a um recorte de mulheres da classe média. Fato. O que significa que todas as demais, financeiramente abaixo, estão atualmente fora dele -– com exceções como as que têm acesso ao Sofia Feldman (MG – SUS) ou ao Elpídio de Almeida (PB – SUS), ou a parteiras tradicionais nos confins do Brasil e outras poucas. E por conta disso, as mulheres da classe média que estão parindo dignamente são muitas vezes ridicularizadas ou chamadas de alienadas, umbiguistas, egotripistas, etc etc. 
Porém, são essas mesmas mulheres da classe média que estão organizadas para lutar pelos direitos de todas por um parto sem violência e sem mutilação. É uma das poucas vezes que o Brasil vê uma mobilização da classe média espirrando na assistência básica à saúde, no SUS, na legislação. 
Essas mulheres estão organizadas e estão se organizando -– vide a ONG mencionada no início do texto e outros tantos exemplos -- para que a mudança de cenário favoreça as mulheres brasileiras universalmente e se torne uma opção acessível independentemente de classe social ou qualquer privilégio ou sorte.
Sim, o feminismo é muito mais, muito mais mesmo. É autonomia para além de ser mãe. 
Mas TAMBÉM para ser uma. 

domingo, 29 de dezembro de 2013

"MEU COMPANHEIRO NÃO SE UNE AS MINHAS LUTAS"

Maridão na Marcha das Vadias de Fortaleza, em 2011

L. me enviou este email:

Gostaria, primeiramente, de te agradecer por seus post esclarecedores, bem escritos, coesos e atuais. Acho que blogs como o seu ajudam a aproximar as pessoas de questões importantes e abrem espaços de discussão e reflexão.
Dito isso, gostaria de falar uma coisa. Na verdade... Perguntar.
Eu tenho 22 anos e sofri abuso sexual aos 13. Demorei muito para conseguir pensar no assunto que eu fingia não existir. Doía demais pensar nisso. Há alguns anos comecei uma empreitada muito forte em direção à superação. Me esclareci sobre o assunto, estudei efeitos psicológicos do abuso, o que é o abuso, casos que acontecem todos os dias, como lutar contra isso. Ainda é difícil falar disso, mas falo. Ninguém da minha família sabe, mas meus amigos, sim. 
Meu namorado é um cara muito legal e respeitoso. Como em todos (inclusive em mim, algumas vezes) é possível notar algumas atitudes machistas, mas ele lê os textos do seu blog e de outros, está começando a compreender o feminismo de verdade e tenta se policiar e mudar algumas atitudes. Ele já me viu chorar várias vezes pelo abuso; especialmente em filmes que mostram cenas que eu não consigo suportar e tenho que sair do cinema, ele me acompanha. 
Mas ele não é capaz de expressar isso, não "prega", como ele coloca. Ele diz que se importa com questões feministas, apóia, respeita, acha correto, mas não consegue ter convicção sobre isso porque não o afeta diretamente. 
Isso me incomoda porque sinto que minhas lágrimas e o sofrimento de muitas outras pessoas escancarado a cada dia não são suficientes para chocar as pessoas. Será que essas pessoas precisariam ver um estupro de uma garota de 13 anos ao vivo para se revoltar a ponto de lutar pela mudança de algo? 
Será que essa inércia é tão grande que elas até podem sentir afinidade por uma causa, mas não a ponto de querer mudar se não forem elas, em suas próprias peles, a sentir o problema? 
A pergunta por trás de tudo isso é: como você e seu maridão lidam com isso? Ele divide suas lutas com você? Ele era diferente antes de te conhecer? Como fazer para tentar aceitar que ele não precisa defender como se fossem dele minhas lutas, mesmo que isso seja um desejo forte meu, o de ter alguém que possa levantar essa bandeira comigo?

Minha resposta: Querida L., é um processo, e cada um tem o seu ritmo, a sua personalidade, as suas lutas. Sei que dói quando algo que é fundamental pra gente é ignorado pelo nosso companheiro. Hoje de manhã mesmo eu fui compartilhar com o maridão a dúvida de uma leitora sobre o que ela pode fazer pra alertar uma amiga que está num relacionamento abusivo. E o maridão respondeu que aquela conversa não era interessante, levantou-se, e saiu do quarto. Eu quis jogar qualquer coisa nele.
Felizmente, não é todo dia que ele acorda de mau humor. Mas não, o maridão nunca se assumiu feminista. Ele jamais foi machista, lógico. Desde que o conheci, 23 anos atrás, fiquei surpresa ao ver uma pessoa tão sem preconceitos. Ele nunca fez uma declaração sexista, racista, ou homofóbica, e isso é de tirar o chapéu. Eu já fiz -- um monte. 
Quando o conheci, ele não era de direita. Muito menos de esquerda. Era um alienado político. 
Eu e maridão em Joinville, 1994
Votava pra vereador em amigos, independente do partido. Não se engajava em campanha nenhuma. Votava sem prazer ou convicção. Claro que, convivendo com uma pessoa de esquerda, pouco a pouco, sem grande esforço, isso foi mudando. A glória foi quando, no final dos anos 90, eu e ele fomos jantar na casa do meu editor no jornal, e o sogro desse editor quis canonizar em vida o FHC, e o maridão jogou o cerimonial de boas maneiras às traças e passou a responder. Foi uma discussão calorosa. Fiquei orgulhosa dele -- era um Silvinho politizado, muito diferente daquele que eu havia conhecido quase uma década antes.
Maridão e eu em Paris, 2011
Mas o feminismo não é importante pra ele. Em parte porque temos uma relação de muita igualdade aqui em casa. Com exceção de matar barata, não existem tarefas masculinas e femininas neste lar (graças a zeus, com a dedetização, não apareceu nenhuma barata no ano todo neste andar em que moramos). Eu e ele fazemos tudo (ou melhor, nada; vamos deixar no "não muito"). Nunca discutimos sobre dinheironem eu nem ele damos a mínima se agora estou ganhando mais. Então o feminismo é um assunto meio obsoleto na nossa vida de casal. Simplesmente não há necessidade de falar nisso. Aliás, pra quem está cansado de feminismo, fica a dica: ajude a combater o machismo e os outros preconceitos. Quando vivermos numa sociedade justa, não haverá motivo pro feminismo existir.
É verdade que eu nunca sofri algum abuso sexual como você sofreu (e, como você é jovem, pra você tudo isso é recente). Minhas histórias de horror são bem fraquinhas em comparação. Mas taí uma arena que a maior parte dos homens não consegue entender. Eles não imaginam como é viver, desde a pré-adolescência, pensando no que vestir pra não chamar a atenção, sendo bolinada no transporte público, ouvindo grosserias na rua, tendo medo de ser estuprada. Quero dizer, os caras bacanas são os que nem pensam no assunto. Os babacas são aqueles que perpetuam os abusos, seja participando ativamente, seja contando piadas ou fazendo pouco caso de situações que atingem... ahn, metade da população?
Óbvio que há homens feministas que empatizam com as mulheres e lutam para combater o machismo. Eu acho que meu maridão é um deles, embora ele não se assuma feminista, nem se engaje muito. Mas certamente as pequenas ações que ele faz, os diálogos que ele tem com outras pessoas, são anti-preconceito. 
Seu namorado deve ser jovem. Já já ele te alcança. Se não, e se ter um namorado que levante as mesmas bandeiras é tão importante pra você, procure um namorado feminista. Eles existem!

sábado, 28 de dezembro de 2013

GUEST POST: O FEMINISMO ME LIBERTOU DA CULPA

A R. (não é nem sua inicial verdadeira), hoje uma importante ativista feminista na internet, decidiu relatar sua história de horror

Há quinze anos...
Era uma noite quente, uns amigos iriam tocar num bar, fui prestigiá-los. Um dos amigos que estava tocando me apresentou seu melhor amigo, que ficou me fazendo companhia no bar. No meu copo havia cuba libre. Eu não misturava bebidas justamente para não ficar bêbada, sempre odiei perder o controle da situação, mas não foi assim naquela noite.
Fui ao banheiro e quando voltei o amigo havia me feito uma gentileza e pedido outra cuba libre para mim. Na metade da dose me sentia estranha, meio flutuando... 
Falávamos de música antes de eu ir ao banheiro, e ele havia dito que no porta cds do carro dele havia o cd de uma banda que eu gostava muito, e que ele me emprestaria. Ele me pegou pela mão e disse "vamos lá pegar o cd". Mesmo receosa, eu não conseguia reagir. Ele me levava e eu ia com ele como se não houvesse nada que eu pudesse fazer.
Quando chegamos ao carro ele abriu a porta do lado do passageiro e me fez sentar, dizia "Você está bem? Parece meio longe". Mas ele disse isso e começou a me beijar e se colocar em cima de mim. Disse a ele várias vezes: "Não, eu não quero, pare por favor" mas não havia forças em meus braços para empurrá-lo e nem impedi-lo.
Lembro de ouvi-lo dizendo coisas nojentas, pornográficas. Lembro dele dizendo que eu não precisava me preocupar porque ele não havia gozado dentro: "não quero engravidar nenhuma vadia", disse ele.
Ele passou para lado do motorista e ordenou: "se arruma e desce".
Atordoada, sem saber direito o que estava acontecendo, era assim que eu me sentia, consegui sair do carro, ouvi o barulho do motor, ele arrancou e sumiu. 
Sentada na calçada comecei a chorar. Algumas pessoas passavam por mim mas não se aproximavam; afinal de contas, era só uma mulher que havia bebido demais tendo um crise de choro.
Durante anos fiquei me culpando, pensava "isso que dá beber" ou "por que você foi praquele carro?" ou ainda "ele achou que seu não era um sim porque você estava bêbada e não soube se expressar com convicção".
Hoje eu sei que ele sabia exatamente o que estava fazendo. Aproveitou-se da minha fragilidade, ignorou meus "nãos" e fez uso do meu corpo como quem usa um objeto e depois descarta. E para finalizar ainda disse como se sentia a respeito daquilo, quando ele me chamou de vadia, o que ele quis dizer foi que eu era só mais uma mulher "que não se dava ao respeito". E isso justificava ele fazer o que bem entendesse, não só comigo, mas com qualquer mulher que não estivesse dentro dos padrões que ele aceitava como "mulher para namorar".
Nunca mais o vi depois deste dia. Passei quinze anos sem saber que aquilo havia sido um estupro, achava que não. Até que em contato com o feminismo descobri que era. Consegui superar. Minha experiência vai ajudar outras mulheres a identificar canalhas como ele e se forem vitimas, saberem-se vítimas.
O feminismo me deu consciência de que fui vítima, de que não provoquei a situação, de que eu era apenas uma mulher, curtindo a noite em um bar, com sua dose de cuba libre, e ele mais uma machista, que adulterou a bebida que me ofereceu, para tirar proveito de forma criminosa da situação.

Aproveitando, mesmo que isso não tenha muita relação com o relato da R., que não aconteceu numa universidade.
Algumas estatísticas de estupro sobre abuso sexual em universidades (americanas)
Entre uma em cada três e uma em cada cinco mulheres jovens será vítima de alguma forma de violência sexual enquanto estiver na universidade.
85% dos abusos sexuais são cometidos por conhecidos.
O álcool é a droga predatória número um nos campi universitários.
Menos de 2% das denúncias de estupro são falsas. Mais gente finge sua própria morte do que mente sobre ter sido estuprada.