quinta-feira, 29 de novembro de 2012

TOMARA QUE SEJA MENINO

Foi a sempre antenada Valéria que me passou esta notícia triste: “Mãe engana até cartório e cria filha como se fosse menino em Goiás” (veja o vídeo). Uma mãe falsificou o documento de nascimento da filha e conseguiu registrá-la como Samuel. Depois que a tia da menina (com menos de dois anos) tirou sua roupa e viu que ela não era um Samuel, a mãe perdeu a guarda da criança, pelo menos enquanto for julgada.
O que chama a atenção é como a menina aparece na reportagem -– coberta de rosa dos pés à cabeça, como se estivesse sendo recondicionada a ser mulher. A matéria também fala que ela recebeu “brinquedinhos femininos”. Porque, né?, deus proíba que ela cresça sem aprender a dar papinha a uma boneca ou limpar a casinha! Aí sim seria um trauma irreversível!
Parece que a mãe quis criar a menina como menino porque ela, a mãe, havia sofrido abuso sexual na infância, e queria proteger a menina do mesmo destino. Espero que essa mãe receba tratamento psicológico e possa criar a criança. É meio evidente que a mãe não cometeu a fraude para prejudicar a filha, e sim para protegê-la. E, se a gente pensar nas nossas histórias de horror -– não sei se toda mulher tem uma história de horror pra contar, como eu já disse algumas vezes, mas a maior parte de nós certamente tem -–, verá que só o fato de nascer mulher já nos coloca em situação de risco.
Este caso me lembrou de outros. Um documentário lançado este ano diz quais são as palavras mais fatais do mundo. São “É uma menina”. Essas três palavrinhas valem uma sentença de morte em vários países do planeta, onde ser mulher é visto como uma irreversível desvantagem social e econômica. Segundo as Nações Unidas, existem aproximadamente 200 milhões de meninas “desaparecidas” no mundo. Há indícios que Índia e China eliminam mais crianças do sexo feminino que o número de meninas nascidas nos EUA a cada ano. O distrito chinês com o pior número tem 163 meninos registrados para cada 100 meninas. Taiwan, Coreia do Sul e Paquistão também são países em que meninas não desejadas são abortadas, assassinadas ou abandonadas.
Como sabemos, genocídio é a matança de um grupo específico. E estamos falando de um grupo, mulheres. É um genocídio secreto dirigido a um só gênero, um generocídio.
E é um crime muitas vezes perpetrado por mulheres, no ambiente doméstico. Sabe como só gerar filhas colocava em risco a vida das esposas de Henrique VIII, lá pelo século 16? A mesma coisa continua acontecendo hoje em vários países. Na Índia, várias mulheres que não conseguem gerar um herdeiro são espancadas, estupradas ou mortas para que o marido possa casar com uma mulher mais “produtiva” (em outras palavras, que seja capaz de parir um varão).
Muitas vezes se fala que essa discriminação por gênero acabaria se a pobreza desses países diminuísse. Mas não é verdade que pobreza gera feminicídios. Na África e no Caribe, por exemplo, não há registros da prática de matar bebês meninas. E boa parte do infanticídio feminino em países como Índia e China acontece justamente em famílias com mais dinheiro, que têm acesso a ultrassom para verificar o sexo do feto e a clínicas onde possam fazer um aborto (fui informada que ultrassom é proibido na Índia, justamente para que pais descubram o sexo do feto). Aliás, abortar o sexo que não convém não é uma prática tão incomum nas nossas clínicas de fertilidade aqui no Brasil. Mas esse é um assunto pra lá de polêmico que merece um post só pra si.
Na China, onde durante muito tempo só se podia ter uma criança por casal, até dá pra entender (jamais justificar) por que os pais não iam querer que essa chance única gerasse um ser que traga tantas desvantagens. Mas, na Índia, onde não existe essa restrição, os motivos para não se querer meninas são que em geral elas não irão trabalhar e precisarão casar através de dote. Ambas são sociedades patriarcais, como a nossa, por sinal. E como todas as sociedades ocidentais. Ainda que a prática de matar meninas seja proibida por leis, ela persiste entre a população.
Antes que gente desprovida de inteligência venha dizer que estou me contradizendo por apoiar a legalização do aborto e condenar a prática do aborto quando o sexo do bebê não é o desejado, explico: o corpo é da mulher, e é ela que deve escolher quando quer ter o filho (lembrando que métodos que impedem a gravidez são sempre muito menos traumáticos que um aborto). Mas, nesses casos de aborto seletivo, por gênero, há uma imposição social para que a mulher aborte. Ou seja, é pra se pensar se ela realmente tem escolha. Assim como eu seria contra maridos, namorados ou pais que forçassem uma mulher a abortar, sou contra a imposição de uma sociedade para que seja feito o aborto seletivo. É totalmente diferente você querer reproduzir, e então abortar caso não saia o resultado desejado (um menino) de não querer reproduzir e engravidar sem querer, e aí abortar.
Em outros países não há assassinato de meninas, mas a situação é tão desfavorável às mulheres que trocar de sexo passa a ser uma solução. Na Albânia, há mulheres que fazem um voto de castidade para poder se vestir e viver como homens numa sociedade patriarcal. Só assim essas mulheres conseguem obter vantagens não cabíveis para mulheres, como recusar um casamento arranjado ou herdar as posses da família. Enfim, ter alguma liberdade.
No Afeganistão, muitas famílias que só têm filhas reservam a uma delas o papel de homem. Essa filha será vestida como menino (Bacha Posh) desde o início de sua vida. Desta forma, além de proporcionar status à família, que aos olhos da sociedade têm um garoto, esta menina vestida de menino protegerá suas irmãs. Ele usufruirá de uma vida proibida às mulheres, como ir à escola, viajar, praticar esportes, e ter um emprego. Só que todos esses privilégios serão válidos somente até que ele atinja a puberdade.
A partir daí, ele terá que se vestir e comportar como mulher. Inclusive, terá um casamento arranjado como as outras mulheres. Mas imagine a dificuldade que é ter de abrir mão de seus privilégios e voltar a ser o gênero discriminado. A maior parte dos Bacha Posh não quer retornar a ser mulher, porque viu como mulheres são tratadas. Um deles diz: “As pessoas usam palavras de baixo calão com as meninas. Gritam com elas nas ruas como se fossem bichos. Quando vejo isso, eu jamais penso em voltar a ser uma menina. Quando eu sou garoto, eles não falam comigo assim”.
O mesmo sistema patriarcal que abusa sexualmente de meninas e comete feminicídio também não é nenhuma garantia de felicidade pros meninos. Homens adultos são vítimas de mortes violentas em número muito maior que mulheres. A diferença é que quase sempre homens são mortos por outros homens. Portanto, o que precisa ser jogado na lata de lixo da história é o patriarcado, que insiste num modelo de masculinidade autoritário, violento, insensível, e nocivo para todo mundo, um modelo que só começou a ser questionado nas últimas décadas. Se um dia formos capazes de derrubar o sistema, meninas deixarão de ser mortas por serem meninas. E nenhuma mãe sentirá ser preciso falsificar o sexo de sua filha para protegê-la de abusos. Tomara que este dia chegue logo.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"EU FUI ESTUPRADA?"

B. me enviou este relato. E eu sei que o tema é polêmico e que vai me render algumas pedradas, mas pedi permissão para publicá-lo mesmo assim.

Email da B: Há anos uma dúvida me intriga muito e tenho certeza de que muitas mulheres também têm a mesma dúvida.
É muito fácil saber quando um estupro é um estupro em casos extremos: quando há violência, recusa, reluta, choro, grito e dor. Mas em casos menos extremos, como a gente sabe? Como a gente classifica? Existe uma gradação que torna alguns estupros mais "aceitáveis" do que outros? Eu fui estuprada?
Há cinco anos, aproximadamente, no dia em que voltei ao Brasil depois de ter morado um tempo fora, um amigo meu me chamou para ir a sua casa para tomarmos uma cerveja. Aceitei, é claro. Ainda não tinha visto nenhum amigo desde que havia voltado e estava com saudade deles.
Já na casa, conversa vai conversa vem, cerveja vai cerveja vem, ele começa a me beijar. Eu jamais teria cogitado ficar com ele, porque ele era um cara com uma aparência meio esquisitona e eu jamais tinha sentido atração por ele. Eu virei a cara e disse que isso era muito estranho. Ele puxou de novo meu rosto, disse que "estranho é bom" e tornou a me beijar. Ele então me encaminhou para o quarto e eu fui, meio relutante. Eu não sabia o que pensar da situação; eu estava bêbada e não sabia se queria isso ou não, então meio que me deixei ser levada pela situação, embora eu transparecesse estar desconfortável e hesitante. Ele me deitou na cama e começou a tirar minha roupa. Eu tapava meus olhos com as mãos e ficava repetindo que era muito estranho, mas não fazia nada para fazer com que ele parasse. E eu tampouco incentivava o sexo ou demonstrava tesão. Tenho a impressão de que eu dizia "não, não", às vezes, com os olhos tapados, mas já não tenho mais tanta certeza disso. Depois que acabou, eu coloquei minha roupa e fui para a casa. Chorei um pouco no caminho e me senti abusada.
Eu fui de fato abusada?
Embora eu saiba que ele não agiu da forma mais correta, eu também sei que ele não fez por mal. Eu sei que se eu tivesse dito um "não" mais categórico ele teria parado, porque ele é uma das pessoas mais gentis e respeitosas e queridas e prestativas que conheço. Talvez se eu não tivesse bebido eu teria dito "não" de início e ele teria respeitado. Talvez se ele não tivesse bebido ele teria levado em conta meu claro desconforto com a situação e teria parado. Talvez, por ser uma pessoa socialmente diferente e por provavelmente ter tido poucas experiências sexuais, ele tenha agido mal por não saber como agir. Por não saber o que, nessas horas, era errado. Isso torna o ato dele mais aceitável? Sempre penso que a culpa é minha, que eu deixei acontecer, que ele achava que eu estava querendo que acontecesse. Será que ele achava isso mesmo? Será que ele se aproveitou da minha falta de ação na hora e propositalmente não impediu o sexo, embora percebesse que eu não queria? Ou ele não percebeu que eu não queria? Nunca sei exatamente o que achar disso tudo.
Ficamos mais ou menos um ano sem nos falar, e depois aos poucos voltamos a ser amigos e hoje somos grandes amigos de novo. Até ficamos de novo por pouco tempo, no ano passado, e eu, enquanto ficávamos, pela primeira vez toquei no assunto daquela noite, mas sem mostrar que eu o culpava de abuso nem nada parecido. Ele disse "naquele dia eu fiz tudo errado, tudo errado...".
Eu deveria ter sido mais dura com ele? É muito estranho que eu tenha voltado a falar com ele sem guardar rancor? Eu deveria guardar rancor? Eu deveria sentir nojo dele? Eu deveria tê-lo denunciado? Teria sido "overreaction" se eu o tivesse denunciado? É um sinal de submissão o fato de eu achar que ele não tem culpa de nada porque eu sei que ele não tinha a intenção de me abusar, embora tenha, de certa forma, me abusado? Devo soar como uma daquelas mulheres submissas e apaixonadas que encobertam violência e abuso domésticos. Mas eu realmente não desconfio do caráter desse meu amigo. Ele é uma boa pessoa e acho que o que aconteceu foi só um erro.
Mas quão grave é esse erro?
Como eu deveria ter reagido?
Como posso categorizar esse acontecido?
Me soa duro demais dizer que foi estupro. Mas será que foi? Se não foi, foi o quê?
Essa situação me deixou extremamente confusa. E imagino que essa confusão deva estar presente na cabeça de muitas, muitas mulheres.
Às vezes me sinto uma idiota por pensar que foi estupro; às vezes me sinto uma idiota por pensar que não foi estupro.
Como é que reconhecemos um estupro, nesses casos menos extremos?

Minha resposta: Bom, em primeiro lugar quero dizer que sinto muito por vc estar passando por essas angústias todas.
Em segundo lugar, é muito difícil eu dizer se o que aconteceu entre vc e seu amigo foi estupro ou não. Se nem vc sabe!
Todo estupro é inaceitável, é claro. Mas tem aqueles (que geralmente são os únicos que são punidos, e mesmo assim sempre se duvida da vítima) em que resta pouca dúvida. É quando o estuprador segue o clichê de "desconhecido numa rua deserta à noite". Se há muita violência física, de ferir a vítima, as pessoas tendem a crer que houve estupro. 
Em quase todos os outros casos, a maior parte das pessoas costuma achar que não. E na maior parte dos casos o estuprador é conhecido/amigo/familiar etc. E acontece em casa, não na rua! A maior parte desses estupros não é sequer denunciada. E me diga se uma violência direta, ou a ameaça dessa violência física, é necessariamente pior que uma ameaça do tipo "se vc não transar comigo vou procurar a sua irmã"? Ou "se vc não deixar eu te mato", vindo de um conhecido?
Eu acho que "meio que ser levada pela situação" não é estupro. Estupro é sexo sem consentimento. Vc não consentiu, mas vc também não recusou. Vc não disse "não" categoricamente, e vc não tem certeza se disse "não, não". Acho que seu amigo foi um babaca por não levar um "não" tímido ou um "isso é muito estranho" mais a sério, e acho que muitos homens fazem isso (e são ensinados a fazer), mas não que seja necessariamente estupro.
Uns dois ou três anos atrás aparecia uma comentarista meio chatinha no meu blog. A gente discordava sobre tudo. Em geral, ela era muito mais "suave" no seu feminismo do que eu, mas, quando o assunto era sexo, ela era categórica: ela achava que fazer sexo quando não se queria era estupro. Tá, parece óbvio. Concordo. Mas esse "não querer" é relativo, não acha? Por exemplo, vc tá com seu namorado, e ele quer transar, e vc não. Mas ele vai fazendo uns carinhos e vc, mesmo sem estar a fim, acaba transando com ele. Eu não consideraria isso estupro de jeito nenhum. Mas essa minha leitora considerava.
Eu já fiz sexo algumas vezes sem estar com vontade. Mas ainda assim foi consentido. Pra mim é diferente transar sem vontade de transar sem consentimento. Quando transei sem estar muito a fim, fiz pra agradar. A gente (qualquer um) faz um monte de coisa pra agradar na vida, e muitas dessas coisas a gente faz sem vontade. Meu marido também já transou comigo sem ele estar com muita vontade. Não consigo ver nada disso como violência.
E quanto a transar com caras que eu nunca pensei em transar, mas aí ele começou e eu fui deixando pra ver como seria (mesmo achando estranho), bom, já aconteceu algumas vezes também. Se bem que eu não disse "não" e nem estava bêbada... Sabia muito bem o que estava acontecendo, mas não tinha certeza mesmo se queria transar com aquele cara ou não. E fui deixando. E nesses casos quase sempre o sexo é muito ruim, não é? Pelo que me lembro...
Eu concordo com todos os "talvez" que vc colocou naquele parágrafo. Talvez se vc tivesse dito um não mais categórico, seu amigo teria parado. Talvez se ele não tivesse bebido, ele levaria o seu suave não mais a sério. Isso não torna o comportamento dele mais aceitável (continuo achando que ele agiu feito um idiota insensível e egoísta naquela noite -- o ideal seria que no primeiro "não", na primeira hesitação, a pessoa parasse na hora), mas tampouco faz dele um estuprador.
Eu acho que vc mesma dá a resposta quando diz "Eu sei que se eu tivesse dito um 'não' mais categórico ele teria parado, porque ele é uma das pessoas mais gentis e respeitosas e queridas e prestativas que conheço". Se vc sabe disso, tem certeza disso, vc tem a sua resposta.
Se vc deveria tê-lo denunciado, mesmo com tantas dúvidas? NÃO. Mesmo que a enorme maioria das acusações de estupro não gere condenações, estupro é uma acusação seríssima. Se vc tem tantas dúvidas sobre o que aconteceu e sobre o que vc queria e sobre o que vc fez e sobre o que ele fez, vc fez bem em não denunciá-lo.
Eu acho que vc foi muito generosa em não guardar rancor nem ódio dele. Mas acho bom. Se vc guardasse rancor dele, vc provavelmente guardaria rancor de vc também, por não tê-lo denunciado, por achar que a culpa foi sua... Essa parece ser uma amizade importante pra vc. Não estou dizendo, de jeito nenhum, que se vc tivesse certeza que foi estupro, vc não deveria denunciá-lo pra salvar a amizade. Num caso desses dane-se a amizade, ele tem que ser denunciado sim! Mas esse não parece ser o caso que vc narrou.
Eu não sou a dona da verdade, então não posso responder categoricamente à nenhuma das suas perguntas. Mas não acho que vc esteja sendo submissa por perdoá-lo e por não guardar rancor. E não existe uma reação certa. Existem muitas reações. Se isso acontecesse novamente, com esse mesmo amigo, vc muito provavelmente reagiria diferente, não? Ou não dá pra saber? Ou depende do dia? Se algo parecido acontecesse com outro amigo, vc também agiria diferente. Mas não existe uma forma correta de agir. Quer dizer, talvez o seu amigo deva saber que a forma como ele agiu não foi correta de jeito nenhum. Mas, como eu disse, nem por isso foi estupro.
Querida, acho que vc não tem que ficar se martirizando. Faz muito tempo (cinco anos, né) que isso aconteceu, vc não tem certeza de nada, vc e o cara são amigos, vc acha que ele é um cara legal... Na dúvida, considere que não foi estupro. E se não foi estupro, foi o quê, vc pergunta? Não sei, uma noite péssima? Uma transa que vc não tinha vontade nem sentiu prazer? Só sexo ruim, mas sem nada de violência? Acho que é forte demais vc marcar isso como estupro e ter que carregar esse fardo. Porque vc tem muito mais dúvidas do que certezas!
Se vc quiser falar com seu amigo sobre isso, porque isso ainda te incomoda (e dá pra ver que te incomoda), tente conversar com ele. Sem brigas, sem acusações, só tentando explicar pra ele as suas dúvidas e porque isso te perturba e porque vc acha que ele agiu errado naquela noite. E, se vc quer desculpas, exija desculpas. Ele dizer que "fez tudo errado" não é um pedido de desculpas.
Não tem uma fórmula certa pra reconhecer se foi estupro num caso assim. Vai muito da pessoa. É a pessoa que se sente mal que tem que manifestar o tamanho do seu sofrimento. E, baseado nisso, denunciar ou não seu amigo. Claro que a gente aprende que casos assim não são estupro, e a gente faz um esforço danado pra se convencer disso, e muitas vezes, anos mais tarde, a gente acha que foi, sim. É uma reação bastante comum. Mas vc não concluiu nada. 
Lembre-se que estupro tem mais a ver com demonstração de poder que com tesão. O cara que estupra raramente é um cara que não consegue controlar seu desejo; é um cara que quer usar sexo pra mostrar quem manda, pra humilhar. Pelo que vc narra, essa não parece ter sido a atitude do seu amigo.
Não sei se este email gigantesco mais te ajuda ou atrapalha. Mas espero que vc chegue as suas próprias conclusões, se é que já não chegou a elas ainda.

B responde: Acho que você tem toda a razão. Não foi um estupro. Foi uma transa ruim, numa noite ruim, numa situação de vulnerabilidade emocional. Pior do que qualquer outra experiência sexual que eu tive e que pudesse ter sido caracterizada da mesma forma, isso foi. Mas não foi estupro. E eu acho que já estava convencida disso antes mesmo de você me responder (como você mesma já notou), mas acho que eu precisava ouvir isso de uma pessoa que não tivesse tido um envolvimento tão pessoal quanto o meu. Ouvir isso de uma pessoa imparcial me dá mais segurança sobre meu julgamento. Porque estou cansada de saber de histórias de estupro que são amenizadas pelas próprias vítimas por causa do seu envolvimento com o estuprador. E tinha medo de achar que talvez eu fosse uma dessas pessoas. Medo de achar que era só eu contar o acontecido a uma pessoa qualquer, mesmo com todos os meus "talvez", que essa pessoa qualquer poderia tê-lo rotulado facilmente como um estupro, embora eu mesma não me convencesse disso. Não foi o caso. Fico feliz por isso, embora eu fique triste por perceber que carreguei essa dúvida por mais tempo do que eu precisava.
Se tem uma coisa que qualquer mulher numa situação semelhante tem que fazer é dividir isso com alguém. Relatar. Perguntar. Ouvir. Abrir-se sem manipular os fatos por proteção. Dá mais forma ao acontecido e às vezes resolve coisas que, sozinha, a gente não resolve nunca.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

TODA MANEIRA DE AMOR VALE A PENA

Pessoas queridas, em abril a editora Primeira Pessoa entrou em contato comigo me oferecendo dois exemplares de um livro -– um pra mim, e um pra alguma leitora ou leitor que eu escolhesse. Como a temática era interessante, aceitei. Só que, lógico, com a minha proverbial falta de tempo, levei meses pra ler Toda Maneira de Amor Vale a Pena, de Bety Orsini.
O livro é muito bom e pode ser facilmente encontrado por 25 reais em várias livrarias. A autora narra vinte relatos de como pessoas de diversas profissões, raças, classes sociais e religiões lidam com sua homossexualidade. Ou seja, como descobriram que eram gays ou lésbicas, quando assumiram, como foi a aceitação (ou rejeição) da família, o que mudou em suas vidas, os preconceitos que tiveram de enfrentar, suas paixões. 
Começa com um personagem famoso: Michael, do vôlei. Lembram dele? Ano passado, em Minas, o jogador de SP, disputando uma semifinal da Superliga Masculina de Vôlei, foi hostilizado pelo público. Numa demonstração patente de homofobia, o ginásio em coro passou a gritar “Bicha! Bicha” toda vez que Michael chegava perto da bola. Ele foi tirado do armário à força. Bom, em termos. Sua equipe sabia que ele era gay, sua família também, mas ele, discreto, nunca tinha se assumido publicamente para todo o país. As entrevistas que deu tiveram grande repercussão, e ajudaram a espalhar a tolerância. E, por que não?, a encher de vergonha os espectadores que participaram da demonstração de homofobia coletiva.
Há outros casos de pessoas menos famosas, mas que marcaram momentos importantes na luta LGBT, como o artista Evandro que, em maio de 2010, recebeu a primeira pensão concedida por morte de pessoa do mesmo sexo em processo administrativo aprovado pelo INSS em todo o Brasil. Seu parceiro havia morrido de câncer, e Evandro passou a receber um salário mínimo de pensão. Diz ele: “Não preciso desse salário para viver, preciso dele apenas para mostrar que esse amor existiu e foi reconhecido”.
Um casal gay interracial, Carlos e André, conseguiu adotar duas meninas que viviam num abrigo. Ao invés de fazerem o que faz a maior parte dos casais gay que tenta a adoção -– obter a guarda para apenas um dos pais -–, Carlos e André conquistaram o direito de adotar de forma compartilhada. Por conta disso, são geralmente chamados para palestras.
Já Suzana e Gy, consultoras financeiras, Gy grávida de um filho, uma vez foram a um restaurante no Rio com os pais de Gy. Como na entrada estava escrito “Casal janta conosco e mulher não paga”, exigiram duas promoções. Mas o garçom rebateu que a promoção era pra “casal normal, de homem e mulher”. Elas ameaçaram entrar na justiça por discriminação, e o garçom pediu para que elas se beijassem, para provar que eram um casal. Mais adiante, se desculpou e as serviu muito bem.
Tem também o depoimento politizado de Andre Fischer, que tem um blog no site Mix Brasil, o mais antigo portal gay do Brasil. Pergunta ele: “Por que Zapatero, no primeiro mês no poder, aprovou o casamento gay na Espanha? Porque sabia que era uma questão emblemática de defesa dos direitos humanos. Foi o que aconteceu na Argentina. Não é que a Cristina Kirchner seja ultrassimpatizante. Ela quis levantar a bandeira para dizer: 'Aqui os direitos são respeitados'. Quanto mais avançados a sociedade e o país, mais os gays são inseridos. Garantir o direito de quem é homofóbico é loucura!”
E por aí vai. 
É muito gostoso poder ler todas essas histórias de pessoas simpáticas, guerreiras, com experiências tão diferentes. E o livro está bem escrito.
Então, para escolher quem receberá este belo presente de natal, vou fazer algo inédito: um sorteio! Quem quiser participar deve deixar um comentário na caixa deste post. Só isso. Podem ser os mesmos comentários maravilhosos que vocês escrevem sempre, não precisa ser nada específico. 
Vou fazer o sorteio amanhã, às 10 horas da noite (horário de Fortaleza), usando o Random.org, que escolherá um número aleatório pra mim. Pessoas que comentarem mais de uma vez, só vai contar um dos comentários, ok? E, neste sorteio, vou considerar apenas as pessoas que comentam com um nome ou um avatar. Em outras palavras, não pode ser anônimo. Aí eu vou colocar o nome que o Random escolheu, e a felizarda ou felizardo (o número do comentário) terá que me mandar o endereço para que a editora envie o livro pra elx.
Vamos lá, participem! É meu primeiro sorteio em quase cinco anos de blog (pão dura miserável, eu?). E o livro super vale a pena!
UPDATE 28/11: Sorteei, pessoas lindas! E o número que o Random escolheu foi 94. Que, pela minha listinha, é a Lais Flores. Parabéns, Lais! Por favor, me mande um email com seu endereço. 
Foram 303 comentários, dos quais concorreram 298. Muito obrigada pela participação! Agora que muitxs de vcs perderam a vergonha e comentaram pela primeira vez, seus interesseiros e suas interesseiras, não sumam. Comentem sempre! Não dói. Daqui a uns dias ou semanas (quando sair a segunda edição) eu sorteio um exemplar do meu livro. E volta e meia eu recebo alguns livros por aqui. De agora em diante, vou sempre pedir pra editora me mandar dois livros, assim eu posso sortear um entre vcs. 
Ah, e vcs que não ganharam, tirem a mão do bolso e comprem o livro. De preferência pelo Submarino aqui do blog, que eu ganho uma comissão mínima (5% ou 8%? Aliás, o Submarino tá pagando?). Abração!
UPDATE 16/12: Como a Lais não se manifestou de lá pra cá, e não posso ficar esperando pra sempre pra enviar o livro, vou realizar um outro sorteio agorinha. 
E o número vencedor foi... 149! A vencedora agora é a Lorena (não é a mesma Lorena do número 49). Por favor, entre em contato comigo por email e me envie seu endereço, para que eu possa pedir pra editora te enviar um exemplar do livro. Se a Lorena não se manifestar até 26/12, terei que fazer um outro sorteio...

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

GUEST POST: REAGI À VIOLÊNCIA

Ontem foi o Dia Internacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, e publiquei um guest post sobre violência obstétrica. No sábado, foi a vez de uma leitora do movimento estudantil narrar o abuso sexual que sofreu. Hoje C. relata sua sua história de horror, mas com um final diverso do que costumamos ler.

Logo eu, que sempre falei, escrevi e publiquei, dessa vez escolho o anonimato. Lola, sou feminista há bastante tempo, atuo em coletivos, tenho blog e uma rede de ativistas ao meu redor. Mas, por alguma razão, no momento quero contar uma história sem revelar a protagonista, porque acredito que poderia ser qualquer uma de nós. Pensei no seu blog por ser um espaço bastante diverso, que pauta questões cotidianas e, em especial, casos de violência sexista.
Hoje, eu tenho uma história de horror pra contar, mas o final é um pouco diferente. Eu estava na casa de um amigo e precisei ir embora por volta das 20h, então ele me levou até o ponto de ônibus. A lotação chegou normalmente, me despedi e entrei. Na hora de passar a catraca, notei um homem meio bêbado sentado no chão ao lado do motorista, com uma garrafa de cerveja na mão, balbuciando coisas. Logo depois da catraca, deu pra perceber que três moleques na faixa dos 20, do tipo "causões", metidos a malandros, acompanhavam o cara, falando alto e rindo. Ignorei e me sentei no banco à frente deles, no assento da janela. Agora percebo que se tratava de um ambiente ameaçador, onde eu deveria ter ficado alerta, mas, na hora, achei que não devia me preocupar.  
Estava usando fones de ouvido que isolam o ambiente, distraída, ouvindo minha música, quando de repente senti alguém do banco de trás me cutucando no ombro. Tirei os fones e disse "Pois não?". Era um dos moleques que tinha visto antes. Ele vestia uma camiseta rosa e me perguntou se eu gostava de rosa, com um sorrisinho e aquele tom de voz "olha, sou bandidão". Eu uso piercing, a maioria das minhas roupas são pretas e eu suponho que no senso comum eu me enquadre como algum tipo de "roqueira", ou alternativa tosca, alguma coisa assim, pro tipo do cara que me abordou, logo, acredito que era alguma tentativa de me zoar ou dar alguma cantada estúpida. Respondi algo como "Não, mas pode usar. De boa", e voltei ao meu fone imediatamente, deixando de ouvir qualquer outra coisa que pudessem ter dito.
Eu, como mulher, estou habituada ao tratamento machista e abusivo nos espaços públicos. Cantadas, gracinhas, todo tipo de assédio, que costumo revidar, ainda mais por ter consciência de que não é direito dos homens nos constranger, e de que temos direito de ir e vir nas ruas sem sofrer ameaças de estupro e ouvir grosserias. Não engulo desaforo e já passei por situações bem tensas, mas nenhuma comparável ao que aconteceu em seguida naquele ônibus.
Sem que eu notasse a movimentação anterior, aquele homem bêbado, com uma camiseta de time de futebol popular e seus 30 anos, barba por fazer, alto e com uma garrafa de cerveja barata na mão, sentou-se ao meu lado de forma intimidadora, me pressionando contra a janela. Tomei um susto, porque foi uma aproximação muito brusca. Olhei para ele, me encarava com uma expressão típica de quem vai assaltar ou agredir alguém, mas, na versão patriarcal, equivalia a um olhar estuprador, do tipo que violenta de longe. Aqueles olhos avermelhados e sádicos estavam a apenas um palmo da minha cara.
Ele dizia coisas nojentas, dignas de um agressor sexual, e repetia constantemente "Não vai nem olhar pra mim?", eu tentava empurrá-lo pro lado e ele não cedia. Eu não conseguia olhar novamente, meu coração acelerou, ele continuava me assediando e expandindo seu corpo em direção ao meu. Uma sensação de terror tomou conta de mim, ouvia as risadas daqueles moleques amigos dele ao fundo, pensava no que fazer pra sair daquela situação. 
Era um bairro estranho, perigoso, olhei pra fora e as ruas eram escuras e desertas. Ele podia descer atrás de mim. Pensei em levantar e mudar de lugar, mas ele iria atrás, ou pior, nem deixaria eu me levantar. Olhei pra cobradora e ela tinha um olhar de pena. Comecei a apertar as mãos nervosamente. Me senti profundamente violada naquele momento. Ele ultrapassou todos os limites, invadiu meu espaço e estava me agredindo com um forte terrorismo psicológico, com teor misógino. O meu medo só dava mais prazer a ele; conforme eu me encolhia ele avançava, sorrindo como um monstro. Minha decisão de tentar ignorá-lo só fazia com que ele exigisse mais e mais a minha atenção, e não sei a que ponto ele teria chegado, se não fosse o que ocorreu no instante seguinte.
Quando meu único conforto era conseguir não encará-lo de frente, ele fez algo que enfim destruiu qualquer possibilidade de fuga: comigo já esmagada contra a janela, ele se posicionou diante dos meus olhos, colocando a cabeça na minha frente a uma distância de uns 10 cm. Eu não podia mais ignorar. Pensando agora, talvez a única opção de uma garota devidamente educada por uma sociedade patriarcal fosse começar a chorar -- talvez fosse exatamente isso que ele e a plateia esperassem.
Mas, espera aí, eu não sou só uma garotinha assustada, pensei eu, naquele um segundo decisivo. Eu sou feminista, eu participei de aulas de auto-defesa para mulheres, eu aprendi e ensinei mulheres a reconstruírem sua autoestima e conhecerem sua própria força, eu bradei aos quatro ventos que nenhum machismo passaria, e que as mulheres precisavam se fortalecer e lutar contra seus opressores. Por que eu derramaria uma lágrima? Por que daria àquele agressor o triunfo da minha rendição e do meu sofrimento? Por que eu seria mais uma vítima que é impedida de se defender? Por que, mais uma vez, eu seria vencida pela cultura do estupro, que dá a homens estranhos nas ruas o direito de invadir meu espaço e violar minha integridade?
Foi então que os limites da teoria foram rompidos, e trazidos à prática. Não sei explicar ao certo como ou de onde surgiu, mas alguma coisa explodiu dentro de mim. De repente aquele era meu inimigo, e devia ser destruído. Em um segundo, eu empurrava com toda a minha força aquele sujeito para longe e gritava SAI DAQUI; no outro, ouvia lentamente ele dizer "Eu...não...encostei...em...você", e, diante da permanência daquela figura horrenda à minha frente, segurava no pescoço ossudo e desferia um, dois, três murros na face. Respirava, gritava mais, e mais empurrões e socos. Ele desperta do choque: 
"Você bateu na minha cara, sua filha da p*ta?"
"Bati, e vou bater mais, seu estuprador do c*ralho." 
Ele tenta me dar um soco, eu defendo com sucesso (ok, talvez a bebida tenha me dado um milésimo de segundo de vantagem aqui), e enfim os outros rapazes interferem e jogam ele sobre o banco do outro lado.
Começa a discussão. Eu, enfurecida, quero matá-lo. Procuro uma faca, oh wait, não tenho uma faca. Pena. Em pé, grito e imponho meu corpo, berro o mais alto que posso, digo a ele que é um bêbado nojento, que merece morrer, que eu vou pegá-lo. Em coro, os três capangas da lotação dizem "Ele não encostou em você". A cobradora diz que vai chamar a polícia. Eu digo pra chamar essa porra logo, e agora. Os caras dizem "Pode chamá, quem tá devendo é você, você bateu nele sua loca". Nessa hora, os três disputam espaço comigo, numa briga à distância que define quem se impõe melhor fisicamente e causa mais receio no oponente. Nesse momento, são quatro contra uma, mas o meu ódio vale por cem. Não tinha lugar pra medo, eu estava sendo levada a sério e não ia parar. Vi os olhos transtornados, chocados, finalmente amedrontados ao redor. Ninguém mais podia rir da menininha. 
Continuei com os olhos fixos no meu inimigo, bufando, praguejando, quando um dos rapazes tocou no meu ombro e disse algo como "Você tem que se acalmar". Reconhecendo algum traço de humanidade, disse a ele "E se fosse sua irmã aqui?", porque é claro, só importa para o macho aquela fêmea que está no raio da sua propriedade e merece ser considerada gente. Imediatamente, vi o olhar dele mudando, e ele disse lentamente "Desculpa, colega... desculpa". O discurso de dois deles mudou; apenas um queria que me batessem. Os dois que "acordaram" foram levando o bêbado para o fundo, enquanto ele gritava que "muié não bate na minha cara, sua vagabunda", "vo enchê sua cara de porrada", "desgraçada" e coisas afins. Eles apenas respondiam "a mina teve um ataque e essa fita já era, vai trocá com muié?". Isso tudo deve ter durado dois minutos, tanto é que o terminal ainda estava longe, mas parecia uma eternidade.
O rapaz de rosa, aquele que agora tinha certa compaixão por mim (afinal, até sua irmã podia passar por isso, coitada), disse para que eu me acalmasse, colocasse meu fone e ficasse tranquila, porque eles iam segurar o cara até o fim da viagem. Não foi bem o que aconteceu, já que durante aqueles minutos intermináveis o bêbado ia e vinha, enchia o saco da cobradora pedindo pra chamar a polícia, apontava pra mim e xingava, gritava, ia se segurando pelos bancos e esperneando. Mas, muito importante: longe de mim. Não ousaria sentar novamente ao meu lado, ainda vago. E eu não sairia dali por nada, porque de alguma forma eu sentia que o MEU espaço devia ser protegido a todo custo.
Mas aí, a minha fúria foi passando. Aquele fogo que tinha me impulsionado a reagir drasticamente foi dando lugar a uma sensação terrível de insegurança, pavor e receio. O que eu havia feito? Podia ter morrido! Com quem eu fui mexer? E se estivessem armados? Eu estava em uma lotação que vinha de um complexo de favelas, e eu, pequenina burguesa de m*rda, não deveria temer aquelas pessoas? Não estava no meu território, não tinha ninguém por perto, e estava confrontando ao máximo todos aqueles caras. Só tinha uma cobradora e um motorista, e mais meia dúzia de pessoas apavoradas naquele veículo.  
Cheguei ao terminal fragilizada, e o agressor, ao contrário, usou aquele tempo pra se fortalecer. Tentou me agredir novamente antes de ser arrastado pra fora pelos amigos, e eu consegui pará-lo mais uma vez, não me pergunte como. A cobradora pediu que eu ficasse na lotação até ele embarcar no metrô, do outro lado, porque ele queria me bater a todo custo, gritava feito um louco e assustava a todos no caminho. Aquela cena foi muito chocante, todas aquelas pessoas me olhando de olhos arregalados, a cobradora tentando me proteger, o cara berrando que ia me matar, estuprar e sei lá o que, e eu tremendo de medo, já aos prantos. O rapaz de rosa ainda teve tempo de bater no vidro e me pedir perdão mais uma vez, com os olhos marejados. Então, o motorista acompanhou o grupo até ter certeza de que o cara tinha embarcado, e voltou pra me dizer que eu já podia sair. A essa altura eu já chorava muito, as pernas estavam bambas, e eu fui tomada por uma paranoia de que ele voltaria a qualquer momento pra me matar. Desci, e o motorista me aconselhou a tomar um café em um bar próximo antes de ir, pra não correr o risco de encontrá-lo.
Atravessei a rua sem pensar, entrei em um bar, pedi um café preto e liguei para uma pessoa de confiança vir me buscar de carro, contando o que aconteceu aos soluços. Mais um cara ainda veio me encher o saco, se aproveitando do momento vulnerável: "Uma moça tão bonita chorando? Posso te pagar uma cerveja?" Parece que quanto mais frágil você está, mais atrai homens dispostos a te abusar. Esquivei do cretino e esperei longos 10 minutos. Mil coisas passaram pela minha cabeça, eu via um filme onde aquele homem estava vindo me pegar, cada vez mais próximo, e tinha certeza que ninguém ia me ajudar. Eu batia os dentes incessantemente, mas não sentia frio. 
Fiquei olhando para as facas do lado de dentro do balcão da padaria, calculando como poderia pegar uma rapidamente e acertar a jugular do crápula, ou uma garrafa que eu poderia quebrar, qualquer coisa, não podia contar com ninguém. Se um dia qualquer uma de vocês estiver em uma situação extrema, não espere que alguém sinta compaixão, as pessoas têm mais curiosidade e um desejo mórbido de ver a coisa pegar fogo do que capacidade de oferecer auxílio.
Felizmente, logo a pessoa chegou pra me socorrer e eu voltei em segurança. Fisicamente eu estava intacta, fora algumas dores nas articulações resultantes do estresse, mas, psicologicamente, me sentia destruída. A paranoia, as tremedeiras, o ranger dos dentes e as pupilas dilatadas duraram por mais algumas horas (e eu fui pedir justo um café no bar?). O pior de tudo era a sensação de profunda injustiça. Como pode você estar quietinha, no seu canto, tranquila, e de repente aparecer um sujeito maldito desses pra tirar seu sossego e te infernizar de graça? Mas o pior é que eu tenho a resposta pra isso, e (ainda) se chama patriarcado.
A verdade é que todos os dias milhões de mulheres são importunadas, assediadas, tocadas sem seu consentimento, agredidas verbal e fisicamente, abusadas sexualmente e estupradas, em espaços públicos e privados. A verdade é que sair na rua é uma batalha diária, porque em um sistema de dominação masculina, supõe-se que mulheres estão sexualmente disponíveis e não são suficiente humanas para terem seus espaços respeitados. Pode ser um cara de bermuda ou gravata, que pode dizer "Oi, princesa" ou "Quero f*der sua b*ceta", pode te perseguir ou apenas berrar do outro lado da rua, pode passar de carro e gritar alguma asneira ou passar do seu lado e sussurrar no seu ouvido, pode pegar no seu braço ou passar a mão na sua bunda, ou, no pior dos casos, tentar te violentar. Mas, no fim das contas, a motivação de todas as situações é a mesma, em todas elas somos silenciadas, constrangidas e violadas, e todas são, em maior ou menor grau, invisibilizadas ou normatizadas pela sociedade. Eu chamo de terrorismo machista, e considero uma opressão sistematizada.
Defender-se ainda é um grito solitário no escuro. Refletindo depois, já que não conseguia pensar em outra coisa, concluí que a experiência foi traumática, porém necessária. Não havia nada que eu pudesse ter feito além daquilo, fui encurralada como um cão medroso e ele merecia a mordida. Mas devo dizer, reagir não é como as pessoas imaginam. Não há nenhum tipo de prazer em atacar seu agressor. O sentimento é de que é a coisa mais triste do mundo você precisar fazer isso. É revoltante ter que agir dessa maneira, porque você não teve culpa nenhuma, você sabe que não fez nada errado, você simplesmente é mulher e os homens te enxergam como um alvo constante.
Um dos meus medos ao contar essa história era de que inspirasse outras mulheres a reagirem de forma impensada, e de fato, quero que fiquem atentas ao risco. Recomendo sempre reagir, mas tendo em mente que o objetivo é sempre sair da situação, nunca confrontar o agressor diretamente. E, principalmente, é preciso prevenir essas situações, estudando os ambientes, as pessoas ao redor e imaginando as piores possibilidades -- viver na nóia e com medo? Exato. Welcome to patriarchy. Eu podia, facilmente, ter sido espancada, morta ou qualquer coisa do tipo, tenho consciência disso, mas foi um caso muito específico em que não tinha pra onde correr, então não me arrependo. Sou uma moça de um metro e sessenta e poucos, magra, ajeitadinha, e não precisei ter uma força descomunal pra intimidar fisicamente um homem, apenas muito ódio, alguma técnica e determinação. Não estou dizendo que o combate físico é uma opção, porque é perigoso demais, mas acredito que todas as mulheres deviam conhecer sua força e treinar alguns golpes para emergências como essa.
Talvez eu seja o tipo de pessoa que aceita a ideia de correr riscos em nome da resistência, mas isso não deve servir como exemplo. Se tem algo que eu gostaria de dizer para todas as mulheres nesse momento, é que precisamos romper o silêncio e levar nossas histórias de horror a público, auxiliar outras mulheres a reagir, compartilhar com todxs em quem confiamos, porque o problema é real, grave e urgente. Já imaginou sair na rua livremente? Ir e vir sem ser importunada? Parece o mínimo, mas o caminho ainda é longo até que os homens entendam que somos pessoas, e vamos ter que lutar pelo direito de ocupar nosso lugar no espaço público. Eu decidi prosseguir reagindo, treinando minha postura, buscando formas de me fortalecer fisicamente e emocionalmente, encarando meus medos de perto, pela minha sobrevivência e dignidade. Prefiro ser acusada de exagerada do que me sujeitar a um agressor.
E aos que desqualificam minha atitude, alegando que é perigoso demais reagir, deixo as reflexão: desde quando a passividade diante de um agressor é garantia de segurança?