quinta-feira, 31 de outubro de 2019

ELEIÇÕES URUGUAIAS E O DESAFIO DA ESQUERDA CELESTE

Publico aqui a análise inspirada que Patrícia García escreveu sobre as eleições uruguaias para o blog. Jornalista e tradutora, ela escolheu Montevidéu como lar e a América Latina como bandeira. Anteontem publiquei um ótimo texto dela sobre o plebiscito. 

Talvez você não conheça muito sobre o Uruguai, mas provavelmente já ouviu falar de um de seus maiores filhos, o escritor e poeta Eduardo Galeano. Dentro da obra de Galeano está o livro As veias abertas da América Latina, leitura imprescindível para compreendermos a construção deste nosso cantinho no mundo. É de Galeano também a frase: "Somente os tontos acreditam que o silêncio é um vazio”. E é através dela que vamos entender um pouco do que está acontecendo no pleito deste ano, tendo seu primeiro turno no último domingo, 27.
O Uruguai já é uma exceção muito curiosa em diversos aspectos: com 3,5 milhões de habitantes, em uma região marcada por conflitos ideológicos e influências externas que trazem instabilidade, o “paisito” consegue manter uma democracia sólida e estável, admirada ao redor do mundo. É um país pioneiro em direitos sociais, com uma sociedade com grande conhecimento histórico, memória vívida e acolhimento a diferenças e liberdades individuais. É o segundo país do mundo com tempo recorde sem recessão (15 anos sem crise, só perdendo para a Austrália, que carrega a marca de 17 anos). Por que, então, deveríamos nos preocupar com uma onda conservadora em um país tão avançado socialmente? 
Porque ela é silenciosa. Porque, muito parecido com o que o Brasil vivenciou nas eleições de 2018, o conservadorismo brota em discursos confusos e arrebanha aqueles que experienciam a vida através da tela da TV. Aqui, onde as eleições acontecem a cada 5 anos e o sistema de votação é um pouco diferente daquele do Brasil, a esquerda vem sustentando os pilares sociais e econômicos já há 3 mandatos. Nestes 15 anos, o Uruguai se recuperou de sua pior crise econômica, diversificou parceiros comerciais, fugindo da dependência de Brasil e Argentina, criou a Ley Trans, para a proteção de transgêneros, leis contra feminicídio, legalizou o aborto e levou ensino digital ao interior do país, entre muitas outras coisas. O Uruguai viveu o sonho progressista até ser contaminado pelo discurso liberal imperativo que tomou conta da América do Sul.
Sendo um povo que naturalmente discute muito a respeito de temas políticos nacionais e internacionais, e também uma sociedade que tem por característica a melhoria contínua, o uruguaio raramente está plenamente satisfeito. Sempre falta algo a se fazer. Diante disso, o principal argumento da direita para entrar nas casas charrúas não foi inicialmente a crítica aos feitos do governo da Frente Ampla (FA), mas sim aquilo que poderia ter sido feito. Esse movimento, que vem acontecendo há alguns anos, plantou no uruguaio a semente de uma urgência por mudanças, o que não é condenável, mas que pode ser usada por mentes mal-intencionadas. 
Especialmente se tais mudanças não são claras para quem as pede, nem para quem as oferece. Esse incômodo crescente do povo juntou-se às fake news, aos ataques digitais (inclusive políticos atacando os próprios companheiros de partido) e à falta de uma liderança expressiva da esquerda (como Pepe Mujica, que naquele momento havia se aposentado). 
Diante deste cenário, que possui algumas semelhanças com o que tivemos no Brasil nas últimas eleições, conseguimos entender um pouco essa guinada do povo uruguaio. Além disso, a crise militar de novembro de 2018 e a atitude tomada pelo presidente Tabaré Vasquez de certa maneira dividiu a opinião popular e trouxe para a discussão o papel e o espaço que os militares deveriam ter na política.
Essa crise, que culminou no afastamento e prisão do então comandante do Exército, General Guido Manini Rios, e mais 3 servidores por ocultação de crimes de ditadura, gerou uma grande polêmica entre os cidadãos. Dotado de um discurso atrativo, Manini Ríos criou seu próprio partido, o Cabildo Abierto, assim que saiu da prisão. Semelhante a seu par ideológico, Edgardo Novick, autodenominado “bolsonarista”, e que concorreu nestas eleições pelo Partido de La Gente, Manini apostou bastante no discurso de segurança. 
O levantamento de homicídios do país informou que havia um aumento no número deste tipo de crimes mas que este aumento era devido a guerra de gangues em áreas de fronteira. Trabalhando apenas com a primeira parte da informação, os partidos com espectro direitista decidiram investir no tema e fazer uma jogada estratégica: votar um plebiscito de segurança no mesmo dia das eleições.
Com o tema da polêmica reforma, que previa, entre outras coisas, a criação de uma Polícia Militar, os partidos de direita e centro-direita (Nacional e Colorado) e os partidos de extrema-direita (como o Partido de La Gente e o Cabildo Abierto) tomaram este assunto como foco de seus discursos, desviando as discussões sobre outros tópicos. O debate eleitoral se deu ao redor de dois temas apenas: segurança e crescimento econômico, este último trazido pelos neoliberais Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional e Ernesto Talvi, do Partido Colorado, um típico Chicago Boy que ganhou apelo especialmente entre os jovens. Além disso, as disputadas primárias do Frente Amplio, os desacordos entre as comissões e alguns conflitos internos que aconteceram durante e após as primárias, prejudicaram o foco do partido na candidatura de Daniel Martinez. 
Martinez, que foi prefeito de Montevideo e apenas deixou o cargo para concorrer à presidência, escolheu Graciela Villar, uma sindicalista pouco conhecida, como sua vice, deixando de lado aquela que parecia a escolha natural do partido, a ministra Carolina Cosse. Isso gerou um desconforto aparente no partido. Cosse é muito conhecida e respeitada até por aqueles que não são frenteamplistas e poderia ter uma força que era necessária para a FA neste momento. A dificuldade de transferência e resgate de votos fizeram até mesmo com que Pepe suspendesse sua aposentadoria e pleiteasse uma volta ao senado.
O primeiro turno que tivemos domingo não deixou ninguém tranquilo. Não se pode garantir que tenhamos uma continuidade da esquerda no Uruguai e infelizmente, no caso de uma possível coalizão da direita, esse sonho está cada vez mais distante. A grande disputa do segundo turno será entre o modelo social-econômico oferecido por Martinez e o modelo neoliberal oferecido por Lacalle Pou, um tipo semelhante ao Dória e que possui grande capital político herdado da sua família. Com pai ex-presidente e bisavô líder político, Lacalle possui uma extensa rede política e midiática que o tem ajudado a ganhar espaço com os uruguaios. 
No domingo, os 30% alcançados por Lacalle neste primeiro turno foram, em termos políticos, maiores que os 40% de Martinez. Eles mostram que há uma perda grande de força da Frente, maior do que o imaginado em um primeiro momento, e que há um apelo sedutor no neoliberalismo proposto por um partido que em sua história recente tem beneficiado as camadas mais ricas. Como disse Pepe Mujica, em um momento de autocrítica: “Nosso erro (como esquerda, na América Latina) foi transformar o cidadão em consumidor”. Infelizmente, essa mudança silenciosa hoje grita nas urnas.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

MARIELLE VAI DERRUBAR BOLSONARO?

A cara do desespero

Tenho menos de uma hora pra escrever este texto, depois viajo. Mas não dá vontade de fazer mais nada além de acompanhar o nosso país pegando fogo!
Então, umas perguntinhas básicas: você mora num condomínio que pode ser chamado de Escritório do Crime pelo número de milicianos por metro quadrado? Você é vizinho de um cara que guardava 117 fuzis em casa, e cuja filha namorava o seu filho? Você é vizinho e amigo de vários acusados de ter matado a vereadora Marielle Franco? Não? O seu presidente é.
Ontem o Jornal Nacional deu com exclusividade uma notícia bombástica: no mesmo dia em que Marielle foi executada (14 de março de 2018), Élcio Queiroz (não é aquele Queiroz que você está pensando), acusado de ser o motorista do carro que matou a vereadora, chegou ao Condomínio Vivendas da Barra e pediu para ir à casa número 58, onde mora Jair Bolsonaro. O porteiro registrou o nome e a placa do carro e ligou para a casa 58, que autorizou a entrada de Élcio. 
Mas Élcio foi à outra casa do condomínio, de número 66, onde morava Ronnie Lessa (acusado de ser quem atirou em Marielle, aquele que tinha 117 fuzis em casa). O porteiro viu isso através das câmeras e ligou para a casa 58, que respondeu que sabia para onde o carro estava indo. Esse porteiro diz ter falado com "seu Jair", mas Bolso estava em Brasília no dia (só por curiosidade, Carluxo também mora no condomínio, na casa 36, que pertence a Jair). 
Tem mais de um Jair na casa 58. O número 4 de Bolso, conhecido como Renan (aquele que namorava a filha de Ronnie), na realidade se chama Jair Renan Bolsonaro. Pode ter sido ele que atendeu e liberou a entrada de Élcio? Tem gente dizendo que condomínios de alto padrão como o de Bolso permitem ligações pros celulares. Assim, o porteiro pode ter falado com Jair Bolso em Brasília. 
De qualquer jeito, pausa pra ironia! Acho o máximo que reaças acusam Adélio Bispo de ter recebido ligações do Jean, do Manu, do Glenn, até de mim, no mesmo dia em que supostamente esfaqueou Bolso. Aí a realidade é que, poucas horas antes de Marielle ser morta, um dos assassinos foi até o condomínio do presidente e teve autorização da casa dele para entrar. Outro assassino já vivia lá.
Por mais que as ligações perigosas entre Bolso e os assassinos de Marielle tenham sido expostas internacionalmente em março (até a Fox News mostrou!), as evidências nunca foram tão concretas. Se o porteiro estiver falando a verdade (por que não estaria? Por que colocaria sua vida em risco? E o registro antes da morte de Marielle?), isso é gravíssimo. E pode levar o caso a ser investigado pelo STF, por causa do foro por prerrogativa de função
Ontem à noite, Bolso, que estava na Arábia Saudita, fez uma live histérica e histórica. Durante pelo menos metade dos 23 minutos, ele berra. O negócio foi tão escandaloso que eu estava vendo o vídeo num quarto, e meu marido estava em outro, e quando eu falei pra ele, ele não acreditou que fosse o presidente gritando. Pensou que era um imitador, uma sátira. 
Nessa live, Bolso xingou a Globo, a mídia toda, acusou o governador (de direita), Wilson Witzel, de vazar o segredo de Justiça e dar as informações de bandeja para a Globo, planejando se lançar candidato a presidente em 2022, chamou Marielle de Mariela, queixou-se de sempre ser perseguido (lembrando denúncias inconvenientes, como a avó e mãe de Micheque terem sido presas), repetiu muito as palavras "canalhice" e "patifaria".
E ainda nos deu insights de coisas que eu, pelo menos, nem tinha imaginado ao ver a reportagem do Jornal Nacional. Primeiro, fez várias alusões à prisão dos filhos. Como bem lembrou Guilherme Boulos, a matéria mal os citou. Bolso disse que a Globo teria um orgasmo quando um de seus filhos fosse preso. Não é fantástico?
A outra coisa é que Bolso reclamou de lançarem suspeições sobre sua terceira esposa. Afinal, se Jair não estava na casa 58 no momento das ligações, quem atendeu? Qual outro macho estava lá? (esse é o Jair que vocês conhecem e confiam!).
Na live, Bolso também pediu ao sinistro da Justiça, que ficou caladinho diante de todo esse escândalo (assim como sempre fica quando qualquer membro do governo de que faz parte é acusado de algum crime), para que o porteiro seja ouvido pela Polícia Federal. O miliciano disse na live que ou o porteiro está enganado, ou não leu o que assinou. Vale lembrar que o porteiro não só anotou a visita de Élcio Queiroz para a casa 58 como ainda deu dois depoimentos. Eu não queria estar na pele desse porteiro, que agora deve estar correndo risco de vida. Ele já está em sistema de proteção?
Hoje Moro fez o que o seu chefão mandou, o que configura outro escândalo. Na maior cara de pau, Moro escreveu cobrando uma "investigação isenta" (por falar em cara de pau extrema, vejam a nota da Globo). Ele está tirando as investigações das mãos de uma polícia para entregá-las nas mãos de uma polícia que ele controla. 

O advogado de Bolso, que tem a maior cara de mafioso, disse que o presidente não conhece nem é amigo de Élcio (há várias fotos!), falou em "forças ocultas" (o último presidente a usar esses termos não acabou bem) e chamou as denúncias de "um ato terrorista sem precedentes neste país". Sem precedentes eu concordo! Quando que um presidente da República esteve tão próximo assim de PMs assassinos?
Aliás, concordo com Glenn Greenwald: numa cidade com tantos milhões de habitantes, não é coincidência demais que Bolso viva no mesmo condomínio que o suspeito de atirar em Marielle?
Hoje ficamos sabendo que Carluxo tem acesso aos registros do condomínio. Quantas provas será q ele já conseguiu destruir de ontem pra hoje? E com a total cumplicidade do sinistro da Justiça Moro?
Hoje também ficamos sabendo que Bolso já sabia que seria citado no caso Marielle desde o dia 9 de outubro. Witzel contou a ele. Quem disse isso? O próprio Bolso! Ou seja, ele teve pelo menos do dia 9 pra cá pra destruir provas. 
E seu conhecimento prévio da citação mostra que a reportagem da Globo não foi nenhuma surpresa pro miliciano! Então por que fazer uma live totalmente surtado? Pra render centenas de meses comparando-o com aquele filme do Hitler? Deve ter outra explicação!
Claro que foi pra jogar pra torcida, pra fingir indignação, ganhar tempo, e radicalizar ainda mais seus adeptos. Outro que já sabia da matéria da Globo era seu guru, como demonstra um tuíte da semana passada, em que ele disse que, ou Bolso acaba com os partidos do "Foro de SP", ou eles o derrubam em seis meses.
Há muitos outros indícios de que Bolso sabe que seus dias estão contados e quer forçar uma intervenção militar mesmo. O vídeo do leão e das hienas foi um indício. O discurso de Dudu no plenário dizendo que se o cenário esquentar no Brasil, teremos que voltar ao passado, foi outro. E agora a live de Bolso. Uma matéria da Folha de hoje cita a preocupação dos militares com essas "tensões". E diz: "Bolsonaro e seu entorno torcem pela libertação de Lula, pois isso manteria o clima de polarização do país, teoricamente o favorecendo". 
Pra mim, ainda resta a dúvida do motivo: por que Bolso mandaria matar Marielle? Sim, ela combatia os milicianos. 
E há rumores de que ela disputaria o Senado com Flávio, mas até aí... É verdade que o vereador Carlos era vizinho de gabinete de Marielle na Câmara Municipal do Rio. Em depoimento à Polícia Civil, ele contou que discutiu com um assessor da vereadora no corredor. O assessor estava dando uma entrevista a uma emissora espanhola e o chamou de fascista (que injustiça!). Mas se a familícia mandasse matar qualquer pessoa com quem já discutiu, a população brasileira estaria drasticamente diminuída. 
Uma coisa é certa: ninguém envolvido na execução de Marielle poderia imaginar a repercussão que teve. Vamos torcer para que seja essa guerreira que causará a queda de Bolso.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

TODOS QUEREMOS VIVER SEM MEDO, MAS NÃO A QUALQUER CUSTO

A jornalista Patrícia García ainda vai falar mais das eleições uruguaias que aconteceram anteontem 
(haverá segundo turno e a direita tem chance de voltar ao poder, o que seria desastroso para o país).
Porém, é importante entender que, junto com as eleições, houve um plebiscito sobre segurança que monopolizou o debate, e ajudou a direita a chegar ao segundo turno. E esse debate, baseado no medo, tem muito a ver conosco. Leia o texto perfeito da Patrícia a seguir. 

Poucos temas conseguem efervescer mais um povo do que a segurança. Caminhar nas ruas sem medo, a qualquer horário, não ter que correr por alguns becos, nem sentir-se hesitante ao pegar um táxi, uber ou ônibus é um desejo de qualquer pessoa no mundo e algo pelo que lutamos a cada dia. Exatamente por ser um assunto de tamanho apelo, também é fácil entender o impacto que ele tem na sociedade e como pode ser usado politicamente para conduzir uma situação favorável a um partido ou candidato. 
Se a segurança já é um tópico presente em qualquer pleito mundo afora, na América Latina, com seus conflitos e instabilidades, é praticamente impossível fugir dessa constante  discussão. O bombardeamento de crimes hediondos pela mídia mainstream e a sensação de medo e caos que são pintados em momentos em que a população precisa se manifestar é uma arma muito valiosa. No Brasil, acompanhamos essa tática do terror ser usada incessantemente pelo PSL para justificar certos discursos e atrair uma parcela da população horrorizada com as notícias e encantada com a ideia de “fazer justiça com as próprias mãos”.
Essa receita de alimentar o medo e oferecer uma solução que em outros momentos não seria nem discutida é antiga e acontece no mundo todo. Claro que, mesmo sendo um país muito progressista e historicamente consciente, o Uruguai não escaparia de algo do tipo. Como a discussão e o acompanhamento político fazem parte do cotidiano do povo, é natural que as pessoas debatam propostas de lei à exaustão e tentem encontrar soluções novas para problemas antigos. E é dentro deste contexto que, no último domingo, 27 de outubro, os uruguaios foram às urnas para eleger seu próximo presidente e demais representantes, e também para votar uma controversa reforma constitucional.
O projeto de lei “Vivir sin miedo” (Viver sem medo) foi proposto em fevereiro deste ano pelo senador e, até então, pré-candidato à presidência Jorge Larrañaga (Partido Nacional). Após recolher 400 mil assinaturas para que houvesse uma discussão sobre segurança nacional, o senador apresentou ao congresso seu projeto e pediu um plebiscito. Depois de muitas discussões, o Partido Nacional, Partido Colorado e Cabildo Abierto (todos de direita e extrema-direita), conseguiram encaixar o plebiscito dentro das eleições deste ano.
A proposta, altamente polêmica, prevê quatro pontos fundamentais: prisão perpétua para crimes hediondos; busca e apreensão em período noturno; eliminação do direito de redução de pena; e criação de uma Guarda Nacional (espécie de PM). Se os três primeiros pontos já são passíveis de discussão acalorada, o último mexeu com o povo uruguaio. O Uruguai já teve uma experiência de Guarda Nacional e ela foi particularmente ativa durante a ditadura. Para um povo que cultiva tanto a própria história, ter militares nas ruas nunca é um bom sinal. Especialmente quando eles olham para o lado e veem o espaço que os militares tomaram no Brasil, por exemplo. 
No entanto, essa discussão chega em um momento crítico para o país. Em meio às eleições mais disputadas dos últimos tempos, conflitos regionais na América Latina, onda conservadora e direitista, e pânico insuflado pela mídia e pelos candidatos, o projeto de lei  virou protagonista do debate político. Todos os partidos de direita bateram quase que exclusivamente nesta tecla, seja em suas propagandas, seja nos debates. Com tamanha mudança sendo discutida, principalmente uma reforma que envolve também o sentimento histórico do povo, as outras propostas e assuntos foram deixados um pouco de lado. Claro que esta discussão é imprescindível, mas o momento favoreceu muito a direita e dividiu o país.
Após a apuração de anteontem, onde 54% dos eleitores foram contra a reforma, pouco temos para comemorar. Quase metade do país disse às urnas que não veria problema em conviver com militares nas ruas, que uma solução extrema valeria para uma situação que não é extrema. No final das contas, a vitória do "NO" não foi uma grande vitória. Através deste plebiscito pudemos ver o medo do povo estampado em uma papeleta. E, além do Partido Nacional, que em meio a toda a confusão cravou um segundo turno, o grande vencedor da noite foi o Medo. E este nunca é um bom conselheiro.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

COM O CAPITALISMO FALINDO, A DESIGUALDADE AMEAÇA AS DEMOCRACIAS

A direita brazuca olha com medo para as eleições na Argentina e no Uruguai e para os protestos no Chile e Equador, e só sabe bradar "Foro de São Paulo". 
Ela continua sem entender que o perigo não é o comunismo, mas o capitalismo. E que a ameaça à democracia vem da direita, não da esquerda, como se vê no Brasil.
Para um panorama mais internacional da situação, reproduzo o artigo que Jamil Chade escreveu para o jornal El País na semana passada. 

Quito, Londres, Barcelona, Beirute, Hong Kong, Santiago e até mesmo Bagdá e Argel. Praticamente nada une essas cidades pelo mundo. Suas populações vivem realidades sociais radicalmente diferentes. São governadas por partidos de ideologias políticas das mais variadas e cada qual conta com uma história única.
Mas algo nas últimas semanas as aproximou de forma surpreendente: a ira de suas populações contra as autoridades.
Em Santiago, foi o preço do transporte que levou os estudantes a bloquear o maior sistema de metrô da América do Sul, obrigando o governo a declarar “estado de emergência”. Em Beirute, uma taxa sobre o Whatsapp transbordou o copo de uma sociedade empobrecida e com 40% de seus jovens sem trabalho.
Em Barcelona, o movimento independentista aglutinou parte dos cidadãos enfurecidos diante do colapso da ilusão de crescimento e do sentimento de traição de um acordo de autonomia cuidadosamente negociado.
Em Londres, no penúltimo sábado, milhares protestaram pela cidade por conta da indefinição sobre o destino do país e do Brexit. Ao tentar sair do prêmio do Parlamento mais tradicional da Europa, deputados tiveram de ser escoltados pela polícia diante da fúria popular.
No Iraque, centenas tomaram as ruas –- e morreram -- para protestar contra a falácia da democracia num país que, quase duas décadas depois de retirar um ditador sanguinário, ainda não conseguiu encontrar seu destino. Em Argel, a queda do governo de Abdelaziz Bouteflika não foi suficiente para acalmar uma população esgotada.
E, em Hong Kong, o que começou como um protesto contra a ingerência chinesa se transformou num ato de força de uma população que não quer perder seus direitos.
Em cada uma delas, o que ficou claro foi a insatisfação popular diante da descrença em relação ao compromissos dos líderes em servir aos cidadãos. Abusados em suas inteligências, sofrendo para pagar suas contas e fartos de uma elite que insiste em não reconhecer a disparidade de renda cada vez maior na sociedade, esses locais foram tomados por um profundo desgosto em relação à autoridade.
Pelas ruas de Quito, Beirute ou Argel, os cartazes assustadoramente se parecem. Palavras como “traidores”, “democracia” e “poder popular” ganham espaço em diferentes línguas, em diferentes formas.
Certamente, alguém virá para alertar: não há como comparar Lenín Moreno a Boris Johnson. Claro que não. Também existirão aqueles que alertarão sobre o risco de esses movimentos estarem sendo manipulados pela oposição ou por grupos que estariam interessados em promover a instabilidade social. Reconheço que esse elemento pode existir.
Mas há uma pergunta básica que precisa ser feita: o que vem levando milhares à ruas? Como explicar a explosão de raiva contra governos eleitos, autoridades estabelecidas ou constituições ratificadas?
Uma das explicações mais plausíveis seria a constatação do fracasso do sistema em atender aqueles aos quais precisa servir.
Num recente informe, o Fórum Econômico Mundial alertou: a crise econômica que eclodiu em 2008 continua a gerar um impacto negativo, minando as bases da sociedade. Não se trata de uma entidade que quer derrubar o capitalismo. Muito pelo contrário. Mas a realidade é que até mesmo os organizadores de Davos, a Meca do sistema financeiro, entenderam que os 10 trilhões de dólares jogados pelos bancos centrais às economias para socorrê-las da crise na última década não funcionaram.
Melhor dizendo: não funcionaram para uma parcela da população, que foi obrigada a viver com menos, trabalhar mais e reajustar até mesmo seus sonhos.
Certamente aberrações como a das contas gregas precisavam passar por uma reforma. Mas quem pagou por elas?
Para sociedades em diferentes partes do mundo, o que se viu foi o estabelecimento de uma década perdida, enquanto a concentração de renda ganhou um novo patamar até hoje inédito.
O exército de desempregados transformou a psicologia de famílias inteiras, levou a um aumento do suicídio, viu a volta de doenças que tinham desaparecido e até reduziu as expectativa de vida em alguns locais.
Uma década depois, os bancos têm seu futuro assegurado. Mas não a renda de milhões de famílias. E, não por acaso, isso tudo se traduziu em um novo comportamento político e social.
No fundo, o capitalismo foi salvo. Mas não necessariamente as sociedades.
Em cada local do mundo, tal crise foi lentamente traduzida de forma diferente nas ruas, nas urnas. Mas um elemento as une: a fúria.
Em seu mais recente livro Rage Becomes Her, a escritora Soraya Chemaly questiona o argumento de que a raiva seja irracional. Para ela, essa ira é, no fundo, o idioma da Justiça. Em sua obra, ela trata de como a desigualdade encarada pelas mulheres começa no nascimento e as acompanha até a morte.
Extrapolando essa avaliação, não seria exatamente esse o sentimento de milhões de marginalizados da sociedade ao entender que seus sonhos serão apenas sonhos? O próprio Fórum de Davos constatou que, hoje, para a camada mais pobre dos brasileiros ou colombianos chegar a ter uma renda média de seus respectivos países, terão de esperar de oito a nove gerações.
Mesmo em alguns locais da Europa, com sua ampla rede social, os mais pobres também terão de esperar quatro ou cinco gerações para serem considerados como classe média. Como não desesperar?
Neste ano, o Electoral Psychology Observatory da London School of Economics (LSE) constatou que metade da sociedade britânica hoje se diz enfurecida contra pessoas que votaram por partidos opostos ao nosso. Um terço dos entrevistados confessa sentir ódio. A mesma pesquisa concluiu que um em cada cinco britânicos poderia considerar a possibilidade de uma revolução.
O contexto de nossos dias também levou o professor da Williams College, George Marcus, a pesquisar uma sociedade com medo e com raiva. E suas conclusões são explícitas: sim, tal situação tem um impacto direto nas escolhas políticas de um país. “Ignorar a raiva e não entender o medo nos deixarão cegos”, alertou.
Quem não está cego é o movimento populista, que já entendeu que pode canalizar toda essa fúria em apoio a seus partidos que governam pelo ódio. Pessoas que instrumentalizam essa ira popular para chegar ao poder, prometendo supostas soluções fáceis.
Basta sair da UE que seremos ricos. Basta fechar nossas fronteiras que estaremos seguros. Basta tirar esse partido do poder que teremos nosso futuro assegurado.
Não é exagero dizer que o mundo dito livre está em uma encruzilhada. Se partidos tradicionais e as elites não ouvirem as ruas e transformarem seus regimes políticos, se não aceitarem que a prioridade é lidar de forma urgente com a desigualdade social, o que está em jogo não é apenas sua permanência no poder. Mas a própria democracia.