sexta-feira, 31 de maio de 2019

CRIANÇAS AINDA POR FORA DA "UBERIZAÇÃO DO TRABALHO"


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Adorei esse diálogo. Tudo bem, pode não ter acontecido. Mas quem convive com crianças e ouve o que elas têm a dizer sabe que é totalmente plausível!
Esses dias saiu uma excelente reportagem da BBC sobre a dura vida dos entregadores de iFood, Rappi etc em SP: 
eles trabalham doze horas diárias e pedalam até 80 kms por dia. Motociclistas costumam ganhar o dobro que ciclistas. Quase 12% tem curso superior completo ou pós. 97% é homem. 
Mesmo assim, é claro que a uberização do trabalho é ainda pior pras mulheres.
Mas o que uma criança entende disso? Estar perto de uma pizza quentinha parece mesmo melhor que ser "médico de dente". 
Que essas crianças se mantenham inocentes por muito tempo. Ou que, até que elas cresçam, o que costuma se chamar hoje de "uberização do trabalho" (o emprego cada vez mais precarizado, sem carteira assinada ou direitos trabalhistas) já tenha desaparecido. 
Difícil. A tendência é que, em países pobres como o nosso, os empregos só fiquem piores. E, pra jogar a pá de cal, quem está no poder quer acabar com as universidades. 
O que vai sobrar? Como disse a perspicaz Manuela D'Ávila numa palestra em Fortaleza em março, "Lá fora nos países ricos eles criam o Uber. Aqui nós dirigimos o Uber". E o iFood, Rappi etc. 
E o capitalismo tenta vender isso como grande oportunidade de empreendedorismo, não como trabalho barato. 

quinta-feira, 30 de maio de 2019

SEGUNDO GRANDE PROTESTO NACIONAL É HOJE!

Quero ver todo mundo tomando as ruas hoje em defesa pela educação e contra o governo mais pavoroso da história do país. 
O último protesto no dia 15 foi lindo e divino. Eu marchei em Fortaleza com muito orgulho. E uma cosia que não falei pra ninguém naquela semana: do meu lado, durante boa parte da passeata, estava uma jovem freira. Ela gritava e cantava as mesmas palavras de ordem que todo mundo. Tinha de tudo lá: estudantes, professores, sindicalistas, trabalhadores em geral. Nenhum idiota útil. 
Como agora estou em Maceió, hoje vou protestar por aqui. Tomara que sejam manifestações gigantescas que enfraqueçam cada vez mais este desgoverno. Aqui o local e horário dos protestos em cada uma das 150 cidades. Vai valer como um esquenta pra grande greve geral no próximo dia 14. 
Ai ai ai ai... daqui a pouco ele cai!

quarta-feira, 29 de maio de 2019

A TRANSFOBIA NÃO APENAS MATA COMO MATA DA FORMA MAIS CRUEL

Publico este texto da lésbica feminista Luciana, apelido Luthy.

Um médico russo, ao descobrir que a mulher com quem estava se relacionando era trans (veja bem: médico! que deveria salvar vidas, né?), desmembrou o corpo dela e o colocou no forno. A mulher trans era operada, mas isso não interferiu na transfobia e misoginia do médico.
Essa notícia chama a atenção, mas pessoas trans costumam ser assassinadas com requintes de crueldade. Geralmente não são mortas a tiros. Seus assassinos precisam marcar seu ódio com mortes ainda mais agressivas. É comum serem desfiguradas e humilhadas em praça pública, como se fosse uma caça às bruxas.
Quem não se lembra de Dandara? A travesti de 42 anos foi espancada, torturada e morta em fevereiro de 2017 em Fortaleza. À luz do dia. Em público. Doze rapazes a agrediram até a morte, filmaram tudo, e compartilharam o vídeo nas redes sociais. No final, Dandara foi jogada num carrinho de mão. 
Ano passado, graças à mobilização dos movimentos LGBT, cinco dos 12 acusados foram condenados. Dois estão foragidos. 4 são menores. O que os levou a cometer esse ato bárbaro?
Dandara ajudava sua mãe com artesanatos para sobreviverem. Acabou virando um dos símbolos da transfobia por performar feminilidade. Foi morta por ser travesti, só por isso.
Ano passado Matheusa foi assassinada. Queimaram seu corpo. Num ato na Câmara de Vereadores do Rio, uma mulher trans, Joana, lembrou: "os corpos das mulheres trans têm o destino que a minha amiga Matheusinha teve: eles são carbonizados, destroçados, mutilados. É muito nítido o ódio por detrás desses atos, justamente no maior país católico do mundo". Fui ao ato de protesto na UERJ.
Não é mimimi, não é vitimismo. A expectativa de vida de uma mulher trans no Brasil é de 35 anos.
Recentemente um deputado estadual do PSL reagiu a um discurso de Érica Mulanguinho, primeira deputada trans de SP, dizendo que, se uma mulher trans (que pra ele é homem) entrasse num banheiro feminino junto com a irmã ou mãe dele, a tiraria a tapas. Acusado de incentivar a violência contra um grupo que já sofre violência demais, o deputado teve que se retratar. Depois, assumiu que é gay. Mas continua LGBTfóbico, com muito orgulho.
A hipocrisia brasileira pode ser medida nesses dois fatos: é o país que mais mata pessoas LGBT no mundo, e é também o que mais acessa pornografia trans no mundo.
Misoginia e transfobia juntas são uma bomba relógio. Mulheres trans são assassinadas das formas mais chocantes pelo simples fato de existirem. É terrível porque, assim como mulheres cis, mulheres trans e travestis são mulheres e devem ser tratadas com todo o respeito. 

terça-feira, 28 de maio de 2019

NÃO ME ABANDONE JAMAIS

Vocês já leram Não me Abandone Jamais, de Kazuo Ishiguro?
Detestei o livro e pensei em largá-lo inúmeras vezes. O maridão disse que não larguei por causa do título, que toda vez que eu pensava em substituir o romance por um outro, o título do livro me implorava para não abandoná-lo. Acho que um dos motivos de eu não ter largado é que o livro é de um ganhador do Nobel de Literatura. 
Eu pensava: em algum momento isso vai ficar bom, vai se justificar. Mas não: é decepcionante mesmo. E também não larguei porque odeio largar livros e filmes pela metade. Ou pelo começo. Depois comentei isso com meu amigo Alex Castro, que é escritor. Ele achou uma bobagem e afirmou que abandona livros sem dó. 
Eu li no Kindle, e estava já nos 12%, muito impaciente, esperando a história começar. Eu não lembro como o livro foi parar no meu Kindle. Alguém ou alguma lista deve ter recomendado. Então eu não sabia nada sobre a história, que começa com Kathy, uma cuidadora experiente em lidar com doadores. Certo, temos aí dois termos (cuidadora e doadores) que não fazem parte do nosso dia a dia. Portanto, fica a estranheza, e a vontade de saber do que ela está falando. 
Só que isso foi na primeira página. Aí você chega a 12% do livro e ainda não sabe do que a narradora está falando. Nessa hora eu recorri ao Google, que na primeira resenha, sem avisar que vinham spoilers, diz tratar-se de clones. Essas criaturas são criadas para que seus órgãos sejam usados como peças de reposição (para quem? Como? Esqueça, isso o romance não vai explicar). E este foi o terceiro motivo pelo qual eu não larguei o livro: ei, que legal, clones! Ficção científica! Distopia! Eu esperava que algo interessante pudesse sair disso.
Odiei a trama chata e arrastada em que quase nada acontece, odiei todos os personagens, mas, acima de tudo, odiei a narração. Eu não tenho que gostar de algum personagem ou do narrador pra adorar um livro. Eu adoro Lolita (narrado pelo pedófilo patético Humbert Humbert), eu adoro Psicopata Americano (narrado pelo serial killer, e pior ainda, yuppie (young urban professional) -– o coxinha viciado em cocaína e dinheiro dos anos 1980 -– Patrick Bateman), só pra citar dois exemplos que vieram fácil. Mas Não Me Abandone Jamais tem uma narradora tediosa que conta tudo da forma mais tediosa possível. 
Até entendo que o autor tenha usado este tipo de narração para mostrar um cenário claustrofóbico de seres que não se preocupam com o que acontece do lado de fora do colégio interno onde passam sua infância e adolescência. Entendo também que o estilo seja monótono e repetitivo de propósito (pra testar o leitor?) pra nos fazer ver a falta de resistência daquelas personagens. Um jeito meio hipnótico de escrever, talvez (como uma página sussurrando “duuuurma”). Mas não é isso. 
Não tem nada que apareça, por mais inútil que seja, que não será repetido outras duas vezes, no mínimo. E não não é que será repetido capítulos adiante, mas na mesma página! O estilo é mais ou menos assim: “Não quero falar sobre isso, quero falar sobre aquilo, mas antes preciso falar sobre isso. Como eu disse, pra falar sobre aquilo antes preciso falar sobre isso. Depois de falar sobre isso, poderei falar sobre aquilo”. As palavras mais usadas no romance devem ser “como eu disse”, porque eita repetição! Tudo bem, de repente a narradora é uma sonsa que adora repetir tudo que fala. Mas isso não explica que os diálogos também sejam assim!
Com uma boa edição que cortasse as inúmeras repetições, o romance poderia ser um conto. Quem sabe até um conto bacana.
O livro não é uma distopia nem uma ficção científica. Quem esperar algo do gênero vai se frustrar muito. Mas eu não esperava -– como eu disse (argh! Estou sendo influenciada!), eu peguei o livro pra ler sem saber o que era. É sobre o que nos faz humanos. Mas espero que nós humanos sejamos mais interessantes que aqueles do livro. 
Depois vi o filme de 2010, que certamente é melhor que o livro, porque o papel da narração (apesar de ter narração em off) é diminuído. 
E vocês? Leram o livro, viram o filme? Devo dar outra chance a Kazuo Ishiguro, ou todas as suas obras têm esse estilo insosso? Vocês costumam largar livros no meio?

segunda-feira, 27 de maio de 2019

BOLSONARO SONHA SER LUÍS XIV, MAS PODE ACORDAR NA GUILHOTINA

Ontem teve bolsominion indo às ruas pedir o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. 
Ah, foram uma minoria? Foi isso que os reaças disseram dos manifestantes que poucos anos atrás exigiam intervenção militar em vez de impeachment. Agora eles não podem mais pedir "intervenção militar" (eufemismo pra golpe de Estado), já que o desgoverno Bolso tem mais militares do que teve o regime militar. E também porque quem adoraria "intervir" é o vice, o general Mourão. 
Um "petista graúdo" que não quis se identificar declarou a uma revista semana passada: “O governo desmorona não por ação nossa. O Bolsonaro se tornou disfuncional para a direita, para os bancos, para os militares”. Mais do que se Bolso cairá, a dúvida passa a ser quando. O apelo do collorido "Não me deixem só" foi uma tentativa do excrementíssimo presidente tentar reverter o quadro.
Não sei como foram as manifestações de ontem. Como esta semana vai ser cheia de trabalho, preparei este post antes. Será que foi muita gente? O capetão ainda tem apoiadores? Como disse o governador do Maranhão Flavio Dino (PCdoB), "Essa manifestação tem tudo para dar errado, mesmo se der certo. De duas uma: ou serão pequenas -- aí politicamente é muito ruim --, ou haverá manifestações importantes, mas com uma pauta contra o Congresso, contra o STF. Portanto, é uma pauta que pode ser entendida como violadora de deveres constitucionais, já que foi o próprio presidente quem convocou". 
Algumas coisas são óbvias: primeiro, que governo e manifestantes vão inflar os números. Eles são experts em fake news. Pegarão as imagens mais lotadas pelo impeachment de Dilma e fingirão que foi tudo isso de gente ontem. Negarão que houve qualquer palavra de ordem anti-democrática. E, lógico, dirão que não foi Bolso que convocou a galera. Que foi tudo espontâneo. Tão espontâneos como os robôs que lançam tags pró-Bolso todos os dias. 
Mais importante ainda do que como foi o apoio a Bolso é como será nosso segundo grande protesto nacional nesta quinta, 30 de maio. Temos que nos mostrar mais numerosos que eles. Mais conscientes e inteligentes, não resta a menor dúvida. Afinal, não tem que ser um gênio pra ser mais esperto que fascistinha que defende um governo que está levando o Brasil à falência.
Publico um texto que o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) escreveu no final da semana passada.
A essa altura dos acontecimentos, resta evidente que o governo Bolsonaro caminha decidido para um fracasso precoce. Não se trata aqui de exercício de futurologia sobre impedimento, renúncia ou golpe, mas de uma inferência a partir das demonstrações dadas e reiteradas.
Ao fazer a opção pela radicalização e estimular um confronto de ruptura, o presidente renova a fé dos mais sectários seguidores da seita bolsonarista, mas se afasta de parcelas cada vez maiores da sociedade, inclusive de seus antigos apoiadores. Não à toa, os tais "protestos a favor", de nítido cariz golpista, provocaram controvérsias entre grupos de empresários, políticos governistas, na própria bancada do PSL e até mesmo entre ministros.
Engolfado por suas próprias crises, todas até aqui autogestadas, Bolsonaro levou o país à paralisia, corroeu grande parte de seu capital político e perdeu, irremediavelmente, a possibilidade de fazer uma maioria política que lhe garantisse um mandato sem sobressaltos. Como não sabe o que fazer nem como fazer, precisa fabricar inimigos internos e externos para legitimar o discurso despótico de um líder cada vez mais isolado e desacreditado. Primeiro foi a esquerda, depois o Supremo, depois o parlamento e o “centrão, depois todos esses juntos e multiplicados.
Como bem apontou, em recente entrevista, o veterano José Sarney, Bolsonaro joga todas as cartas no caos. Assim, em sua compreensão da realidade, receberia do povo -– o que ele chama de povo são seus apoiadores -– um salvo-conduto para concretizar suas tentações autoritárias. Não tem como dar certo.
A bem da verdade, o único amálgama do bolsonarismo não é um projeto do que fazer pelo país, mas do que destruir: a democracia, as forças progressistas, a educação pública, a cultura, o meio ambiente, o que existir de perspectiva de desenvolvimento soberano, os alicerces do Estado nacional. Só que um programa de desconstrução prega para convertidos e não forma maiorias, é limitado e chega uma hora que cansa.
Enquanto o presidente aspira reinar no deserto, o país segue à deriva. A economia recuou no último trimestre, as previsões do PIB foram todas revistas para baixo -– agora se fala em 1,5%, mas o provável é que nem chegue a isso -– e a depressão já aponta no horizonte. O desemprego ultrapassou 13 milhões de pessoas e segue em rota ascendente. A desigualdade de renda se ampliou sensivelmente, os ganhos do trabalho só depreciam e o custo de vida tem aumentado a olhos vistos -– o combustível e o botijão de gás estão aí para não me deixarem mentir.
Obviamente, a draga econômica tem custo político. Não dá para culpar os outros para sempre. Por isso, os movimentos de massas voltaram às ruas. Embora chamados de “idiotas úteis” pelo presidente, os estudantes e professores protagonizaram um levante de respeito contra o governo, na semana passada. Haja “idiota útil”: foram contados em milhão, em mais de 200 cidades. Programam outro encontro para o dia 30 e ainda haverá a greve geral, no 14 de junho.
O clima contra o governo começa a se instalar, como provam as pesquisas de opinião –- em todas, o traço comum é o aumento de ruim/péssimo e diminuição da avaliação do presidente. Os bolsonaristas podem desqualificar o quanto quiserem, mas terão de colocar sob suspeição Datafolha, Ibope, CNT-Sensus, XP-Investimentos, El País e todas as instituições que fizeram sondagens sobre o humor dos brasileiros quanto aos rumos do país. Ainda bem que relinchar, assim como chorar, é livre.
Convocação reaça para ontem.
Se fosse contra corrupção,
estariam pedindo no mínimo
a cabeça de Flávio
A Reforma da Previdência, agenda única do governo para a economia, só não foi para enterrada ainda porque parte do Congresso assumiu, equivocadamente, essa pauta como central. Mas a maioria para aprová-la ainda está longe de ser realidade. Com o povo na rua e o tempo passando, é possível derrotarmos essa atrocidade e preservar direitos sociais importantes.
Da mesma forma, medidas tributárias ora em estudo na Câmara são de iniciativa dos deputados. Na verdade, até agora, tudo o que se movimenta, afora da pauta divisionista de costumes e da indecência armamentista, se faz apesar do governo.
Caindo em desprestígio popular, pouco confiável e imprevisível, indisposto até com as forças que o elegeram e inútil para obter apoio às medidas que assina, Bolsonaro está virando um estorvo para seu próprio governo. Periga ficar como aquele funcionário que, de tanto faltar no emprego, um dia foi mandado embora porque o patrão descobriu que não precisava dele para o serviço.
Bolsonaro tem caráter autoritário e está inebriado pelo poder, julgando-se em missão divina, o que lhe incompatibiliza com a democracia. Pode se perder nos descaminhos da própria soberba e ganância. O presidente que sonha com um absolutismo de Luís XIV, pode acabar tendo o destino de Luís XVI, a guilhotina.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

CHICO, TE AMAMOS

Esta semana Deus, ou melhor, Chico Buarque de Hollanda, ganhou o Prêmio Camões 2018, a premiação mais importante da língua portuguesa. 
O júri levou em consideração, além dos livros de Chico (dos quais devo admitir que não sou fã), suas peças e letras de música. As letras valeram como poemas, assim como o Nobel de Literatura fez com Bob Dylan.
A premiação levou gente que vive xingando Chico, como Olavão e Lobão, a níveis estratosféricos de inveja e rancor. E, óbvio, fez todo mundo falar do Chico, que já é há décadas um dos artistas mais conhecidos e reconhecidos do Brasil (e um dos brasileiros mais famosos no exterior).
Então eu tive que contar, pela enésima vez, a ocasião em que estive na mesma pizzaria com o Chico em SP depois de um show dele, do Tom Jobim e do Milton. Fui à mesa dele e, emocionada, falei coisas como "Tudo que sou hoje eu devo a você". Quando vi o que ele escreveu pra mim, fiquei boba: "Lola, eu te amo. Chico Buarque de Hollanda". Eu contei tudo em mínimos detalhes aqui, há onze anos. Tudo isso se passou em janeiro de 1990, e já passou da hora de renovar esse autógrafo. 
Foi só eu contar isso que uma leitora no Twitter, a Sonia, decidiu me relatar a sua história: "Fiz uma doideira pra conhecer o Chico pessoalmente: hospedei-me no mesmo hotel em que ele estava, em Curitiba, durante a turnê Carioca em 2007. Gastei a maior grana, mas consegui! Amo o Chico!" Perguntei como foi, e ela: "História meio longa, mas resumindo: como hóspede, fiquei com minha amiga Rosana no lobby do hotel aguardando que ele saísse pro ensaio. Beijinhos, autógrafo (sem 'eu te amo', que isso é só pra Lola). À noite ficamos aguardando seu retorno para tirar uma foto com ele. Nisso, já tem uma multidão fora do hotel. Quando ele chegou, ficou pela grade da garagem dando autógrafos e nós aguardando no lobby. Eis que o empresário o puxa garagem abaixo, e adeus a oportunidade da foto. Inconformadas, entramos no elevador, e o ascensorista: 'Que andar?', e eu, revoltada: 'Vamos ficar pra cima e pra baixo'. O elevador para e quem está na porta?! Ele! Muita emoção e a foto com a máquina que eu comprara na lojas pernambucanas da esquina".
Sonia, Chico e Rosana, em foto num elevador de Curitiba em 2007
Enfim, já que estamos manifestando nosso amor por esse gênio, nada melhor que destacar algumas canções dele que não são tão bem compreendidas. Chico sempre inclui protagonistas mulheres em suas músicas, e por isso é quase clichê dizer que ele "entende a alma feminina" -- o que é bem essencialista, né? Afinal, o que é a "alma feminina"? Todas as 3,6 bilhões de mulheres no mundo caberiam numa só alma? 
Chico escreve muito sobre mulheres e seu lugar no mundo. Várias dessas mulheres são submissas, outras são independentes, fortes, divertidas. Vez por outra vejo pessoas loucas pra chamar Chico de machista só porque o eu-lírico de alguma de suas canções é machista. Tipo: "Sem Compromisso", que em seus shows Chico contrapõe com "Deixe a Menina". 
Uma canção do Chico que frequentemente vejo as pessoas interpretando errado é "Mulheres de Atenas". Elas não veem ironia quando o narrador canta "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas", que seriam muito submissas. A bela canção, escrita em 1976, durante a ditadura militar, fala de uma sociedade patriarcal em que as mulheres não valem nada, não têm direitos, só geram filhos para seus maridos, eles sim "orgulho e raça" de Atenas.
Quem realmente pensa que mulheres em geral devem ser belas, recatadas e do lar provavelmente verão o refrão da música como literal. Não enxergarão a ironia. Pra eles, a sociedade de Atenas deve ser copiada. Eles ignoram que o mundo mudou, que a posição das mulheres não é mais como era na Grécia antiga, de mais de dois milênios atrás. Essa gente geralmente suspira e diz: "Antigamente é que era bom!". Se eu estou por perto, eu pergunto: "Bom pra quem, cara pálida?!"
Outra música do Chico campeã das interpretações falhas é a fantástica "Geni e o Zepelim". Tem gente que acha que Chico está sendo machista por ser um na multidão a jogar pedra na Geni. Já li quem interpreta Geni como sendo uma donzela. A canção deixa bastante claro que ela é uma mulher promíscua, uma prostituta, tanto que começa com com "De tudo que é nego torto... ela já foi namorada". Depois o coro da cidade confirma: "ela dá pra qualquer um". O coro é a opinião preconceituosa e condenatória da cidade, mas o que vem antes é talvez a percepção de Geni sobre ela mesma, um "poço de bondade". 
Ou talvez o narrador esteja sendo irônico, já que Geni ser um poço de bondade pode se referir a ela dar seu corpo a "quem não tem mais nada" (cegos, retirantes, detentos, lazarentos, moleques do internato, velhinhos sem saúde, viúvas sem futuro). Sem dúvida, ela é muito mais bondosa que o resto da cidade, pois Geni vai contra seus princípios (passar uma noite com o comandante do zepelim, enquanto "preferia amar com os bichos") para salvar a cidade. 
Ademais, Geni é bem tratada pela letra da canção ("aquela formosa dama", donzela, namorada), apesar de não ter voz. É a população da cidade que a maltrata.
O que muita gente não sabe é que Geni é uma travesti. Sem conhecer o contexto da música não dá pra saber só pela letra. Opa, dá sim! Mais uma prova de como aprendo com minhas leitoras. A segunda estrofe é reveladora. Geni "dá-se assim desde menina... na cantina, no mato. É a rainha dos detentos / das loucas, dos lazarentos / dos moleques do internato". Internatos pra meninos e meninas, prisões mistas? Isso não existe. Geni já foi um dos "moleques do internato". Já foi um dos "detentos", talvez numa prisão adulta.
A canção vem do musical A Ópera do Malandro, que Chico adaptou em 1978 da Ópera dos Mendigos (de 1918), e da Ópera dos Três Vinténs (de 1928), de Brecht e Kurt Weill (o hoje perdoado pela esquerda Reinaldo Azevedo disse, num de seus textos mais ridículos, que Chico plagiou as óperas). Na introdução do álbum duplo em que a música é tocada, Geni é apresentada como uma travesti, abreviação de Genival, seu nome de batismo.
No filme de 1986, uma adaptação do musical, quem interpreta Geni é o ator J. C. Violla. Neste caso, Geni é uma travesti apaixonada pelo protagonista malandro.
Como bem lembra Naomi Maratea neste post, "da mesma forma em que o Brasil é o país que mais acessa pornografia travesti e transexual, também é o país com a maior taxa de assassinatos trans". 
A canção é tão genial que ela nos faz cantar o refrão junto com a sociedade hipócrita e preconceituosa. Quem nunca cantou alegremente "Joga bosta na Geni"? Chico podia ter construído a canção pra gente se colocar no lugar de Geni. Mas não, ele quer que a gente se identifique com a cidade! Uma cidade horrível que diz que Geni -- uma mulher, uma prostituta, uma travesti, não importa -- é "feita pra apanhar" e "boa de cuspir". Mas quem merece cusparadas? Geni ou a sociedade que quer linchá-la?
E mais uma descoberta de uma leitora: a canção "Vida" do maravilhoso álbum do mesmo nome, de 1980, é Geni falando da sua existência. Nunca soube disso! "Geni e o Zepelim" inspirou a peça Geni, de Marilena Ansaldi e José Possi Neto. "Vida" foi feita para o espetáculo: "Vida, minha vida, olha o que é que eu fiz / Toquei na ferida / Nos nervos, nos fios / Nos olhos dos homens / De olhos sombrios / Mas vida, ali, eu sei que fui feliz". 
Outra perturbadora canção de Chico é "Cala a boca, Bárbara". Uma excelente análise sobre ela foi publicada nos comentários de um blog que analisa músicas. Vou reproduzi-la aqui: 
"As produções de Chico Buarque se tornaram uma bandeira da canção de protesto contra o regime militar. Contudo, o fato de parte de sua obra estar em sintonia com aspectos da vida política do país, isso não impediu que suas músicas tivessem precioso conteúdo poético relacionado à mulher; temática que podemos exemplificar nesta canção: 'Cala a Boca, Bárbara' que revela a mulher ao mesmo tempo amante e parceira de luta e também como guerrilheira. Essa canção faz parte da peça de teatro Calabar. Quando a peça se inicia, Calabar já está morto, executado pelos portugueses, que não apenas exigiram que seu nome fosse apagado de qualquer registro como proibiram que fosse pronunciado. 
"Sua mulher, Bárbara, é quem canta a canção, e em quem ele está intensamente presente. “Ela nunca o chama, nessa canção, pelo nome: Calabar é o 'ele' a que Barbara se refere. O 'cala a boca, Bárbara', se refere a proibição da pronúncia do nome de Calabar; porém, serve ao seu reverso, uma vez que é esse nome que se forma, com espantosa nitidez, como uma constelação, à força da repetição do refrão: 'Cala a boca, Bárbara'. Aqueles que lerem/ouvirem esta canção, incorporarão o ‘Cala a boca’ ao nome de Calabar. 
"E o nome de Calabar conterá o nome de Bárbara: fusão de amantes apaixonados. Funde-se aqui o ‘poeta do social’ e o ‘poeta do feminino’".
Ou, é claro, você sempre pode interpretar a música como um homem (o cantor) mandando uma mulher calar a boca.
Daqui a pouco, dia 19 de junho, Chico faz 75 anos. Nunca mude, Chico!