sábado, 31 de maio de 2008

PIADAS QUE JÁ PERDERAM A GRAÇA

Houve um dia desta semana que foi incrível. Fui ao cinema ver a sessão pros críticos de uma comédia independente chamada The Foot Fist Way, sobre um instrutor de Tae Kwan Do que diz a um possível aluno: “Se você estivesse na prisão, você seria estuprado porque exala qualidades femininas”. Interessante - basta alguém ter qualidades femininas pra ser estuprado (se for mulher, então, nem se fala). Mais adiante, uma aluna quer se matricular na academia para manter a forma e também para ajudar a meditar, já que antes fazia ioga. E ele: “Ioga não te ajudaria numa situação de estupro em grupo. Medite sobre isso”. No final ele simplesmente urina nos pés da mulher adúltera, não sem antes dizer-lhe que deseja que ela seja violentada, pegue Aids e morra. Os críticos homens morriam de rir, incapazes de notar que esse tipo de discurso pode ser meio ofensivo às mulheres. Pra eles não é, porque misoginia é algo tão frequente, tão presente no dia a dia, que parece natural. Confesso que saí da sessão um pouco chateada, não tanto pela comédia mas pela insensibilidade dos críticos. Andei até o ponto de ônibus mais próximo, que fica perto de uma locadora, e o primeiro pôster que vi era de um DVD com o título de The Cattle Call (Chamado do Gado?). A foto era de uma bunda de calcinha. Se no mesmo dia eu tivesse visto alguém vestindo uma camiseta de “Bros Before Hos” (algo como “Prefiro Irmãos a Putas”), suspeitaria de uma conspiração.

Essa camiseta, campeã de vendas na internet, traz uma foto do Barack Obama, o “bro”, e uma da Hillary Clinton, a “ho”. É o que conta uma jornalista do Washington Post num ótimo artigo, “Misogyny I Won't Miss” (“Misoginia da qual não Sentirei Falta”). Ela diz que, agora que as primárias se aproximam do fim (Obama será o candidato democrata pra concorrer com o republicano McCain), não ficará com saudades de quebra-nozes com o corpo da Hillary, de todas as piadinhas chamando a candidata de prostituta e vadia, ou das comparações entre a senadora e a personagem da Glenn Close em Atração Fatal, entre inúmeros exemplos de misoginia. Acima de tudo, a jornalista não sentirá falta do silêncio em torno disso. Como eu já disse antes, parece que os EUA estão mais preparados pra ter um candidato negro (embora os negros representem apenas 13% da população americana) que uma mulher. E é só nos EUA? Bom, pra saber a resposta basta ouvir como as pessoas se referem à Marta Suplicy em São Paulo, que é parecido com o que falavam da Erundina, e que não será muito diferente do que falarão da Dilma Roussef, caso seja nossa primeira candidata a presidente. Ah, mas as críticas que se fazem a elas são diferentes, têm conotação ideológica. Claro, porque quando falamos nos candidatos homens, só nos concentramos na sua aparência física, na sua sexualidade e na sua parceira (ou falta de parceira). Igualzinho!

O mesmo Washington Post que publica um artigo reclamando da misoginia acaba de lançar um caderno feminino, que trata de assuntos femininos como moda, maternidade e dietas. Até aí, já estamos cansadas de saber que qualquer discussão mais cabeça realmente é muito pra nossa cabecinha fútil. O que chama a atenção é que, no artigo “Putting an End to Mindless Munching” (“Pondo um Fim a Comer sem Pensar”), que trata de comedoras compulsivas, a foto pra ilustrar é da... Hillary comendo! Não é uma graça? Não há nenhuma menção à Hillary no artigo, nem há notícias de que ela seja uma comedora compulsiva, mas isso não importa. Vamos colocar logo o rosto da americana mais conhecida atualmente num artigo condenando mulheres que comem! Sem dúvida, uma ótima mensagem a todas as leitoras.

Nada disso é novidade. Em 1992, quando Bill Clinton concorria à presidência, Hillary era destaque por ser uma possível primeira-dama bem-sucedida em sua própria profissão, ao invés de ser dona de casa. Os repórteres não a deixavam em paz sobre como ela ousara ter uma carreira, e numa ocasião ela respondeu: “Bom, eu poderia ter ficado em casa cozinhando biscoitos...”. Pronto. A frase inacabada da Hillary gerou um carnaval. Ela estaria ofendendo as mulheres que optam por ficar em casa cuidando dos filhos, entende? Viu como ela é uma feminista nojenta? A gente não falou? Taí a prova! Então lá foi a pobre Hillary tentar provar sua verdadeira feminilidade. Para tanto, divulgou sua receita favorita de biscoitos. Barbara Bush, mãe do estrupício, não gostou de ver sua seara invadida por uma feminista, e também relatou sua receita de biscoitos. A mídia decidiu organizar uma competição: publicou lado a lado as duas receitas e pediu às leitoras testarem ambas e apontarem qual a melhor. Nem lembro quem ganhou, mas preciso dizer quem saiu perdendo, mais uma vez? Ué, nós, mulherzinhas, que precisamos mostrar credenciais do quanto somos femininas até pra ser primeira-dama. Ser presidente tá fora de cogitação, óbvio.

Lembro daquela piada feminista do Clinton conversando com a Hillary sobre um frentista (estranho, nem existe mais frentista aqui), em que Bill dizia que a Hillary poderia ter se casado com o frentista, e não com o presidente do país mais poderoso do mundo. E a Hillary respondia que, se tivesse se casado com o frentista, ele seria o presidente americano. Pois é, essa piada parece mais atual do que nunca, agora que vemos que a misoginia é tamanha e que falta muito pros EUA elegerem uma mulher. Mas hoje já não tem a menor graça.

12 comentários:

Juliana disse...

Vim aqui te contar uma coisa específica, mas casou bem com o post. Acabei de ver uma propaganda na televisão que é narrada por uma mulher e que termina com a seguinte frase: “Sei que você deve estar achando estranho mulher falando em propaganda de carro, mas é que não tem homem disponível: estão todos na concessionária aproveitando a promoção”

Anônimo disse...

Lola, isso é tão triste e tão cansativo ao mesmo tempo. e mais duro ainda, quem aponta essas coisas também é tachada de um sem número de adjetivos esquisitos. Na passagem de ano, meu orientador de mestrado, um sociólogo veio me dizer que a situação da mulher hoje é muito mais confortável do que a dos homens(!), que essa história de pressão e patrulha em cima do corpo feminino é bobagem e que isso de padrão feminino de beleza é coisa de feminista feia e mal amada. Isso foi um doutor em sociologia que disse. Veja, não é doutor em tae kwen do, é em sociologia. Eu fiquei chocada, até pq no meu mestrado era outro o assunto e eu não sabia desse lado dele, que na verdade nem é um lado né? E outros sociólogos (as) que estavam lá concordaram. É mole? Dai eu me lembrei pq foi que eu larguei o mestrado antes de defender...
Esse pensamento tá tão incrustado que as vezes eu acho que pouco se pode fazer. Beijos

lola aronovich disse...

Isso, Ju (e outros/as leitores/as), me fale sempre dos comerciais e anúncios. Quando voltar pro Brasil quero começar uma seção com isso, tratando de propaganda machista. Legal essa que vc cita. Pois é, mulher falando em comercial já é estranho, já que sua função deve ser decorativa apenas. E falando de carro? O que mulher entende de carro? Mulher não dirige, não compra carro... Às vezes parece que a gente tá na Arábia Saudita, não parece? É lá que mulher é proibida de dirigir?

lola aronovich disse...

Ai, Nalu, que horror. Vc podia ter avisado o seu orientador que pra falar essas besteiras não precisa ser doutor em sociologia. Qualquer um pode falar. É a opinião corrente, ué. Sei que a hierarquia na universidade pesa demais, mas a gente não pode se calar quando ouve essas coisas. Não importa se é doutor com 30 anos de carreira - é uma besta de qualquer jeito. Chocante ouvir isso de sociólogos!
Acho que o que a gente pode fazer pra tentar mudar esse tipo de pensamento é destacá-lo. Não deixar passar batido. Não aceitar que é algo natural, que sempre foi assim e sempre será. A maior parte das pessoas, mulheres inclusas, nem nota a misoginia que faz parte do nosso dia a dia. Notar é um primeiro passo. Mas esse seu ex-orientador, hein? Tá aqui entalado na minha garganta.
Me diga uma coisa: vc não terminou o mestrado, e tá fazendo doutorado agora? Ou vc terminou? E o seu doc é em sociologia tb?

Anônimo disse...

Fiquei horrorizada com o seu post, que tipo de comédia é essa que só tem graça pra homens? Pior é que acham que nós somos "mal-amadas" e chatas, quando na verdade não tem graça rir de coisas que nos ofendem.

Quanto à "piada" horrorosa do frentista, já fiz um post sobre isso uma vez, e sou sempre a chata que dá sermão quando alguém a repete na minha frente.Minha avó podia ficar feliz com uma piada dessas. Eu, não.

Anônimo disse...

Oi Lola,
coincidentemente hoje eu fiquei sabendo que a propósito do acontecido, esse meu orientador disse que eu retrocedi em pensamento e que eu ainda estou nos anos 70! Jesus toma conta né? Eu tenho até preguiça de combater um pensamento de uma pessoa assim pq ele nem pensa que pode estar errado, e conhece teorias feministas e tudo, mas acha tudo uma balela. É o tipo de pessoa que odeia ser contrariado, dai eu discuti até um ponto e depois, a partir do momento que a pessoa não ouve, só quer provar que tem razão, fica mais dificil pra mim. E eu não terminei o mestrado não. Engraçada minha história com a sociologia, pq eu me dediquei academicamente a ela por vários anos, sete para ser mais exata entre graduação e mestrado e não tenho título nenhum na área, acabei pulando da graduação sem terminar pro mestrado (eu já tinha outra graduação) e ficando sem terminar o mestrado, mais especificamente só me faltou defender. E agora o doc é em direito, eu faço na Argentina pelo tratado do mercosul mas só por diversão mesmo, não pretendo seguir carreira nem nada não. Se algum dia eu fosse seguir carreira preferiria que fosse em sociologia que direito, mas não está nos meus planos.

Beijos

Anônimo disse...

Gente, Lola, que horror isso! Existe um filme assim? Eu estou muito decepcionada com os EUA por escolherem Obama. Tenho uma super má impressão dele, tem uma coisa nele que não é boa. Eu morei 4 anos nos EUA e lembro que uma das coisas que mais gostei foi justamente ser bem tratada, não ser discriminada (o que, sendo mulher brasileira e morando sozinha, já é uma conquista e tanto), então esperava mesmo pela vitória da Hilary.
Realmente, o mundo pra nós é um desafio e tanto.
abraços

lola aronovich disse...

Pois é, Cynthia, a gente vive num mundo tão misógino que piadas como a do frentista são consideradas feministas! Tem mesmo muitas coisas sem graça nenhuma pra gente.

Nalu, ontem, depois de ler o seu comentário, contei as barbaridades do seu ex-orientador pro meu marido, e ele disse que a sociedade tem a tendência de achar que só porque alguém tem faculdade, ou mais ainda, mestrado e doutorado, é uma alma iluminada. E realmente não é. É só uma pessoa que estudou mais (e esses anos a mais podem trazer benefícios), e que sabe mais que a média numa área muito, muito específica. Mas isso não a torna uma pessoa melhor, sábia, sabe-tudo. Agora, não consigo imaginar uma profissão pior pra ser machista que sociologia. Como ser sociológo e achar que as mulheres estão em ótimas condições?
Ah, e vc não tem vontade de terminar o mestrado em sociologia? Dá ainda ou já expirou? Pergunto apenas porque parece um desperdício se dedicar a uma coisa durante sete anos e sair sem um diploma. O maridão é outro: fez engenharia durante 4,5 anos, e faltando um semestre, largou. E conheço muita gente que fez o mesmo. E vou me esforçar pra terminar o doutorado e não me juntar às estatísticas... (bom, no meu caso é mais sério ainda, porque se eu não termino, preciso devolver todo o dinheiro da bolsa pro CNPq). Então vamos que vamos!

lola aronovich disse...

Aninha, existem vários filmes que fazem os homens rir humilhando e ofendendo mulheres. Mas o que me revolta nem é que esses filmes sejam feitos ou que o público ria, é o público (e muitos críticos) não notaram que o filme é misógino. É tão natural pra eles, faz tão parte do nosso mundo, que ninguém nem repara.
Eu gosto do Obama, tenho boa impressão dele, e tive mais ainda depois de ler sobre a mãe dele. Torço muito pra que ele tire os republicanos do poder. Mas como ele é jovem, pensei que antes poderiam eleger a Hillary. Não tem como negar que ela não ser candidata é uma ducha de água fria pra gente que é mulher. Ontem conversei com a mulher do meu co-orientador nos EUA, e lá na casa deles ele apóia o Obama, e ela, a Hillary. Ela tá com 67 anos e tem certeza que, com a Hillary saindo da disputa, não verá os EUA elegerem uma presidente mulher na sua vida. E isso é triste. Eu ficarei muito feliz se o Obama ganhar. Será uma grande vitória pros negros, e espero que ajude a diminuir o abismo racial que existe aqui. Mas fica a impressão que nós mulheres fomos relegadas a segundo plano de novo. Vamos ver se a gente no Brasil elege uma primeira presidente mulher em 2010. Não pelo fato da Dilma ser mulher, mas por que não por isso também? Eu vejo tanta gente dizendo "Sexo (gênero) não importa, raça não importa, o que importa é a pessoa", mas parece tanto mais fácil prum homem e prum branco falar isso que pruma mulher e prum negro que nunca foram devidamente representados...
Abração, Aninha. Onde vc morou nos EUA e quando?

Gisela Lacerda disse...

Ah, coitado do sociólogo. Vai ver ele não quis dizer isso... ;-0 É que geralmente quem se preocupa demais com o corpo e fala muito sobre isso é porque está de alguma forma descontente consigo mesmo, ou está exageradamente fora do peso. Falam muito de anorexia, mas esquecem que obesidade é doença. Mas nada a ver mesmo dizer que é 'coisa de feminista'.

lola aronovich disse...

Gi, eu não sei o que o sociólogo realmente quis dizer. Mas a descrição da Nalu é bem detalhada. Acho que ele quis dizer exatamente o que disse, e isso é chocante, vindo de um sociólogo.
Não é só mulher muito acima ou abaixo do peso que está descontente com o próprio corpo. É 99% das mulheres. Não é uma questão pessoal gostar ou não do corpo. É muita lavagem cerebral pra cima da gente. Vira imposição estar insatisfeita.
E Gi, quem se esquece da obesidade? A mídia fala muito mais na "epidemia da obesidade" que na "epidemia da anorexia", não acha? Eu sou obesa. Meu índice de massa corpórea é 32 ou 33 (faz tempo que não me peso). Acima de 30 é obeso. Mas eu não sou doente. Sou bem saudável, inclusive. Tenho pressão dentro do normal, não sou diabética, não tenho colesterol alto, nada disso.

Anônimo disse...

Oi Lola,
morei em NYC de 98 a 2002.
agora acabou a corrida deles e o Obama já é o candidato. Eu espero que alguma coisa melhore (tem como ficar pior que o bushit?), mas torci até os 48 do 2º tempo pra Hillary... claro!
Abraço!