segunda-feira, 29 de maio de 2023

GUEST POST: SANGUE

Faz tempo que não publico um guest post! Então lá vai este que recebi da jornalista Shaonny Takaiama esses dias. Adianto que eu, que deixei de menstruar para entrar na menopausa já há vários anos, não sinto nenhuma falta. E muito menos me sinto menos mulher. E antes do texto da Shaonny, vale lembrar que homem trans que tem útero também sangra.

Todos os meses ela sangrava. O sangue, às vezes negro, às vezes de um vermelho intenso, jorrava de suas entranhas em propulsão, lembrando-a de sua carnalidade e de sua difícil condição de mulher. 

Naqueles dias, ela era acometida por dores excruciantes, cólicas terríveis, que só outra mulher, uma igual a ela, poderia ser capaz de entender. Não adiantavam remédios, bolsa de água quente, simpatias, nada. Ela tinha de passar por aquilo tudo. Ela tinha de ser forte.

Em um ponto, porém, a vinda daquele sangue todo mensalmente era para ela um sinal de alívio: ela não estava grávida. A vinda da primeira cólica menstrual, por mais dolorida que fosse, era para ela um motivo de comemoração. Ela não carregava um bebê em seu ventre. Não que ela não gostasse de crianças. Apenas sabia que não havia nela nenhuma vocação para a maternidade.

Seu útero desfazia-se em pedaços naqueles dias. E, por mais que doesse, ela comemorava. Suas calças ficavam manchadas de sangue. E também os lençóis, toalhas de banho. O sangue estava ali, pela casa, como as evidências de um crime perfeito. Seu crime, era ter nascido mulher, descendente de Eva e do pecado original.

E ela, como todas as outras mulheres, calava-se e resignava-se. Pois era assim todos os meses, com todas as outras mulheres do mundo. Por que apenas com ela haveria de ser diferente?

Hoje, madura, solteira e sem filhos, ela pensa seriamente em realizar uma histerectomia, um procedimento cirúrgico que remove o útero parcial ou totalmente. Só está esperando o retorno com a médica, para avaliar tal possibilidade.

Se o procedimento for aprovado, ela ficará livre para sempre de sua hemorragia mensal, porém, acho que talvez ela se sentirá menos mulher sem um útero. Será?

segunda-feira, 22 de maio de 2023

O MASCU QUE MATOU A EX NA FRENTE DO FILHO JURAVA QUE HOMENS SOFREM MAIS VIOLÊNCIA QUE MULHERES

No dia 6 de maio, Marcius dos Reis Resener de Oliveira foi preso depois de matar a ex-mulher Aline Resener na frente do filho de 8 anos do casal.

Por que falar deste feminicídio em particular? Afinal, o Rio de Janeiro teve em 2022 o maior número de feminicídios dos últimos seis anos. O estado está batendo recorde de feminicídios este ano: é uma mulher morta a cada três dias. Este foi apenas um dos quatro casos de feminicídios ocorridos no RJ em quatro dias. Nos outros três casos, os assassinos eram os maridos. As vítimas tinham idades diversas: Anna tinha 22 anos, Dayana, 40, Zenaide, 68. Em comum, o fato de serem mulheres mortas pelos companheiros. Um detalhe: Zenaide era pastora, e conheceu o marido enquanto evangelizava na prisão. Aparentemente, não sabia por que ele estava preso: havia assassinado a esposa em 2005.  

O que mais chamou minha atenção no feminicídio de Aline é que Marcius é um mascu. Ele se passava por advogado criminalista e especialista na defesa de acusados pela Lei Maria da Penha. Só que ele não tem registro na OAB e, sem isso, não pode exercer a profissão. Ele também se dizia pastor, psicanalista e policial. Mas na audiência de custódia, ele registrou que é funcionário público na Secretaria de Educação no Rio e trabalha numa escola em Realengo. Estava de licença remunerada desde junho do ano passado. 

Ele ganhava a vida como coach. Em reuniões online com outros mascus, cobrava R$ 350 para passar instruções a homens acusados de violência doméstica. É um comércio lucrativo. O Intercept Brasil publicou recentemente quatro excelentes reportagens mostrando como psicólogos, assistentes sociais, promotores e juízes estão usando a Lei de Alienação Parental para ganhar dinheiro livrando acusados de abuso sexual infantil ou de violência doméstica, muitas vezes tirando os filhos das mulheres e entregando-os a quem elas denunciaram. Obviamente, a alienação parental era uma das bandeiras de Marcius. 

Em fevereiro, por exemplo, Marcius deu uma entrevista à TV Cidade de Teresópolis em que mentiu que Aline (que ele matou dois meses depois) o agredia e também agredia o filho para atingi-lo. Assim como seu currículo, era tudo mentira. O tema da live já partia de uma fake news espalhada por todos os mascus -- "homens sofrem mais violência doméstica do que as mulheres". 

Na entrevista, Marcius repetia que "as humanas mudaram". E dizia que, segundo o IBGE, 92% das denúncias contra homens são falsas, uma estatística tirada direto do Instituto Mascu As Vozes Me Disseram. Os dois entrevistadores homens não fazem nada para estabelecer a verdade. Muito pelo contrário: prometem um programa maior sobre essas falácias. Junto a Marcius está a Dra. Ana, psicóloga (ambos se chamam e são chamados de doutores), que afirma que 8 em cada 10 casos da Lei Maria da Penha são falsos, e que entre 30 a 90% dos casos são falsos (qualquer estatística que vai de 30 a 90 não pode ser séria). Gostaria de saber o que a TV Cidade e a psicóloga tem a dizer agora.

Em 6 de maio, Aline foi pegar o filho de 8 anos na escola. Marcius apareceu encapuzado e atirou. Aline tentou proteger o menino e foi baleada nas costas. Em seguida, atirou na cabeça dela. Marcius tentou fugir levando o filho, que ele já havia sequestrado durante um ano e meio e o escondido em Brasília, longe da mãe. Aline o denunciou, e a Polícia Civil pediu a prisão de Marcius duas vezes, mas a Justiça negou. 

Uma semana antes de ser assassinada, Aline teve negada pela Justiça uma medida protetiva que proibisse o ex de se aproximar dela. Também uma semana antes, ela registrou duas ameaças na delegacia. Uma era da atual companheira de Marcius, Rafaella. O próprio filho alertou a mãe. O pai -- um cidadão de bem defensor da família -- lhe disse várias vezes que iria dar um tiro na cabeça de Aline. Uma semana antes do Dia das Mães, cumpriu a promessa.

Marcius foi preso em flagrante no dia 6, enquanto tentava fugir e levar o filho pro mesmo lugar em Brasília do último sequestro. Contava com a ajuda de Rafaella, que também foi presa. Ela diz que está grávida, e ele alega ter problemas psiquiátricos. O juiz decretou prisão preventiva para ambos por julgá-los perigosos, um risco para as testemunhas. A família de Aline está com medo que ele saia da cadeia e mate mais gente.

Marli, mãe de Aline, declarou, comovida: "Minha filha lutava para pegar de volta o filho dela. Ela largou o Marcius há mais de dois anos e ele perseguia ela, minha filha não podia ter ninguém, ele bateu nela, colocou ela em cárcere privado e, mesmo com exames comprovando que ele tinha estuprado ela, ele não foi preso, só agora prenderam. Até quando?"

A advogada de Aline, Michele Monsores, lamentou: "A Aline buscou proteção em delegacias da mulher, foi à Justiça. É uma pena que ela tenha precisado morrer para que o Marcius fosse preso. Talvez, se isso não tivesse acontecido, ele nunca teria sido preso. Tentamos diversas vezes em vão".

O menino de 8 anos, traumatizado, não conseguia parar de repetir: "Meu pai matou minha mãe com dois tiros na cabeça".

quarta-feira, 10 de maio de 2023

RITA LEE, ÚNICA

Ontem perdermos uma de nossas maiores artistas: aos 75 anos, Rita Lee se foi.

Durante sua longa carreira de 60 anos (desde 1976 com o marido, o guitarrista Roberto de Carvalho), chegou a vender 55 milhões de discos.

Ela chamava seu tumor maligno de "Jair", mantendo seu belo senso de humor até o final.

Era ativista dos animais.

Ninguém nunca a superou como rainha do rock. 

E continuava hiper famosa para toda uma geração nativa em internet.

Embalou toda a minha adolescência e boa parte da minha juventude. Nunca vou me esquecer do trocadilho de "Flagra", de 1982: "Se a Deborah Kerr que o Gregory Peck". Acho que foi a primeira vez que ouvi falar desses dois astros de Hollywood.

Realmente foi uma mulher revolucionária e inigualável. Lula decretou três dias de luto oficial. 

Ontem, antes de termos a terrível notícia da morte de Rita Lee, ficamos sabendo da morte de David Miranda, o primeiro vereador negro e gay do Rio de Janeiro. Como suplente de Jean Wyllys na Câmara, David tornou-se um atuante deputado federal. Ano passado ele saiu do Psol e integrou o PDT. Em agosto, enquanto estava em campanha para a reeleição, foi internado com uma infecção gastrointestinal. Ficou na UTI nove meses. Ele iria fazer 38 anos hoje. Uma grande perda, tão jovem! Ele deixa o marido Glenn Greenwald e três filhos.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

NOSSA ALEGRIA COM AS LÁGRIMAS DO FUTURO PRESIDIÁRIO


Ontem o meu dia ficou mais feliz vendo o Bolso chorar na Jovem Klan e vendo a repórter da mesma emissora segurando as lágrimas ao noticiar que Lula e Janja desejaram um "bom dia" no Twitter.

Isso tudo porque a Polícia Federal fez uma busca e apreensão na casa do Jair em Brasília e prendeu seis assessores próximos acusados de falsificar a carteira de vacinação de covid do ex-presida e futuro presidiário (é o que todos nós esperamos) e sua filha de 12 anos para poder entrar nos EUA, em dezembro. 

Será que, diante de tantos crimes, Bolso irá em cana logo por isso? 

terça-feira, 2 de maio de 2023

CHEGA DE CRUELDADE RECREATIVA. PL 2630 PARA RESPONSABILIZAR AS PLATAFORMAS JÁ

Terça passada, a Câmara dos Deputados aprovou, por 238 votos a favor e 192 contra, a urgência do PL 2630, o projeto de lei das Fake News, que a extrema-direita chama de PL da Censura. Hoje a Câmara pode aprovar o PL.

Lógico que o que vimos durante a semana foi todo tipo de mentira para barrar o PL. Por exemplo, a Meta, empresa que controla o Facebook, Instragram e WhatsApp, criou e divulgou a fake news de que o PL proibiria versículos bíblicos

Mas o que aconteceu ontem ultrapassou qualquer limite: as big techs se uniram para censurar, manipular e mentir na cara dura contra o PL 2630. O Google, além de só direcionar para conteúdo (da direita) contra o projeto, também incluiu uma frase no site de busca, "O PL das fake news pode piorar sua internet". O Twitter removeu a hashtag PL 2630 pelas Crianças, não permitiu várias mensagens favoráveis ao PL, e ainda deslogou um monte de gente, que ficou um tempão sem conseguir acessar a plataforma com a sua própria conta. O Tik Tok derrubou vídeos em defesa do PL. E por aí foi.

O negócio foi tão absurdo que o ministro da Justiça Flavio Dino avisou que iria encaminhar o assunto para ser analisado pela Secretaria Nacional do Consumidor para ver se as empresas não estavam realizando práticas abusivas.

Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do PL, disparou: "As artimanhas que essas big techs utilizam para combater esse projeto torna evidente a necessidade de regulação dessas empresas".

É um perigo a ação censora das plataformas. Se podem mentir para tentar derrubar um projeto de lei que corre no parlamento de um país, podem muito bem tentar fazer o mesmo para derrubar um governo democrático que vá contra seus interesses. Elon Musk é especialista nisso, aliás.

E por que o PL 2630 é tão importante? Bom, o Fantástico deu uma boa amostra no domingo ao exibir uma reportagem longa (quase 20 minutos; longa, pro padrão televisivo) e chocante sobre o aplicativo Discord, tão popular entre crianças e adolescentes. O que rola solto por lá? Automutilação, tortura e morte de animais, incentivo a massacres em escolas, todo tipo de ódio... 

Algo muito comum é meninas serem vítimas de doxxing (que é quando descobrem dados pessoais, endereço residencial etc) para em seguidas serem chantageadas a fazer o que um grupo de neonazis mirins mandam. Fica aqui a minha súplica desde já: por favor, garotas, desobedeçam! Falem com seus pais, professoras, procurem a polícia. Não sejam alvos e nem cúmplices da crueldade recreativa que impera nesses recintos.

O Fantástico entrevistou a advogada e professora da UnB Ana Frazão, que pontuou que o Brasil tem um estatuto que obriga a proteção da criança. Portanto, nenhuma interpretação das redes sociais pode fugir do dever de proteger a infância. 

Uma pesquisadora contou ao repórter do programa que muito desse conteúdo violento não nasce necessariamente no Discord, e circula impunemente em várias outras plataformas, como Twitter e Tik Tok. O Fantástico entrou em contato com o Twitter para pedir esclarecimentos e recebeu a resposta padrão de Elon Musk: um emoji de fezes. Esse símbolo da plataforma dialoga com o que é chamado de "shitposting", o conteúdo de ódio que os usuários juram que é brincadeira. 

Eu nunca tinha ouvido falar no Discord até o final de 2020. Foi quando constatei que algumas das ameaças por telefone que estava recebendo partiam de adolescentes de 13, 14 anos, não de adultos. Era uma nova geração de misóginos querendo ser aceita pela "velha guarda" através de ataques a uma inimiga em comum.

Eu nunca tinha ouvido falar, mas estudos provaram que o Discord foi o canal usado para organizar a marcha da extrema-direita em Charlottesville, Virgínia, em 2017, que uniu supremacistas brancos e neonazis. Sem o Discord, Charlottesville não teria existido.

Uma excelente matéria da Agência Pública aponta que, apesar do Brasil ser o segundo maior público do Discord no mundo, a plataforma não tem representação legal no país e, assim, demora ou ignora as notificações da Justiça. Além disso, como lembra Thiago Tavares, presidente da SaferNet, embora as 
regras do Discord proíbam discurso de ódio e pornografia infantil, não há moderação, muito menos em português. Respondendo à Pública, a plataforma alegou: “Qualquer tipo de conteúdo ou atividade que coloque em risco ou sexualize crianças é terrível, inaceitável e não tem lugar no Discord ou na sociedade”. Compare essa resposta com a reportagem do Fantástico.

Segundo o pesquisador Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora e parte do Observatório da Extrema Direita (OEB), “Redes como o Discord têm sido utilizadas como plataforma para articulação de grupos neonazistas. Eles utilizam as redes não somente como meio de propaganda de seus ideais, mas também como meio de formação. Eu sempre insisto nisso: existe um percurso formativo do jovem neonazista, ele tem contato, ele dialoga, ele produz conteúdo, ele recebe conteúdo, ele traduz conteúdo e ele exporta conteúdo. Existe uma rede estruturada, uma rede onde esse indivíduo vai se encontrar e se formar”. O mesmo método utilizado para a formação de neonazis pode ser visto na formação de mascus.

Hoje, pela lei (o marco civil da internet), as plataformas não são responsáveis pelo conteúdo divulgado nelas. Só são obrigadas a remover algo do ar sob ordem judicial. O debate sobre regulamentação está longe de ser exclusividade no Brasil. E as big techs agiram dessa forma histérica como estão agindo agora quando a regulação foi votada na Austrália (elas perderam).

Após mais de três anos de discussão, com todas as plataformas e a extrema-direita contra, é hoje que a Câmara pode votar o projeto de lei que criminaliza as fake news de contas robôs, determina que as plataformas sejam transparentes quanto à moderação e seus algoritmos, e que elas sejam rápidas para remover e reduzir práticas ilícitas como terrorismo, crimes contra crianças e adolescentes, racismo, e violência contra a mulher. Não me parece pedir demais que essas empresas bilionárias atuem conforme manda a Constituição brasileira.