quinta-feira, 21 de setembro de 2023

O SOM DAS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO

Hoje estreia no Brasil O Som da Liberdade (veja o trailer aqui), baseado na história real (ou quase) de Tim Ballard, um ex-agente do governo americano que foi pra Colômbia resgatar crianças hondurenhas que foram sequestradas pelo tráfico sexual infantil.

O trailer não parece ruim. O problema é que Som virou o filme de cabeceira da extrema-direita. Figuras proeminentes do extremismo como Trump, Elon Musk e Mel Gibson apoiaram o filme publicamente. Aqui no Brasil, é certeza que bolsonaristas vão adorar e divulgar. Afinal, a produção mais ou menos propagandeia as mentiras que os reaças tanto gostam -- de que há uma rede internacional de pedófilos (de esquerda) e que só Trump pode combatê-la. Pois é, Trump, aquele que foi amigão do Jeffrey Epstein e condenado por estupro. Sem falar que durante o seu governo, 545 crianças, filhas de imigrantes ilegais, foram separadas de seus pais. Muitas delas se perderam pra sempre. 

Quando Hillary Clinton perdeu para Trump em 2016, uma das maiores teorias da conspiração da extrema-direita foi que assessores da democrata escravizavam, torturavam, estupravam e até comiam crianças numa pizzaria em Washington DC. A mentira se espalhou tanto que resultou num lunático invadindo a pizzaria em questão e disparando um rifle lá dentro para abrir um cadeado. 

Mas talvez o pizzagate nem seja a mais bizarra das teorias conspiratórias. Uma loja de móveis nos EUA também virou alvo. Começou quando um ativista da QAnon apontou que armários para escritório vendidos pela loja Wayfair tinham nomes de meninas, logo, obviamente eram usados por uma rede de prostituição infantil para transportar garotas desaparecidas com aqueles nomes (sério: quão lobotomizado você tem que estar pra acreditar numa coisa dessas?!). 

Assim que uma nova teoria conspiratória é lançada, ela não para mais. Todos que acreditam na teoria absurda se empenham para ampliá-la. Então uns caras da QAnon descobriram que se você digita alguns produtos da Wayfair num site de buscas russo chamado Yandex, aparecem imagens de mulheres jovens. Até era verdade, mas o Yandex gerava os mesmos resultados para várias outras buscas (essa falha foi corrigida). 

O Som da Liberdade não trata diretamente dessas teorias conspiratórias, mas o fato do filme ter sido abraçado pela extrema-direita é sintomático. O ex-agente Ballard, que inspirou a história, já divulgou a barbaridade sobre o Wayfair, e o astro do filme, Jim Caviezel (que interpretou o protagonista na Paixão de Cristo), não só é idolatrado pela direita como é figurinha carimbada no circuito de Steve Bannon para compartilhar teorias como a que a elite pega um hormônio do sangue das crianças para criar uma droga que, além de ser dez vezes mais potente que a heroína, também é rejuvenescedora. 

Na realidade, essa teoria do hormônio é uma teoria antissemita antiga que prega que judeus ricospara ficarem jovens para sempre, bebem o sangue de crianças que são mortas em rituais satânicos (sabe vampiros? Mesma coisa). 

Teresa Huizar, diretora de uma organização de combate ao tráfico infantil há quinze anos, explica que a maior parte das crianças traficadas no mundo não são sequestradas de espaços públicos por desconhecidos como o filme mostra, mas vendidas por familiares ou "namorados", ou seja, por gente que a vítima conhece e confia. Há vários adolescentes traficados (67% dos menores traficados têm entre 15 e 17 anos) após serem expulsos de suas casas por sua orientação sexual ou por sua identidade de gênero e passarem a trocar sexo por comida.

Um dos problemas em fazer um filme com narrativas sensacionalistas é espalhar lendas urbanas. Jean Bruggeman, diretora de uma outra organização anti-tráfico, lembra que ajudar sobreviventes é muito mais difícil e demorado que simplesmente realizar uma batida policial. Muitas das vítimas de tráfico nos EUA, por exemplo, frequentam escolas, e uma das tarefas da organização de Jean é treinar professores para que possam identificar sinais de que alguma aluna está sendo traficada. Quando passamos a crer em lendas urbanas, casos menos flagrantemente violentos de tráfico e estupro acabam levando júris a não condenar acusados. O júri espera algo como Taken (Busca Implacável, grande sucesso de 2006 com Liam Neeson), e, ao se deparar com uma situação mais nuançada, absolve traficantes.

Huizar espera que espectadores comovidos com O Som da Liberdade procurem organizações anti-tráfico sérias e confiáveis em vez de embarcar em teorias da conspiração do QAnon. "Você não precisa inventar teorias sobre abuso sexual infantil", diz ela. "Tem muita coisa de verdade que não inclui divulgar boatos horríveis sobre loja de móveis ou pizzarias".

Uma das narrativas fantasiosas da extrema-direita é que a esquerda corrompe as crianças (seja pela mídia, pela doutrinação nas escolas, por hormônios colocados na água), quando não as mata e estupra. E a direita está aí para salvar as criancinhas. Misóginos de chans adoram acreditar nessas besteiras. O pior é que muitos deles são pedófilos. Esses são justamente os que mais vão enxergar O Som da Liberdade como um documentário, não como uma obra de ficção. 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

TEMOS QUE ESTAR ATENTAS E FORTES

Compartilho um tuíte da sempre combativa deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) sobre alguns dos últimos acontecimentos que chamaram nossa atenção nas redes (veja o vídeo que ela postou):

Mais do que nunca, é preciso estarmos atentas e fortes. O fascismo, a violência, a misoginia seguem por toda parte. Na Argentina, o extremista Javier Milei exibe motosserra em comício e ameaça direitos conquistados. Nos EUA, políticos republicanos queimam livros de História com lança-chamas. No Brasil, mais cenas dantescas: alunos de medicina da Universidade Santo Amaro (SP) se masturbaram na frente de duas equipes de vôlei feminino. Nojento e criminoso, assim como as falas abertas do prefeito de Barra do Piraí, no Rio, que defendeu castração de mulheres. Cadeia para essa gente e muita cultura e educação pro nosso povo se libertar deste ciclo de ódio. Vamos em frente! Mais uma semana de luta em busca de um mundo divino e maravilhoso para todas as pessoas!

Prefeito do Pros em Barra do Piraí, RJ, discursa num palanque só com homens: "Temos que castrar nossas meninas".

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

STF VAI JULGAR DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

Um dos assuntos mais falados da semana é que a ministra Rosa Weber, que fará 75 anos e vai se aposentar em outubro, liberou para julgamento no STF a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, que requer a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

A ação foi proposta pelo PSOL e Anis - Instituto de Bioética e questiona os artigos do Código Penal Brasileiro que impedem a realização do aborto por vontade da pessoa gestante. Neste caso, a ADPF aponta que o Código Penal, de 1940, fere a Constituição de 1988, que garante os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à igualdade de gênero, à saúde e ao planejamento familiar, e proíbe tratamento desumano ou degradante e a tortura. 

Se a ADPF passar no STF será uma vitória histórica para todas as  mulheres brasileiras e pessoas que gestam, em especial as negras e periféricas, mais afetadas pela criminalização, ou seja, mais expostas a riscos e inseguranças. 

Aqui há uma lista de argumentos muito úteis para poder debater a importância da descriminalização do aborto. 

A PRÁTICA DO ABORTO É COMUM NA VIDA REPRODUTIVA 

No Brasil, 1 em cada 7 mulheres já fez um aborto antes dos 40 anos. São quase 5 milhões de brasileiras que já passaram pela experiência. Quem aborta são pessoas comuns: 67% já são mães e 81% professam uma religião. Ou seja, são pessoas que sabem o significado da maternidade e por diversas razões entendem que não podem levar adiante uma nova gestação. Resultados parciais e preliminares da pesquisa Nascer no Brasil 2, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz, mostram que 37,8% das mulheres não tinham a intenção de ter filhos no momento em que ficaram grávidas.

CRIMINALIZAR NÃO IMPEDE A PRÁTICA DO ABORTO, MAS DESCRIMINALIZAR REDUZ

A América Latina e Caribe é a região com maior taxa de abortos, apesar de ser uma das regiões com com leis mais punitivas. Em países onde o aborto foi descriminalizado houve redução no número de abortos e de mortes maternas por aborto inseguro.  Pode parecer contraintuitivo, mas descriminalizar o aborto abre o caminho para que as mulheres sejam acolhidas pelo sistema de saúde e a gestão públicos de saúde elabore melhores programas de prevenção da gravidez indesejada e de planejamento familiar.

A CRIMINALIZAÇÃO MATA PESSOAS QUE GESTAM

A cada dois dias uma mulher morre por consequência de um abortamento feito de maneira insegura. Esta é uma das principais causas de mortalidade materna no país. Em muitos outros casos a pessoa que gesta não vai a óbito, mas fica com sequelas - 43% das pessoas que tentaram um aborto inseguro em 2021 precisaram ser internadas por complicações no procedimento, como hemorragia, infecções, choque séptico, perfuração de vísceras, traumatismos genitais e sequelas como dor pélvica crônica e infertilidade. 

A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO COMPROMETE A PROTEÇÃO DA INFÂNCIA

A cada ano, cerca de 20 mil crianças entre 10 e 14 anos dão à luz. Crianças são menos capazes de  reconhecer os sinais de uma gestação ou de denunciar a violência sexual e chegam para atendimento com a gestação avançada, sendo ainda mais pressionadas para seguirem com a gestação.  O caso da criança de 10 anos pressionada por emissários da ex-ministra Damares Alves para não abortar é um exemplo. Equipes médicas que atuam neste serviço também acabam perseguidas

O ABORTO LEGAL É SEGURO

O aborto feito nas condições adequadas tem risco quase insignificante. Por exemplo, segundo a Organização Mundial da Saúde, apenas de 2% a 5% das mulheres que abortam usando procedimentos confiáveis precisam de  intervenção médica posterior. A OMS, inclusive, aprova o uso domiciliar autoadministrado desses medicamentos até a 12ª semana. Os procedimentos feitos por AMIU também são bastante seguros e com complicações quase inexistentes. O risco de morte associado ao parto é aproximadamente 14 vezes maior do que o de um aborto seguro.

STF JÁ CONFIRMOU QUE A CRIMINALIZAÇÃO É UMA FORMA DE TORTURA

No julgamento da ADPF 54, que descriminalizou a interrupção da gravidez nos casos de fetos anencéfalos, em 2012, o STF já reconheceu que, quando a gestação gera abalo psicológico, impedir sua interrupção é uma situação de tortura -- o que é proibido pela Constituição.

A CRIMINALIZAÇÃO É DISCRIMINATÓRIA

A criminalização do aborto institucionaliza a discriminação racial. As pessoas denunciadas por aborto são, predominantemente, mulheres negras e de baixa renda. Ou seja: mulheres com menos acesso à informação sobre educação sexual, métodos contraceptivos e planejamento familiar são as mais propensas a uma gravidez indesejada. São essas mesmas mulheres que, depois, estarão privadas de acompanhamento médico e assistência do Estado na criação dos filhos. Manter o aborto criminalizado significa agravar e perpetuar desigualdades.

A CRIMINALIZAÇÃO CUSTA CARO AO ESTADO

Segundo cálculos do Ministério da Saúde, o custo de hospitalizações por complicações de abortos inseguros foi de quase meio bilhão entre 2008 e 2017. Em países de média renda, como o Brasil, isso pode comprometer investimentos em outros serviços de saúde. 

SER CONTRÁRIO AO ABORTO É UM DIREITO INDIVIDUAL, MAS O ESTADO É LAICO

O direito absoluto à vida desde a concepção é uma visão religiosa ou moral, mas que não pode ser assumida como política de Estado, pois o Estado brasileiro é laico - ou seja, o Estado não professa uma religião ou visão moral de mundo. 

A MAIORIA DA SOCIEDADE NÃO CONCORDA EM CRIMINALIZAR PESSOAS QUE ABORTAM

A pesquisa de opinião sobre Religião, Aborto, Política e Sexualidade no Brasil,  publicada em 2022 pela organização Católicas pelo Direito de Decidir, mostrou que 85% das pessoas entrevistadas concordam que, se o aborto deixasse de ser crime, menos mulheres morreriam por abortos clandestinos; 67% apoiam o aborto legal em situações específicas; 85% concordam com o aborto em caso de risco à saúde; 87% quando a mulher corre risco de vida; e 83% quando a gravidez é resultante de estupro. Outra pesquisa, publicada este ano, mostra que 59% das pessoas entrevistadas são contrárias à prisão de mulheres que interrompem a gravidez, ainda que a maioria da população siga contrária à legalização total.

É FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DO STF JULGAR A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO 

É função primordial do Supremo Tribunal Federal zelar pelo cumprimento da Constituição. A ADPF 422 pede justamente isso: que a Constituição de 1988 seja soberana no entendimento sobre os direitos à liberdade, igualdade, saúde e planejamento familiar e na proteção contra tortura e tratamento desumano das pessoas que gestam. Esses direitos têm sido violados por uma legislação anterior à Constituição, o Código Penal de 1940, elaborado quando ainda não havia sido reconhecida a igualdade formal entre homens e mulheres. 

Além disso, a criminalização do aborto não passa no teste de proporcionalidade, que responde a três perguntas. A lei é adequada? NÃO, pois não reduz o número de abortos.  A lei é necessária? NÃO, pois há medidas mais eficazes para reduzir o número de abortos sem violar os direitos das mulheres e pessoas que gestam.  É proporcional? NÃO, pois viola direitos e coloca a vida e a liberdade das pessoas que abortam em risco, além de aumentar os gastos com saúde pública devido às complicações.

STF JÁ ANALISOU O TEMA OUTRAS VEZES

Em 2012, o STF analisou a ADPF 54, que descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos, em 2012, reconhecendo que levar adiante a gravidez de um feto sem perspectiva de vida extrauterina é uma situação de tortura. Em julgamento anterior, de 2008, autorizou a pesquisa com células-tronco embrionárias, rejeitando a tese de que o embrião é representativo da vida e goza de direitos constitucionais. Em 2016, a 2ª turma do STF decidiu, julgando um caso concreto, que o aborto até a 12ª semana de gestação não é crime.  

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

JUSTIÇA SOCIAL: SUPER RICOS PRECISAM PAGAR IMPOSTOS

Semana passada saiu um estudo do Sindifisco (sindicato dos auditores fiscais da Receita Federal) mostrando que quem ganhou acima de 160 salários mínimos -- o que dá R$ 2,1 milhões por ano, ou R$ 176 mil por mês) pagou, em média, uma alíquota de imposto de renda de menos de 5,5%. Já professores de ensino fundamental pagaram 8,1% de impostos. Enfermeiros e assistentes sociais pagaram 8,8%. Policiais militares, 8,9%. Bancários, 8,6%. Médicos, 9,4%. 

Se se esse absurdo de milionário pagar menos imposto não deixa o povão indignado, deveria deixar indignados pelo menos os professores, enfermeiros, assistentes sociais, bancários, médicos e PMs. Não? 

Lula assinou uma MP (medida provisória) para taxar os super-ricos. Não é nada do outro mundo. Talvez não afete sequer esses que ganham "apenas" R$ 2,1 milhões por ano e pagam 5,5% de imposto. A proposta é cobrar de 15% a 20% dos rendimentos em fundos exclusivos (aqueles em que há um único cotista e em que o investimento mínimo é de R$ 10 milhões, que só é taxado no saque). Sabe de quanta gente estamos falando? 2,5 mil pessoas! Cabem num condomínio. Não é nem 1% da população, é 0,001%. Essas 2,5 mil pessoas têm R$ 757 bilhões aplicados, mais de 10% do que está nos fundos de investimentos de todo o país (na realidade, considera-se super-rico no Brasil quem ganha acima de 3,7 milhões por ano, ou R$ 308 mil mensais. Acredite: não somos nós).

Também foi enviado um projeto de lei ao Congresso para tributar o capital de residentes brasileiros nos paraísos fiscais, com alíquotas de 0% a 22,5% (rendimentos menores do que R$ 6 mil por ano não seriam tributados, rendimentos entre R$ 6 mil e R$ 50 mil pagariam 15%, rendimentos acima de R$ 50 mil pagariam 22,5%).

Brasil perde todos os anos R$ 40 bilhões (o orçamento do Fundeb - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, por exemplo) que vão para paraísos fiscais e offshores. Lá os super ricos não pagam impostos e têm sigilo absoluto. Calcula-se que a perda total de arrecadação seja de US$ 480 bilhões, ou R$ 2,340 trilhões, segundo relatório da Tax Justice Network. Este não é um problema só do Brasil, é mundial. Porém, em países mais pobres, como o nosso, notícias de que bilionários escondem seu dinheiro no exterior para não ter que pagar impostos (que as classes média e baixa pagam) deveriam gerar revolta. Infelizmente, não é o que acontece. Incrível como tem pobre de direita pra defender bilionário. 

Como os paraísos fiscais não oferecem qualquer transparência, eles são o destino de milionários e bilionários que cometem crimes fiscais, e também de qualquer tipo de criminoso que fica rico com tráfico de pessoas, de drogas, de órgãos etc. 

Existe um movimento na ONU (Organização das Nações Unidas) para 
limitar a ação predatória dos "paraísos fiscais", o que asseguraria 5 trilhões de dólares aos governos de todo o mundo em impostos não pagos. Isso equivale a um ano de gastos com saúde pública em todo o planeta. Mas tanto o FMI quanto a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) organizam a sabotagem desse projeto. No mundo, ganha força a ideia (que deveria ser óbvia) de que os mais ricos devem pagar mais impostos. O Brasil está muito atrasado neste debate.

A imprensa brasileira é contra a taxação dos super-ricos. Lógico: é a mesma imprensa controlada por menos de uma dúzia de famílias que representam a elite e são seus porta-vozes. Essa mesma imprensa foi contra a libertação dos escravos, a favor do golpe militar, contra a criação do décimo-terceiro salário. A imprensa não tem o menor pudor em espalhar que a meritocracia existe e que bilionários são ótimos pro país. E, ainda que os pobres de direita sempre apareçam para defender bilionário, não são eles que pagam o imenso lobby que atua por trás das sombras para manter os privilégios dos super-ricos.

Gabriel Casnati, integrante da Federação Internacional de Sindicatos de Trabalhadores, explica essa desigualdade tributária: "Quanto mais dinheiro as pessoas ganham no Brasil, menos impostos elas pagam. Gente que ganha R$ 3 mil paga muito mais imposto do que alguém que ganha R$ 10 mil; mas alguém que ganha R$ 10 mil paga muito mais imposto do que alguém que ganha R$ 100 mil. E ela paga mais imposto do que alguém que ganha R$ 1 milhão. Isso vai escalando até chegar num ponto em que os grandes milionários, grandes bilionários, do Brasil pagam impostos de quase paraíso fiscal. Ao mesmo tempo em que uma faxineira ou uma bombeira pagam quase 50% de imposto por mês, quem ganha milhões no Brasil, segundo cálculo da própria ONU, chega a pagar menos de 10% de imposto".

Taxar os super ricos é uma questão de justiça social. Sonegar impostos é contribuir com a miséria e subdesenvolvimento do Brasil, porque imposto é o que paga serviços públicos essenciais como saúde, educação e segurança (aqueles serviços públicos que são tão elogiados por brasileiros que vão morar na Europa; curiosamente, boa parte desses brasileiros é a favor do "Estado mínimo" no Brasil). Qualquer um que não esteja entre as 2,500 pessoas que têm mais de R$ 10 milhões para aplicar num fundo exclusivo não teria por que ser contra pagar 15% ou 20% de imposto em cima dos rendimentos (é o que se paga em qualquer fundo que não seja exclusivo -- ou seja, para os super-ricos). E mesmo essas 2,500 pessoas deveriam achar justo ter que pagar imposto como o resto de nós mortais.

E pobre de direita, não se preocupe: mesmo pagando um tiquinho de imposto, os super-ricos vão continuar sendo super ricos!

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

AS NARRATIVAS DE ESTUPRO NA LITERATURA BRASILEIRA (MAS NÃO SÓ)

Recebi um livro que parece formidável (ainda não li inteiro) de Karine Döll, doutoranda em Letras pela UFRGS, e mestre pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. 

Pedi pra ela escrever sobre seu livro, e publico seu relato como guest post aqui, na esperança que você se interesse e compre Gatilho: o estupro na ficção brasileira (Editora Letramento). E divulgue também!

Demorei a voltar a falar sobre o tema da minha pesquisa. Demorei a voltar a falar sobre o crime que possivelmente mais desperta as paixões e perversões humanas. Desde que terminei o mestrado, em 2019, muita coisa aconteceu. Desde que comecei minha pesquisa, em 2017, mais coisa ainda. Não fazíamos ideia do que estava por vir. E veio. Demônios, impotência, pandemia. No entanto, muita gente falou. Muitas mulheres falaram e, de repente, a palavra “estupro” não apareceu mais como um assunto colocado sempre para debaixo do tapete. Será?

Acompanhei de longe o que houve em Belo Horizonte, algumas semanas atrás. De longe mesmo, pois moro e sou do Paraná. E posso dizer que o que houve naquela rua, àquela noite, também me chocou (logo a mim que, pressupunha, tive contato com as mais variadas narrativas de estupro ao longo de todos esses anos). Penso ser este o retrato de nossos tempos. A moça escapou de um, de dois, de três homens, mas não escapou do quarto. Houve avanços. Em outro momento, muito provavelmente ela teria sido estuprada pelo primeiro. Ou, talvez, por todos. Porque é inevitável. Somos todas reféns. Lembro de uma menina, em minha cidade, que também saiu para se divertir com amigos, foi drogada, estuprada por vários homens e se matou algumas semanas depois. Disseram que ela era viciada. 

Lembro de mim, que saí certa vez com um amigo e “passei do ponto”, tendo bebido pouco, pouquíssimo, mas também apaguei, sendo que este meu amigo me salvou (que sorte a minha, não é mesmo?). Demorei para entender que aquilo (que não foi nada) também não foi culpa minha e nunca mais saí na balada com um copo sem tampa. Lembro de uma amiga que me contou recentemente que fora drogada por um primo enquanto bebiam na casa dele e alguns meses depois descobriu que estava grávida, sem nem saber ainda que já havia perdido sua virgindade. 

Não quero simplesmente divulgar um livro e não tenho por intenção propagar um discurso de autoridade sobre assunto tão desafiador e dilacerante, para todas nós. Mas quero lembrar, para além dos martírios, que continuamos lutando, e continuamos existindo, e continuamos escrevendo e pensando. Este livro, para mim, é só a ponta de um iceberg que por vezes afunda completamente, mas por outras reaparece, sólido, imponente, interrompendo a travessia daqueles que cogitaram já estarmos navegando por mares mais ermos. Belo Horizonte nos lembra que não. Cada cidade, em cada canto desse Brasil, certamente tem um relato que, da mesma forma, nos lembra que não. Desconhecidos, conhecidos, aproveitadores, oportunistas... estupradores. Por que o corpo da mulher precisa sempre estar à disposição, afinal? Alguns mais que outros, é verdade.

Meu livro, intitulado Gatilho: o estupro na ficção brasileira, trata deles, esses “monstros” tão encobertos de suposta humanidade, sob a ótica de duas escritoras brasileiras (ou quase) contemporâneas: Paloma Vidal e Sheyla Smanioto, que corajosamente trouxeram o discurso do estuprador à baila. Impregnaram suas páginas de dor, mas também de evidências. Ao expor seus escritos, tenho por intenção mostrar que para ser possível realizar a análise das narrativas de estupro na literatura, é preciso desmembrá-las de um certo sistema de ambiguidades no qual elas parecem estar sempre imbricadas, sistema esse que trato como “retórica do estupro”. 

Penso ser importante esclarecer que, em meu livro, especifiquei o trabalho com o estupro partindo de duas delimitações: a narrativa de estupro enquanto verdade histórica, a qual se impõe como única, sendo traduzida, porém, em diversos mitos (como, por exemplo, “é impossível estuprar uma mulher que resiste”; “o 'não' às vezes quer dizer 'sim'”; “os homens correm o risco de serem injustamente acusados de estupro”, etc) e as narrativas de estupro enquanto verdades literárias, as quais podem ser apresentadas de diferentes formas partindo, contudo, de uma mesma singularidade imposta pela verdade consagrada historicamente. 

Por vezes, na literatura, associa-se o estupro a uma suposta prática sexual e vemos, então, inscrever-se uma narrativa que mascara a violência sexual cometida, deixando figurar em primeiro plano uma noção rasa de prazer masculino em concomitância com um presumido desejo feminino. Por não se apresentarem enquanto violência propriamente, estas narrativas fazem parecer que a imposição de vontade tida pelo homem coincidiria com um certo tipo de desejo tido pela mulher, ou seja, as mulheres permitiriam uma tal violência e, inclusive, até a desejariam. O grande problema que aqui se delineia é que, uma vez não sendo difícil reconhecer que a própria concepção moderna de sexualidade por vezes parte também de uma retórica do estupro, a qual traça um determinado script no que diz respeito a práticas sexuais heteronormativas, essas narrativas tornam-se quase irreconhecíveis enquanto narrativas de estupro por serem colocadas lado a lado de uma certa concepção de literatura erótica. 

O resultado disso é que a violência em si, de fato, acaba por desaparecer, tornando-se assim uma violência dupla: a real e a ficcionalizada. Bem, não é o caso dos romances que fundamentam minha análise, mas como eu disse, trata-se de autoras contemporâneas (e muitas mais narrativas vieram depois delas, como, por exemplo, o romance Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy, publicado em 2021, algum tempo depois de já concluída esta primeira etapa de meu trabalho). 

Hoje, enquanto doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, sigo nessa empreitada, vasculhando mais e mais exemplos de narrativas consideradas por mim como problemáticas, para dizer o mínimo, partindo da metade do século XIX para cá. 

De Machado de Assis a Clarice Lispector, de Adolfo Caminha a Olavo Bilac, de Rachel de Queiroz a Guimarães Rosa, de Jorge Amado a Marçal Aquino, a literatura brasileira parece ter se empenhado em trazer para dentro de suas histórias o crime de estupro, ao mesmo tempo em que parece ter se empenhado também em borrar um pouco os limites que separam a narrativa de estupro da narrativa erótica ou sexual, dificultando a compreensão daqueles que a leem (embora tal dificuldade jamais seja explicitada) e deixando que a violência maior torne-se despercebida: a imposição de um discurso por trás de uma narrativa que a qualifica enquanto estupro ou enquanto sexo, sendo que cada uma tem limites bastante precisos e estes devem ser respeitados.

Por fim, uma vez que só conseguimos comunicar o estupro através do texto (texto aqui entendido como qualquer manifestação de linguagem), é importante que nos atentemos a ele em toda a sua extensão. Dentro e fora dos livros.