segunda-feira, 31 de maio de 2010

SOU MEIO QUE TALVEZ, EU ACHO

Um leitor antigo, o Serge, deixou um comentário no meu penúltimo post:

É certo você ficar usando neologismos como 'meio que'? ( 'Adoro o Prof. Hariovaldo, que é meio que o nosso That's Right Nate'). Isso é irritante e não condiz com sua graduação, eu acho”.

Ai, Serge, ouvir “isso não condiz com sua graduação” é fogo, imagino que em qualquer caso. Primeiro porque é uma cobrança, e depois porque, no meu blog, eu não uso linguagem acadêmica (bom, dizem que não uso linguagem acadêmica nem na academia). Ah, e porque cai no erro de achar que doutora faz isso, não faz aquilo, ou que doutora é um modelo de seriedade, ou que doutora não comete erros. Todo mundo comete erros, e um PhD não serve de vacina contra nada. Pego emprestado o que a Laurinha escreveu:

"Caramba! Quer dizer que quem vive no meio acadêmico só pode se comunicar de modo formal, independente de estar em uma situação informal, em um bate-papo com amigos, em um blog, em uma festa ou até mesmo fazendo sexo?..."

Pois é, imagina o horror que deve ser soltar um neologismo no meio do sexo! O que @ parceir@ pode pensar, meu deus?!
A Alice também mandou bem:

"Como sou da áera de Letras, sinto-me no direito de responder/refletir sobre o que ele disse. Eu não deixo de relacionar o comentário do Serge com aspectos culturais brasileiros. É a velha e boa mágica do bacharelismo brasileiro, que ainda influencia, de certa forma, o ideário geral. Quem não conhece ao menos uma pessoa que tem um diploma de direito e bate no pe
ito para ser chamado de doutor e usa um vocabulário pretensamente erudito para parecer acima de tudo e todos? Pois é. Desde o Brasil-colônia isso é um fato. Que vem sendo mais e mais deixado de lado, é verdade, mas que ainda assim deixou lá suas marcas.
Não é à toa que se cobra uma postura de 'doutor' de quem tem um título de doutor. Nem que seja em um ambiente totalmente informal como um blog. As pessoas querem e parece que precisam ver que as outras são eruditas. Ainda que tal erudição não leve a nada, e restrinja mais e mais o número de leitores/seguidores de um blog. Falar às claras, usar de vocabulário informal para se comunicar com o maior número de pessoas? Coisa de gentinha, né. Afinal, é preciso fazer jus ao título que se tem. Parece que o título precede a pessoa."

Sobre usar “meio que”, Serge, vc já tinha pedido pra abolir. Não vejo nada de mais em usar isso. Sempre usei. Gosto e vou continuar usando, faz parte do meu estilo. Acho qu
e é uma forma minha de não parecer tanto uma senhora da verdade (o termo é tão masculino que até fica esquisito no feminino). Nos meus textos vc vai encontrar muito mais “acho”, “talvez”, “meio que”, “meio como”, “bem”, “bastante”, “mezzo” etc que “certeza absoluta” ou “sem sombra de dúvida” ou “é inquestionável que”. Vc deve encontrar vários desses termos mais autoritários nos escritos de quem se acha dono da verdade. Não é o meu caso. Eu não acredito em verdade absoluta. Acredito na minha verdade, no que é verdade pra mim (ou seja, a minha interpretação das coisas, minha visão do mundo). E mesmo pra essa verdade eu tenho dúvidas.

P.S.: O João deixou um comentário no mesmo post. Resposta aqui.

domingo, 30 de maio de 2010

DENNIS HOPPER, (OUTRO) REBELDE SEM CAUSA

Ontem morreu Dennis Hopper, aos 74 anos, de câncer de próstata. Como pessoa ele não valia grande coisa, de acordo com a maior parte dos relatos. Seu parceiro em Sem Destino, Peter Fonda, o chamava de fascista excêntrico. Peter Biskind, no excelente livro Easy Riders, Raging Bulls: Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock'n'Roll Salvou Hollywood, o descreve como louco varrido, um maníaco perigoso. Onze anos atrás, escrevi sobre Hopper na minha resenha do livro de Biskind. A descrição de Hollywood como paraíso de cocaína é esquisita, eu sei, já que, pelo que li, Evo Morales não era presidente da Bolívia na década de 70. O quê?! A julgar por Serra e pelo resto da direita brasileira, o tráfico de coca vem todo da Bolívia e começou com Evo.

No final dos anos 70, a cocaína realmente tinha tomado conta de Hollywood. A droga era tão freqüente que o pessoal andava com um colar de ouro feito de minúsculas colheres, próprias para o consumo. Parece que os garçons recebiam uma carreira de cocaína como gorjeta. Paul Schrader, para citar um caso, estava cheirando 28 gramas por semana, o que lhe custava US$ 12 mil por mês. Dennis Hopper, que hoje em dia é conhecido como o vilão de várias produções, de Veludo Azul a Velocidade Máxima, havia se consagrado em 1969 ao dirigir Sem Destino (Easy Rider). Uma década depois, ele estava na pior. Entrava e saía de programas de reabilitação, e nada funcionava. Ele então decidiu que era essencialmente um alcoólatra, e parou de beber, mas continuou usando drogas. Ele ia às reuniões do AA com cocaína no bolso. Às vezes ficava tão confuso que chegava nos bate-papos dos Narcóticos Anônimos, olhava em volta e anunciava: "Sou um alcoólatra".

Hopper quase morreu de overdose uma dúzia de vezes nessa década. Adorava armas de fogo. Batia nas mulheres. Teve cinco casamentos. Um deles, com Michelle Phillips, do Mamas and the Papas, durou pouco mais de uma semana. Michelle disse que correu risco de vida durante essa infinidade de tempo (escrevi um pouco sobre isso aqui).
Apesar da vida conturbada, do temperamento impossível, e de escolher péssimos papéis apenas pelo dinheiro, Hopper foi um ótimo ator. E também um diretor respeitável (Sem Destino, embora datado, vale como registro de época, e Cores da Violência, hoje esquecido, é muito bom). Lembro vagamente dele em Assim Caminha a Humanidade (como não ser ofuscado por um James Dean no seu auge?) e em Momentos Decisivos, pelo qual foi indicado a um Oscar. E mais como o pai de – quem mais? – Mickey Rourke no lindo O Selvagem da Motocicleta. Sei que ele estava drogado até a medula em Apocalypse Now, mas considero a sua atuação uma das mais marcantes daquele fime cheio de personagens (e atores, e diretor) doidões. E lógico que qualquer um que viu Veludo Azul não o esquece. Hopper era the stuff nightmares are made of. Um astro importante.

sábado, 29 de maio de 2010

DIREITA “SÓ ALEGRIA” TORCE POR HONDURAS

Adoro o Prof. Hariovaldo, que é meio que o nosso That's Right Nate. E, como em toda ironia, vez por outra surge algum comentarista por lá que interpreta literalmente as sábias palavras do ultra-reaça de brincadeirinha. É preciso ser muito ingênuo pra não rir de uma frase como “ditadura lullodilmal”. Porém, nem a imaginação fértil do Prof. Hari se compara com algumas aberrações que os blogs de extrema direita espalham. E neles não há ironia (não que eu tenha notado. Vai que esses blogs também sejam de gozação e eu que não noto?).Por exemplo: é o máximo essa foto do Serra tomando chimarrão em Porto Alegre junto à bancada gaúcha do PMDB (lá ele também recebeu apoio do PP, sabe, o partido do Maluf, que já declarou seu apoio ao meiguinho?). Percebam a cara de felicidade do tucano tomando o chimarrão, e os sorrisos forçados de seus aliados. Bom, pelo menos eles estão sorrindo...
Pra mim a foto fala por si, mas tudo é uma questão de interpretação. Num blog de direita o pessoal achou a foto bela. A única crítica foi feita ao pulover vermelho que candidato estaria usando. Um comentarista escreveu que o Serra “até parece gaúcho!”. Um outro elogiou: “Não podia ser melhor. Só alegria!”. Quer dizer, tem que estar sendo irônico, certo? Ou dá pra ver algum vestígio de alegria nessa foto?Num outro blog, o autor criticou o avião da TAM que levará os atletas da seleção à África do Sul. Pra ele, as cores do avião (vermelho e branco) fazem propaganda à bandeira do PT. Não posso explicar melhor que as palavras do reacinha: “Por muito menos a TV Globo retirou do ar seu comercial alusivo aos 45 anos da empresa [...]. Obviamente que as cores predominantes, independente da logomarca da companhia aérea, teriam de ser as cores da Seleçao, que são as cores da Bandeira do Brasil. É muita coincidência, não acham? [...] É assim que Lula e seus sequazes desejam difundir o Brasil no exterior. Com as cores do PT. Com o vermelhão comunista e ao mesmo tempo tentar turbinar a sua candidata fracote dizendo que o Brasil é vermelho, é PT. NÃO É! NUNCA SERÁ!
Um comentarista corrobora a tese afirmando: “Vou torcer por Honduras!”.
Se o prof. Hari escrevesse essas linhas, eu pensaria que ele fora longe demais nas suas ilusões.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

QUANDO OS POSTERS DE CINEMA ENGANAM

Cadê o Leo neste poster de um baita filme de ação?

Talvez as risadas que dei tenham sido pelo efeito cumulativo, mas que ri um monte, ah, isso eu ri. Este post de um site de humor, o Cracked, traz quinze posters de cinema enganosos. É pura besteira. É também engraçado pacas.
Vê se este poster do Aviador não é enganososo? O Cracked tem toda razão: eu nem lembrava que o filme do Scorsese tinha uma cena dessas, de explosão e aventura. O post diz que esta cena está tão fora do contexto que, a julgar por ela, Aviador [minha tradução capenga] “parece ser um filme de ação passado na Segunda Guerra Mundial sobre pilotos intrépidos tentando superar o deserto com missões kamikazes”... quando na realidade é sobre o Leonardo DiCaprio “mijando em jarras”. E esse poster tem que ser o mais cheio de prêmios de toda a história de Hollywood!
O cartaz sul-coreano para A Era do Gelo 3 mostra aquele bichinho fofinho e sem falas que está sempre obsessivamente atrás de uma noz vestido com roupa de robô. Ahn... A Era do Gelo se passa na pré-pré-pré história, não? Tipo antes do dilúvio? Não na Era Espacial do Gelo, certo? Praticamente todos os posters de ficção científica dos anos 50 continham uma pobre mulher com um decotão gritando e sendo carregada por um monstro qualquer. Este de O Dia em que a Terra Parou não foge à regrã. E, convenhamos, a cena no filme em que o robozão se aproxima da mocinha, e ela berra histericamente, é muito estúpida. E lógico que o que está no poster tem pouquíssimo a ver com o filme em si. Mas o que eu não me lembrava era dessa mão de gorila no meio do poster. Tinha um gorila no filme?! Devo ter piscado nessa cena.O diálogo que o Cracked dá pro making of deste poster da República de Gana para Mad Max 2 é simplesmente hilário. De fato, o Rambo do poster parece ser uma mulher latina. Mas o que me matou foi o “Coloque aí um Hugo Weaving tendo um derrame no meio de uma tempestade”. O desenho é mesmo a cara do Hugo (o agente Smith de Matrix, pra quem tem memória curta). Ainda não fui ver Sex and the City 2 (já estreou?), mas se for como o cartaz polonês do filme, deve ser muito mais interessante que uma americana passando mal por beber água mexicana num hotel cinco estrelas terceiro-mundista. Se é que você me entende.
O Cracked diz que este poster meigo de Senhor dos Anéis (será que foi isso que inspirou a Veja a fazer aquela capa com o Serrinha paz e amor?) é espanhol, mas sei não: tá tudo escrito em português. Espero ao menos que seja português de Portugal, porque realmente não tem nada a ver com o épico dos hobbits. (Lembro sempre do Paulo Francis dizendo que Portugal lançou Psicose com o título revelador de "O Filho que era Mãe". Mas era mentira).
Há um lado positivo em toda esta bobeira (além de me fazer rir muito): a gente descobre que Polônia e Gana têm sérios problemas em fazer posters que possuam a mínima ligação com o filme em questão. Dizem as más línguas que os poloneses detem uma longa tradição de colocar spoilers na capa, como nesta do Planeta dos Macacos original. Percebeu a Estátua da Liberdade no cantinho? Não acredito que seja de verdade!
E aí, você se lembra de outros posters enganosos?

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A ORIGEM DOS GATOS

Existem mais ou menos umas quarenta espécies de felinos, e você há de notar que praticamente todas lembram muito os gatos domésticos. Pensa só: qual a diferença entre um felino selvagem grandão, como o leão, e o meu gatinho amarelo Calvin? Acho que só o tamanho, a juba e o rugido. Gatos e outros felinos menores não rugem porque lhes falta um osso na língua que apenas os felinos maiores têm. Leões também fazem rum-rum, leões também dormem pra caramba, leões também se lambem e ficam de barriga pra cima quando estão relaxadões. Iguaizinhos ao meu Calvin.
Agora, um pouco sobre a origem dos gatos – ou o que eu compreendi do meu livro em espanhol El Gato (a culpa pelos deslizes é do meu invejável portunhol). Os gatos começaram a ser domesticados há mais ou menos quatro mil anos, com os egípcios. Compare com os dez ou doze mil anos dos cães e você vai ver que foi logo ontem. Provavelmente, o principal antepassado do gato domesticado é o gato montês, que é quase idêntico, só que selvagem. Algo deve ter mudado na estrutura genética do gatinho doméstico para que ele já nasça dócil, mas os cientistas não sabem o quê. Quando narrei este fato pro maridão, ele disse:
– Ué, não precisa ser cientista pra não saber o que mudou nos gatos. Todo mundo não sabe, entende?
– Ô, anjo. É sempre bom ver um cientista admitindo que não sabe alguma coisa.
De qualquer modo, os gatinhos domésticos gostam do bicho-pessoa e não têm medo dele, enquanto que um gato selvagem teria que ser domesticado a cada geração pra aprender a aturar humanos, os malas do universo (convenhamos: nossa espécie é bem chatinha. E espaçosa).
Parece que os egípcios idolatravam vários animais, não apenas gatos. Mas, assim que descobriram que gatos eram excepcionais defesas contra pragas como ratos, passaram a venerá-los ainda mais, mumificando-os depois de mortos e tudo. Foram encontrados sarcófagos especiais pra gatos. Já imaginou que fofinho deve ser um sarcófago pra gato? Vou providenciar um pro meu Calvinho. Acho que não teria sarcófago em que coubesse a Blanche, que está um tanto rechonchudinha.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

SOMOS DONOS DO NOSSO PRÓPRIO CORPO?

O Thiago, vulgo Nefelibata, deixou um ótimo comentário no meu post sobre ter filhos como missão. Reproduzo parte dele: “tenho 24 anos e faço 25 agora. Com 16, eu já tinha a faculdade de escolher meus representantes políticos. Com 18, eu já tinha consciência o bastante para, perante a lei, pagar pelos meus pecados no inferno da cadeia. Mas somente com 25 tenho o direito de fazer vasectomia! E é assim: eu tenho que passar por um exame psicológico e, se aprovado, aguardar ainda 6 meses ("período de eventual arrependimento") para somente aí ir pra mesa de cirurgia. Não sei quanto a vocês, mas eu acho isso um absurdo...

Adwilhans deu uma resposta mais concreta: “Nefelibata, entendo sua revolta contra a restrição à vasectomia para menores de 25 anos; tenho a impressão de que se trata de uma exigência absurda da lei, no caso o inciso I do artigo 10 da Lei 9.263/96. Esse artigo foi originariamente vetado, à época, ao argumento de que 'a esterilização voluntária se equipara a mutilação, com perda de função', sendo o veto derrubado pelo Congresso Nacional. Da forma como redigida a Lei, há apenas duas hipóteses em que a esterilização voluntária é permitida, sempre para pessoas capazes: maior de 25 anos OU com pelo menos dois filhos vivos (ainda que menor de 25 anos). A questão que se coloca é se a sociedade pode restringir o direito de um cidadão à opção pelo planejamento familiar ao argumento de que os menores de 25 anos seriam muito jovens para tomar uma decisão tão drástica e, na maioria dos casos, irreversível (segundo meu urologista me explicou quando fiz a minha, há alguns meses, a vasectomia só é reversível nos primeiros três anos, aproximadamente, pois depois disso o testículo deixa de produzir espermatozóides; ainda assim, a cirurgia é complicada e pode não obter sucesso). Quero crer que não há justificativa moral legítima à restrição; muito mais lógico seria vedar a esterilização voluntária apenas para menores de idade, no meu entendimento. Mas fica um ponto interessante para discussão: os limites impostos pela Lei são legítimos?"

(Euzinha aqui de volta). Pois é. Não sei como funciona, não sei se qualquer homem com mais de 25 anos pode pedir uma vasectomia pelo SUS e ser prontamente atendido. Lógico que sou a favor, ainda mais porque é um procedimento cirúrgico muito mais simples que a ligação de trompas (laqueadura) feita pelas mulheres. Mas muitos homens, por incrível que pareça, ainda associam a fertilidade à potência sexual. E creem que, se fizerem vasectomia, suas ereções estarão comprometidas. E esse mito ridículo existe em todas as classes sociais. Esses dias mesmo ouvi essa história de um casal de classe média alta, ambos PhDs e tal.
Mas o depoimento do Thiago me fez voltar ao tempo. Quase vinte anos atrás, eu e o maridão fomos conversar com nosso médico da família. Naquela época minha família ainda tinha algum dinheiro e frequentávamos um médico particular. Eu realmente gostava desse médico, que já me atendia há vários anos, e confiava muito nele. Fomos a sua clínica e expusemos nossa situação: eu e o maridão, então namoradão, estávamos apaixonados, pretendíamos ficar juntos, queríamos transar como coelhinhos, mas nenhum de nós desejava ter filhos. Será que o namoradão poderia fazer uma vasectomia? O médico foi categórico: não, de jeito maneira. Segundo ele, o namoradão, então com 32 anos e solteiro, ainda era jovem demais pra se submeter a um procedimento sem volta. Se ele ao menos tivesse filhos, talvez. Porém, sem filhos, nenhum médico aceitaria realizar a cirurgia. E lembro até hoje da metáfora que ele usou: “Não é porque você não toca piano que vai querer cortar os dedos”, que eu achei uma alusão válida e forte, mas pô, a gente definitivamente estava segura do que queria e não queria. Não iríamos tocar piano!
Insistimos que tínhamos certeza absoluta que não mudaríamos de ideia, que nunca nos imaginamos pais, até antes de nos conhecermos. Mas nada feito. O médico estava crente que, cedo ou tarde, nos renderíamos à normalidade e faríamos o que todos os casais saudáveis fazem: um filho.
Vinte anos depois, o maridão e eu continuamos apaixonados (dentro do possível numa rotina matrimonial monogâmica, ou seja, adeus à ideia de transar como coelhos), sem filhos, e sem a menor vontade de tê-los. Mas certos apenas de que isso de liberdade individual e de cada um ser dono do próprio nariz (ou do próprio corpo) só vale quando se acata o que a maioria manda.

terça-feira, 25 de maio de 2010

PROGRAMA TESTA EMPATIA COM MULHERES QUE APANHAM

Vi a parte um e dois do que parece ser um programa interessantíssimo da TV americana, o What Would You Do? Nesse programa, atores representam situações conflitantes, e uma câmera registra a reação das pessoas em volta. Por exemplo, um episódio mostra um vendedor numa loja dando o troco errado a um homem cego; ou alguém roubando uma bicicleta num parque. Desta vez, o programa enfocou uma mulher (com marcas visíveis de espancamento) entrando num restaurante. Pouco depois, aparece seu namorado, que passa a gritar com ela e ameaçá-la.
O programa, que deixa claro que apanhar do parceiro é uma tragédia que ocorre com 25% das mulheres, usa um casal de atores brancos e negros para ver se há mudança na reação das pessoas. Não: em ambos os casos, alguns “espectadores” intervém. No primeiro caso (do casal branco), um homem se levanta e vai falar com a mulher com marcas no rosto assim que ela entra no restaurante. Depois, tenta conversar com o namorado. No segundo caso (do casal negro), duas moças tentam ajudar a mulher, e é um momento ultra comovente (eu chorei horrores) quando uma delas, tomada pela emoção, passa a chorar. Nos dois casos, as pessoas interferem, ajudam a vítima, condenam a situação. Bem diferente do que o mesmo programa, alguns anos atrás, havia registrado: um homem ameaça bater numa mulher num espaço livre (parque ou praça), e um grupo de homens o impede ― mas pelos motivos errados. Eles argumentam que ali não é o lugar ou a hora de fazer isso. Quer dizer, bater na sua mulher tudo bem, desde que seja na intimidade do seu lar. Aí não é da nossa conta.
Então este programa mais recente nos enche de esperança, certo? Hmm... Mais ou menos. Quando o programa decide vestir as mesmas atrizes com roupas mais “provocantes” (vestido curto e decote), a reação das pessoas próximas é totalmente diferente. Ninguém se mete. Um homem diz apenas que o casal está envergonhando a si mesmo e aos outros por agir assim, escandalosamente. Duas senhoras insinuam que a vítima é provavelmente uma prostituta e seu parceiro, um gigolô, e preferem mudar de mesa a interferir. Tudo por causa das roupas! Triste, triste.
Claro que tudo isso não tem nada de científico. É provável que um estudo estatístico chegasse a conclusões bem contrastantes, mas o programa entrevista uma socióloga que aponta que é isso mesmo, infelizmente: dependendo de como a mulher está vestida, ela terá um ou outro valor. E, se o valor for baixo, poucos sentirão empatia por ela. Prostitutas praticamente merecem ser espancadas ou estupradas, diz o senso comum. São os ossos do ofício. Lembra quando o grupo de pitboys playboyzinhos bateu numa empregada num ponto de ônibus, e depois se defendeu dizendo que pensava tratar-se de uma prostituta? Pois é.
Seria ótimo se uma emissora brasileira pudesse mostrar algo parecido para testar nossos limites éticos. Creio que um programa assim tem algo de educativo, apesar da manipulação (é feito pra chorar ou pra chocar) e do sensacionalismo. Se mais pessoas aprenderem que não vivemos isoladas no nosso mundinho particular, que seu vizinho não tem o direito de bater na mulher ou nos filhos dele só porque está no aconchego de seu lar (porque este não é um assunto privado; pelo contrário, algo que acomete 25% da metade da população deve ser considerado uma epidemia), poderíamos sonhar com um lugar mais humano. Em que humano fosse realmente um adjetivo positivo.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

RESUMO DA SEMANA POLÍTICA

A discussão política da semana passada começou com uma distração meio ridícula: Marta Suplicy disse o óbvio ululante, que Gabeira foi tão “terrorista” (ou seja, alguém que lutou contra a ditadura militar) quanto Dilma, mas que por ele ser atual aliado das forças retrógradas, seu passado foi esquecido. Os reaças caíram em cima da fala de Marta. Juro que não entendi o motivo. Hã, Gabeira não sequestrou o embaixador americano? Pensei ter visto até um filme sobre o assunto, O Que é Isso, Companheiro? Devo ter imaginado coisas.
Um tema mais sério que dominou as conversas foi o acordo assinado pelo Irã. A proposta do Brasil e da Turquia, apoiada pela ONU, era que o Irã enriquecesse urânio fora de seu território (onde houvesse fiscalização maior), e em níveis suficientes apenas para fins civis, não militares. Os EUA eram contra qualquer tipo de acordo. Queriam mais é que a ONU aplicasse sanções ao Irã, pavimentando o caminho para uma nova invasão americana, como fizeram no Iraque, quando inventaram todas aquelas armas de destruição em massa.
A opção pela paz e pela negociação foi mais um triunfo da diplomacia bra
sileira. Mas as relações externas são um ponto de intensa disputa ideológica. Para a esquerda, Lula e Celso Amorim conseguiram colocar o Brasil no mapa-múndi como negociador eficiente e porta-voz da paz. O país deixou de ser um fundo de quintal que só dizia amém ao império para se firmar como líder dos países em desenvolvimento, em especial da América do Sul. Para a direita, esse papo de império é invenção, o Brasil tem que saber seu lugar, e Irã, Venezuela, Cuba, e quem mais os EUA mandarem, devem encabeçar eternamente a lista de nações inimigas.
O acordo assinado pelo Irã põe Lula com chances de ser o próximo ganhador do Nobel da Paz, mas isso é pra quem gosta de paz. A direita torcia para o fracasso das negociações, e para um conflito bem explosivo, nuclear até, esquecendo-se que o único país que já usou bombas nucleares contra outro país foi os EUA, não o Irã. Tudo para provar o seu ponto de que Lula é um péssimo presidente, e que os EUA-é-meu-pastor-e-nada-me-faltará.
No começo da semana, os mesmos reaças que pregam a guerra ainda falavam bastante nas pesquisas do Vox Populi e Sensus, que davam empate técnico entre Dilma e Serra, com leve vantagem para Dilma pela primeira vez na disputa. Diziam que não eram institutos sérios, que eram comprados, que as pesquisas eram encomendadas pelo PT, e que os petralhas iam ver só quando viessem aquelas pesquisas sérias e imparciais, como Datafolha e Ibope (sendo que a Datafolha é da Folha de SP, e o Ibope, da Globo), que iriam reestabelecer a ordem natural. Aí no sábado saiu a pesquisa Datafolha... que pela primeira vez deu empate (de 37%) entre os dois principais candidatos. O instituto não se esforçou muito para explicar a enorme diferença entre esta pesquisa e a anterior, de um mês atrás. Em um mês, segundo o Datafolha, Dilma subiu 15 pontos e Serra caiu 10. Sim, porque a diferença na pesquisa de abril era tão gigantesca que só um acerto deste quilate pra consertá-la. Obviamente que o problema estava na pesquisa anterior que, sem nenhum fato novo, alçou Serra às nuvens apenas para que houvesse clima de comemoração no lançamento de sua candidatura. Afinal, nenhuma pesquisa (nem a do Ibope) dava essa dianteira pra Serra. Bastou o Movimento dos Sem-Mídia entrar com pedido de auditoria para todas as pesquisas (já que elas podem influenciar o resultado nas urnas), e o Datafolha milagrosamente corrigiu a tendência apontada por todas as pesquisas, que é de queda de Serra e subida de Dilma, à medida que seu nome vai ficando mais conhecido e mais associado a Lula, o presidente mais bem avaliado da história do país.
Achei estranho que pouquíssimos comentaram que um dos fatos novos entre uma pesquisa e outra foi a saída de Ciro Gomes da disputa, ué. Havia um candidato com 15% das intenções de voto que simplesmente pede o chapéu, e esses votos não vão pra lugar algum? Bom, pelo jeito foram: foram pra Dilma. Resta saber pra onde irão os de Marina (que tem 12% agora) no segundo turno. É, eu acredito que a campanha será duríssima e que haverá segundo turno. Mas que Dilma vencerá. Vamulá, gente mais otimista do que eu: nem o Lula ganhou no primeiro turno! E o Lula já havia disputado quatro eleições. Não vai ser a Dilma na sua estreia nas urnas que ganhará no primeiro turno... Nada de salto alto!
Desnecessário dizer que a divulgação da nova pesquisa Datafolha foi um banho de água fria pra direita, que rapidamente adotou o discurso “Dilma só empatou?! Com toda a ilegalidade e as mentiras de sua campanha, ela não passou o nosso candidato?!”. No blog do tio Rei, os comentaristas se dividem entre desesperados e esperançosos (a minoria). Os desesperados se perguntam o que acontece no Brasil, em que uma terrorista de um partido tão corrupto pode ter chances de ganhar as eleições. E dizem que, se isso acontecer, vão se mudar de país. Outros dizem que a estratégia agora é partir pro tapetão. Quer dizer, eles não usam esse termo – usam “fazer cumprir a lei”. Em outras palavras, o TSE deve cassar a candidatura de Dilma e colocar tanto ela quanto Lula na cadeia, de onde não deveriam nunca ter saído (é sério, juro). Porque o programa do PT no início de maio foi contra todas as leis eleitorais, ao contrário do do DEM, da semana passada, que mostrava Serra discursando. Parece que a lei diz que um partido não pode incluir um candidato de outro partido no seu horário, mas leis foram feitas apenas para serem usadas contra o PT. Já os (e)leitores mais esperançosos diziam que o PT sempre sobe nas pesquisas de maio, e depois naufraga nas urnas, e que Serra vai vencer. Uma jornalista escreveu que ela entende do riscado e que se não der Serra ela rasgará seu diploma, podem cobrar.
Num outro blog de direita, este menorzinho, o júbilo ainda é total. O autor reclama que “a grande imprensa nacional atua de forma ostensiva em favor da candidata petista” (o que o Prof. Hariovaldo chama de “imprensalão”, mas no que ele brinca, a direita rábida fala sério). Ainda assim, Serra vai vencer — e no primeiro turno, “anotem o que escrevo”, afirma o blogueiro (não vou por o link aqui porque blogs de extrema direita não merecem visitas).
E ninguém, nem esquerda, nem direita, fala de um detalhezinho minúsculo: pela primeira vez na nossa história, estamos perto de eleger uma presidente mulher. Isso não é relevante? Não merece comemoração? Se fosse um negro, como foi nos EUA, não estaríamos ao menos mencionando essa possibilidade inédita?

sábado, 22 de maio de 2010

SOMOS TODOS APRENDIZES

Como de costume, estou acompanhando O Aprendiz. Deve ser o único programa de TV que vejo atualmente. Esta edição é uma decepção só. Não apenas porque saiu o Roberto Justus e entrou o João Dória Jr imitando o Justus, mas porque as tarefas em si são péssimas. Na quinta retrasada, se não me engano, o programa foi um merchandising gigante da Vivo. Os participantes tinham que ir pra uma cidadezinha no Pará mostrar como o 3G mudou a vida deles. Sério, essa era a tarefa: recolher depoimentos e fazer um grande comercial institucional da Vivo, com direito à moradora chorando e o presidente da empresa, comovido, enxugando uma lágrima. Foi muito, muito constrangedor (ainda mais se lembrarmos daquele contexto em que o Brasil tem a pior e mais cara banda-larga no mundo). Enfim. A cada programa eu juro que não vou ver o próximo. E aí eu volto e fico lá, em frente à TV, sem reação, como costumamos nos comportar diante de um acidente de carro. Com vítimas.
Pois bem, nesta quinta João Dória decidiu dar um show à parte na sala de reuniões. Não bastou humilhar as três participantes ou dizer pra conselheira, “suas colegas estão decepcionando” (colegas por quê? Ah, porque são mulheres! Quanto você quer apostar que, se os três participantes julgados lá fossem homens, João não se viraria pro conselheiro homem e falaria “seus colegas”?). Não. Ele se empolgou e deu um discurso que não tinha nada a ver com o programa. Algo que nem sua inspiração, Donald Trump, deve fazer (imagino, porque nunca vi Mr. Trump in action. Dá nojinho). Aquele velho discurso do vencedor, de quem divide o mundo entre vencedores e fracassados ― e de quem, óbvio, acha que todos começam no mesmo ponto de partida. O píti tem início no 3:15 do vídeo, dá uma olhada:
Na minha empresa eu não permito que o meu time entre pra participar. Entra pra ganhar! O mundo real é o mundo que exige de quem faz a postura do vencedor. A postura do fracassado é pros outros. [...] A vida é uma competição, é como uma Olimpíada, como a Copa: só ganha um. Não tem dois vencedores. Só tem um campeão do mundo. Só tem um campeão em cada tarefa olímpica, não tem dois. A equipe, ou o vencedor individual, fruto de um trabalho de equipe, mas só tem um, só um sobe ao pódio, não tem duas equipes vencedoras, não tem dois atletas que ganham a medalha de ouro na mesma prova, é só um. O outro é prata, o outro é bronze, os outros não são nada, competiram. Mas não ganharam”.
Pois é, gente, já que vamos ficar nas alusões esportivas, é bom saber que quem participa de uma Olimpíada não é nada. Nada disso importa: o esforço, o sacrifício, os anos de treinamento, a superação, nada, porque o atleta não subiu ao pódio. E nem quem ficou em segundo pode se orgulhar, já que deixou escapar a medalha de ouro, e neste mundo só há lugar para um vencedor. Não importa que, de repente, a pessoa que participou daquela Olimpíada adquira experiência para poder subir ao pódio na próxima competição. Ou que alguém como Luísa Parente, que nunca chegou nem perto do pódio (foi "apenas" uma das 36 finalistas numa Olimpíada), foi fundamental para chamar a atenção dos brasileiros para a Ginástica Olímpica. Sem Luísa, talvez não existisse Daiane dos Santos. Ou que um país sem tradição alguma numa Copa do Mundo consiga um honroso quarto lugar, o que faz com que milhões de rapazes daquele país queiram jogar futebol. Não, isso não conta. Não ganhou? Se mata.
Nesta continuação, a partir do 1:10, Doria fica mais explícito:
O que faz a diferença é o conjunto de pessoas que querem vencer, que querem liderar, que querem trabalhar, que querem alcançar um objetivo. E não os preguiçosos, e não aqueles do 'ah, a vida já tá boa assim, tô sobrevivendo, deixa eu ficar assim, tô numa boa, não vou lutar, não vou trabalhar mais, não vou me dedicar mais. Só recebendo comidinha na boca, tá bom, tô sobrevivendo...' Não é isso, na minha empresa não é o que eu desejo. [...] O que vai transformar este país são aqueles que sabem fazer a transformação, não aqueles que sabem fazer a acomodação. A acomodação é um perigo, porque leva ou ao assistencialismo, ou ao derrotismo, ou à corrupção, ao roubo, à falcatrua, que é sempre o caminho mais fácil daqueles que são vagabundos, que são, hã, tolerantes com tudo, que acham que tá tudo bom, tá tudo bem, fica por aqui, que fica assim mesmo. Não pode!
É bem esse o discurso que parte da classe média quer ouvir: você chegou aonde chegou porque trabalha, por mérito, pelo seu esforço, não por ser um vagabundo. Quem não é vencedor é porque não se esforçou, ponto. E esses vivem nas tetas do governo, dependendo do Bolsa Família, insinua o líder do Cansei. Alguém lembra do Cansei? Foi um movimento golpista de 2007 que se dizia apartidário, mas, nas passeatas que organizou (e que foram notórios fracassos de público), o que mais se via eram cartazes do tipo “Fora Lula”. Esta biografia de João é daquela época:
João Dória Jr., principal porta-voz do movimento, é um notório direitista. Na campanha presidencial de 2006, o empresário promoveu milionários jantares de apoio ao candidato Geraldo Alckmin. Amigo íntimo de FHC, em outubro passado premiou o ex-presidente com uma escultura da artista Anita Kaufmann. Ele também é um elitista contumaz. Segundo reportagem da Veja, 'conhecido pelo dom de reunir convidados famosos em festas e eventos empresariais, João Dória Jr., 47 anos, faz questão de manter o seu visual tão impecável quanto suas duas mansões, uma nos Jardins e outra em Campos do Jordão. Ele só usa camisas feitas sob medida (quase todas com colarinho italiano e monograma) e termos Ermenegildo Zegna'. Seu patrimônio pessoal é calculado em R$ 70 milhões; é dono da empresa Dória Associados, de um centro de exposições e de uma editora; tem um helicóptero Bell-407 e acaba de comprar um jatinho Phenon.
Outro artigo da mesma revista confirma que o líder do 'Canse
i' não tem nada de apolítico ou apartidário. Formado numa família de velhas raposas da UDN e filho do deputado cassado João Dória, Junior circula pelos corredores do poder há muito tempo. Foi secretário municipal de turismo e presidente da Embratur (também afastado por denúncias de corrupção). Com toda esta 'bagagem', fundou em 1996 a Grupo de Lideres Empresariais (Lide), que reúne 406 executivos e donos de empresas com faturamento acima de R$ 200 milhões. Juntos, estes empresários controlam cerca de 40% do PIB brasileiro. 'Quem é capaz de por presidentes de grandes bancos de braços esticados, dançando Macarena? Ou, apito na bota, distribuir tarefas para chefões da indústria e respectivas senhoras? Resposta: João Dória Jr., publicitário, jornalista, empresário e, acima de tudo, talentosíssimo no trato com os poderosos', descreve o artigo bajulador.
Eu adoro que empresários que detém 40% do PIB de um país definam os critérios para dividir o mundo em vencedores e fracassados. Porque a gente sabe que esses critérios são hiper objetivos, justos e imparciais, certo?
Pode me chamar de classista: odeio essa gente.