domingo, 9 de janeiro de 2000

1939 NÃO DEVERIA TER ACABADO

Ano foi um dos mais generosos para o cinema, com inúmeras salas, muitas produções de qualidade e vários clássicos.

Sessenta anos atrás, Hollywood andava a pleno vapor. A depressão ainda afetava o cotidiano, a Segunda Guerra estava prestes a começar, e o cinema funcionava como válvula de escape. Era um verdadeiro fenômeno. Em 1939, nos EUA, existiam mais salas de cinema do que bancos. A indústria do entretenimento era a décima primeira mais forte, maior, por exemplo, do que as cadeias de supermercados. Este número já diz tudo: 50 milhões de americanos iam ao cinema toda semana. Tanto que a soma de salas per capita era duas vezes superior à de hoje.
Antes de continuar, é importante observar que poucos lendo este artigo viveram este período. Mas isso não significa que a gente deva fechar os olhos a este que é considerado o ano dourado de Hollywood. Seis décadas se passaram, e o cinema nunca mais chegou perto de produzir tantas obras-primas em um só ano. É um contraste fascinante com a década de 90, eleita, por unanimidade, a pior da história da sétima arte. Aliás, atualmente, ninguém mais se refere ao cinema como uma arte sem esconder o sarcasmo no rosto. Porém, em 1939, esta indústria ainda era bem artística.
"Indústria" é a palavra certa pra se usar hoje, e nisto não era muito diferente 60 anos atrás. Era a época dos grandes estúdios, do cinema cujo autor era o produtor, dificilmente o diretor, dos contratos de ator que o obrigavam a interpretar vários papéis por temporada. Tal como hoje, em 1939 Hollywood também lançava 400 novos filmes por ano. A diferença é que então havia vários que valiam a pena.
Bette Davis, pra ficar em um só nome, estrelou quatro produções naquele ano. Vitória Amarga, em que interpreta uma socialite mimada cuja vida está no fim, foi apenas um deles. Foi em 1939 que "Garbo riu", mais especificamente em Ninotchka, uma comédia suprema sobre uma espiã comunista corrompida pelo luxo parisiense. Greta Garbo já era um mito antes desse filme, mas ele veio para consolidar a lenda.
Frank Capra também já era reconhecidamente consagrado. No entanto, ele dirigiu sua comédia mais famosa em 1939. A Mulher Faz o Homem, com seu ator predileto, James Stewart, mostra a decepção de um jovem idealista ao se deparar com a corrupção no senado americano.
Só John Ford rivalizava com Capra pela posição de diretor mais popular, e então Ford lançou um John Wayne novinho em No Tempo das Diligências. Este faroeste, um dos mais influentes de todos os tempos, retrata passageiros com personalidades diversas cruzando o Oeste dos EUA. Naturalmente, há um ataque de índios - lembre-se que os nativos são os vilões da história e os brancos, os mocinhos. Mesmo sendo uma obra fascista, permanece indiscutivelmente na galeria dos clássicos, assim como Nascimento de uma Nação, de Griffith. É um daqueles filmes que moldaram o inconsciente coletivo americano.
E o que dizer de O Mágico de Oz? Pois é, também é de 1939. Judy Garland, então com 17 aninhos, cantando "Over the Rainbow", serve como referência? A sueca Ingrid Bergman arrasou em Intermezzo, seu primeiro filme falado em inglês. A aparição mais notória de Joan Crawford nas telas daquele ano se deu em As Mulheres, sobre a competição entre (mui) "amigas" para conquistar os corações dos homens.
O monstro sagrado Laurence Olivier (considerado um dos grandes atores do século - só Marlon Brando pode roubar seu posto) foi a Hollywood pela segunda vez para ser transformado em galã na adaptação da obra de Emily Bronte, O Morro dos Ventos Uivantes, sobre um amor sem futuro na Inglaterra pré-Vitoriana. Este clássico fez tanto sucesso entre o público feminino que, nos meses seguintes, um terço das meninas nascidas em 39 receberiam o nome de Cathy, a heroína do filme.
Poucas estatuetas
Mas, acredite, nenhuma dessas produções teve muita sorte no Oscar. A estatueta de melhor ator foi para Robert Donat por Adeus, Mr. Chips. Além dele, 1939 foi o ano de Beau Geste, com Gary Cooper na Legião Estrangeira; de Marlene Dietritch em Atire a Primeira Pedra; de Howard Hawks dando um papel essencial a Rita Hayworth, ao lado de Cary Grant; de musicais de Busby Berkeley; do Gunga Din de George Stevens; de Katharine Hepburn afiando suas unhas no teatro; da adaptação definitiva do romance de Steinbeck para o cinema, em Carícia Fatal; de Hitchcock chegando a Hollywood; de Charles Laughton brilhando como o corcunda de Notre Dame....
Eram tempos ingênuos, quando patrões sem grande talento para a arte acertavam meio que sem querer. O chefão da MGM, Louis B. Mayer, recusou a entrada de Mickey Mouse em seu estúdio sob a alegação que "toda mulher tem medo de rato". Depois, o próprio, ao consultar seu subalterno Thalberg, rejeitou um certo drama sobre a Guerra da Secessão, já que esses "não rendiam um níquel sequer". Ahn, era E o Vento Levou.
Se este clássico dos clássicos tem um autor, ele é o produtor Selznick, genro de Mayer. Sua busca pela Scarlet O'Hara perfeita mobilizou a sociedade, testou todas as atrizes imprescindíveis da época e custou 100 mil dólares, mas atingiu uma repercussão incalculável. A lenda conta que o irmão do produtor conheceu Vivien Leigh, namorada de Laurence Olivier, e a levou para conhecer Selzick no dia em que queimavam Atlanta. A inglesa ganhou o papel e incendiou o imaginário do público, que via no casal o encontro ideal entre Scarlet e Heathcliff, o herói de O Morro dos Ventos Uivantes.
O impressionante mesmo é que E o Vento Levou foi apenas um dos clássicos feitos na Hollywood de 1939. Houve tantos outros que é fácil perder a conta. Agora analise comigo: quantas obras-primas você viu nesses últimos vinte anos? Certo, certo, sei que a comparação é injusta. Mas seria bom se 1939 não terminasse nunca, se fosse um ano constante a assombrar a produção cinematográfica atual, a lembrá-la de quando os americanos sabiam fazer cinema. Faz tempo, né? 60 anos...