quarta-feira, 31 de julho de 2019

DOBRANDO A APOSTA

Quem tem o que esconder é quem tenta criminalizar o mensageiro. Excelente cartum da sempre incrível Maíra Colares

terça-feira, 30 de julho de 2019

SUA HORA DE SAIR ESTÁ CHEGANDO, EXCREMENTÍSSIMO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Eu nunca tive dúvida da insanidade de Jair, mas, depois das últimas declarações, uma depois da outra, agora quem diz isso é um dos responsáveis pelo impeachment de Dilma, o jurista Miguel Reale Jr: 
"Estamos, realmente, em um quadro de insanidade da mais absoluta. Não é mais caso de impeachment, mas de interdição". 
A Folha de S. Paulo fez uma compilação no Twitter das barbaridades mais recentes proferidas pelo miliciando que alguns insistem em chamar de presidente.
Em 19 de julho, sobre a jornalista Miriam Leitão (ninguém precisa gostar dela pra se solidarizar com ela), que foi torturada durante a ditadura militar quando estava grávida, Bolso inventou que ela estava indo pra guerrilha do Araguaia quando foi presa. E ainda negou que ela foi torturada. Em 2015, Bolso zombou do sofrimento de Miriam, que foi deixada durante horas numa sala escura do exército com uma cobra solta na sala. "Coitada da cobra", disse o energúmeno. 
Em 19 de julho, Bolso chamou a segunda maior região do país em número de habitantes e terceira maior em tamanho, o Nordeste, de "Paraíba", que é apenas um dos nove estados nordestinos. A intenção foi ofender mesmo. No áudio, ele diz: "Daqueles governadores de Paraíba, o pior é o do Maranhão". Ele estava falando de Flávio Dino (PCdoB), em seu segundo mandato, considerado nada mais nada menos que o melhor governador do Brasil. 
Ainda no mesmo dia, Bolso disse que "falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira". Depois, diante da repercussão negativa da sua ignorância explícita, voltou atrás e reconheceu, irritado, que "alguns passam fome". 
Também no dia 19, novamente defendendo nomear seu filho Dudu para embaixador nos EUA, Jair deixou patente seu nepotismo num vídeo: "Pretendo beneficiar meu filho, sim. Pretendo, está certo. Se puder dar um filé mignon ao meu filho, eu dou".
Ainda no mesmo dia, Bolso negou as estatísticas do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) sobre o desmatamento da Amazônia e sugeriu que o presidente do INPE estaria "a serviço de alguma ONG". Três dias depois, quis censurar o INPE. Reclamou que "as informações" devem chegar a eles antes de serem divulgadas. 
Em 27 de julho, falou que questões sobre o meio ambiente só são importantes pros "veganos que comem só vegetais". Ainda insistiu em transformar Angra dos Reis (onde ele tem uma casa) em Cancún, e declarou: "Se quiséssemos fazer uma maldade, cometer um crime, nós iríamos à noite ou em um fim de semana qualquer na baía de Angra e cometeríamos um crime ambiental, que não tem como fiscalizar". 
Tem como fiscalizar, miliciano. Em 2012 ele foi multado por pescar em lugar proibido. Assim que chegou à presidência, Bolso exonerou o fiscal que o multou. De fato, assim fica um tanto difícil fiscalizar. 
Ato de apoio a Glenn hoje em SP e RJ
Também em 27 de julho, Bolso insinuou que o jornalista Glenn Greenwald é "malandro" e teria se casado com um brasileiro e adotado dois meninos "para evitar um problema desse". Bolso se referia à portaria criminosa 666 baixada por Moro (que permite deportação imediata de estrangeiros). Acrescentou ainda: "[Glenn] não vai embora, pode ficar tranquilo. Talvez pegue uma cana aqui no Brasil". E disse que Glenn cometeu um crime, sem especificar qual. 
Ontem, 29 de julho, Bolso colocou em dúvida a morte de um cacique numa aldeia da etnia Wajãpi no Amapá, que foi invadida por cinquenta garimpeiros. "Usam o índio como massa de manobra", afirmou Bolso, que voltou a dizer que quer legalizar o garimpo no Brasil, inclusive nas terras indígenas. A ONU condenou o assassinato do cacique, mas o presidente do Brasil (que incentiva as invasões) não reconhece a morte! Isso pode levar a sanções de países que respeitam direitos humanos. 
Ontem Bolso bateu alguns recordes. Ao tentar atacar a OAB, disse: "Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como o pai dele desapareceu no período militar, eu conto". Ele estava falando de Fernando Santa Cruz, que em 1974 "desapareceu" durante a ditadura militar. 
Não foi a primeira vez que Bolso atacou familiares das vítimas. Quando parlamentar, posou ao lado de um cartaz que sugeria que quem gosta de osso é cachorro, ironizando as buscas por ossadas de desaparecidos durante a ditadura. 
Em 2014, ele cuspiu numa estátua de Rubens Paiva enquanto gritava "Teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!". Tudo isso na frente do neto de Paiva, que tinha sido convidado para a inauguração do busto que a Câmara dos Deputados expôs para homenagear o deputado torturado e morto pela ditadura em 1971 (pai do escritor Marcelo Rubens Paiva).  
Atos marcados para este domingo, 4/8
E, lógico, ninguém se esquece de quando, no impeachment de Dilma, Bolso saudou um torturador: "pela memória do coronel Carlos Alberto Ustra, o pavor de Dilma Rousseff". Ustra foi o primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador. Um de seus métodos de tortura era enfiar ratos vivos nas vaginas das mulheres. O discurso de Bolso foi tão chocante que muitos ativistas e a própria OAB pediram sua cassação. 
"Com o Supremo, com tudo", e com um juiz empenhado em prender Lula e impedir que ele concorresse, não deu em nada. Mas Bolso deveria ter sido cassado naquele momento inglório de maio de 2016. Aliás, muito antes, quando agrediu Maria do Rosário, em 2003 e 2014. 
Sua declaração para o presidente da OAB Felipe Santa Cruz foi muito, muito mal recebida. Tanto que mais tarde Bolso cancelou uma reunião com ministro francês para gravar um vídeo enquanto cortava o cabelo, dizendo que quem tinha assassinado Fernando foi a esquerda. Só que, no mesmo dia, ficamos sabendo que semana passada saiu um atestado (do próprio governo!) afirmando que Fernando foi morto "pelo Estado"
Hoje, Bolso reagiu: chamou de "balela" os documentos sobre mortes na ditadura, e disparou: "Você acredita em Comissão da Verdade?" Não, Bolso, a gente acredita em você, o rei das fake news, que foi eleito à base de mentiras como kit gay e mamadeira de piroca. 
De vez em quando o governo solta seus ministros pra falarem alguma besteira pra servir de cortina de fumaça -- Damares dizendo que abuso sexual na Ilha de Marajó é por falta de calcinha, Weintraub batendo boca com o povo em meio a suas férias, 
sinistro do meio ambiente recomendando comercial de carro, o banqueiro Paulo Guedes gritando "Vai trabalhar, vagabundo!" -- mas, como eu disse desde o começo, o maior bobo da corte do governo Bolso é ele mesmo. 

A questão é: e agora, Jair? As tags exigindo impeachment já de Bolso dominam o Twitter desde ontem. 
Clique para ampliar
Vários especialistas apontam que as falas de Bolso quebram decoro e podem ser enquadradas na lei de crimes de responsabilidade, a lei no. 1.079. É óbvio ululante que Bolso procede "de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo". Eu quero o impeachment de Bolso. Chega! 
Lógico que também há as tags dos bolsobots que dizem coisas estapafúrdias como, por exemplo, "Bolsonaro tem razão". Leia o festival de horrores proferido por Bolso apenas nos últimos dias e me diga, com toda sinceridade, se esse excrementíssimo senhor presidente da República tem razão em qualquer coisa. 

segunda-feira, 29 de julho de 2019

GUEST POST: A ESPERANÇA É FEMINISTA

Laís Lacerda, estudante de medicina e "aficionada por Dilma", me enviou esse belo texto que ela escreveu.

Eu tinha 14 anos quando Dilma tomou posse. Foi um daqueles dias que a gente lembra onde estava. Foi em casa, de pijama, durante as férias escolares da oitava série, com minha mãe ao lado que eu aprendi que a palavra "presidente" poderia ser flexionada. Lembro de assistir à posse com o fascínio de quem se dá por conta pela primeira vez do (não tão) óbvio: uma mulher poderia ocupar o cargo mais alto da nação. E quanto mais eu descobria sobre a vida daquela mulher, mais certa eu estava de que havia algum tipo de justiça nesse mundo, cósmica ou constitucional. Havia esperança na luta.
Foi nesse país que me tornei mulher. No país que proporcionou à minha mãe o ingresso na tão almejada, e outrora tão distante, Universidade Federal, no país que havia saído do ranking da fome em pouco mais de uma década, no país que vencera o autoritarismo e vinte anos depois exportava tecnologia social aos quatro cantos do mundo e que agora elegia uma ex-militante como representante maior. 
A imagem de Dilma passando às tropas em revista tendo sofrido as sevícias da ditadura será sempre pra mim um dos momentos mais emblemáticos da História.
A coragem da jovem Dilma,
enquanto os militares que a
interrogam cobrem o rosto
Eu cresci com o sentimento desperto em mim naquele primeiro de janeiro de que tudo seria possível -- bastava eu lutar. Cresci com o conforto das oportunidades que minha mãe não pode ter, cresci cultivando o sonho de um Brasil que tinha espaço pra mim. Um fascínio que eu organizei em garra e luta e que me levou a voos que jamais imaginei alçar. 
Tudo que eu conquistei depois teve um pouco daquele primeiro de janeiro.
O registro de uma cerimônia de 2012 por Wilton de Sousa Jr, da Agência Estado, ganhou vários prêmios
E foi de dentro de uma universidade pública que eu assisti a votação do golpe. Foi como cotista do curso mais concorrido do Brasil que vi homens medíocres serem lançados ao poder, enquanto outros homens à minha volta bradavam a derrocada daquela "vagabunda", "burra", "feia". 
Foi como futura profissional de um meio historicamente dominado por homens que eu vi a saudação a um torturador estuprador ser vociferada no congresso sob aplausos da vasta maioria dos deputados e da nação. Foi como mulher que eu vi a apologia à violência sexual escancarada nos carros e na cara do brasileiro, em uma demonstração pública de misoginia jamais vista neste país.
Hoje vejo um país dividido pelo ódio e pelo rancor, onde o cerco às Instituições se fecha, um país que condena sem provas, que cassa sem crime, em que vemos o crescente número de mulheres assassinadas, que volta ao mapa da miséria, que condena seu povo a trabalhar até morrer e que nega sua História. Um país continental com um governo branco, reacionário e… masculino. É nesse país que piso para iniciar a vida adulta. É nesse país em que mais uma vez organizo em luta os sentimentos despertados em mim por essa conjuntura inóspita. Digo sem medo e com a força das que vieram antes de mim que em tempos de luta a esperança é feminista.
Estranhamente, de todos os discursos de Dilma, o que mais gosto é o do impeachment, quando, vestida de vermelho, ela saúda -- calma e altiva como chegou -- todas as brasileiras que virão depois dela nesse "caminho de mão única que abrimos em direção à igualdade de gênero e que nada poderá nos fazer recuar". 
Não sei, Presidenta, aonde essa semente plantada lá em 2011 pretende me levar, mas por aqui seguimos cansadas e sem os sonhos mornos da infância, mas lutando com a justa indignação daquelas que ainda acreditam na democracia.
"Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados." (Simone de Beauvoir)

sexta-feira, 26 de julho de 2019

O FEMINISMO É FEMININO? A INEXISTÊNCIA DA MULHER E A SUBVERSÃO DA IDENTIDADE

Recebi o que parece ser um ótimo livro da Maíra (ainda não tive tempo de ler). Como ela me enviou três exemplares, vou ficar com um, doar um pra biblioteca da UFC, e sortear um entre vocês. Portanto, se você quiser participar, deixe uma mensagem com algum tipo de nome na caixa de comentários. E verifique depois se vc foi a felizardx!
Outra coisa é que o último livro que sorteei, Um Guia Pussy Riot para o Ativismo, foi para o Claudio Rabelo. Ele leu, gostou muito, e está disposto a passá-lo adiante. Por isso, farei dois sorteios desta vez. Um para o livro da Maíra, e outro para o Guia Pussy Riot, que o Claudio enviará pelo correio para quem ganhar o sorteio. 
Maíra Marcondes Moreira é feminista, psicanalista e doutoranda em Processos de Subjetivação na PUC Minas. Eis seu guest post apresentando seu livro, que pode ser comprado aqui.

A pergunta que dá título ao livro provoca uma série de alusões a discussões presentes dentro e fora do feminismo. Seria o feminismo um movimento em concordância com o que se entende por feminilidade? Seria um movimento sectário, segregacionista e que não aceita homens? Um movimento feito pelas e para as “mulheres de verdade”?
Se em muitos momentos o feminismo aparentou ter superado questões relativas ao eterno feminino, por outro lado, o movimento e seus sujeitos políticos não deixaram de ser nomeados, de forma difamatória, de masculinos e de histéricos. Questiona-se tanto se as feministas são mulheres femininas e o seu fazer político, já que a vida pública e a política são reservadas aos homens!
Mas para além dessas questões surgem outras cruciais para nosso tempo e para repensarmos o feminismo, como: a discriminação que as mulheres trans e pessoas não binárias sofrem dentro do próprio movimento; o alcance midiático que o feminismo liberal alcançou nos últimos anos, produzindo novos imperativos sobre o que seria uma mulher empoderada e emancipada às custas da exploração de mulheres pobres, racializadas e de sexualidades dissidentes; a promoção de discursos corporativistas sobre "diversidade" e "oportunidades" no mercado de trabalho; e os projetos paternalistas do Estado, “preocupado” em proteger as mulheres, pois estas seriam vítimas indefesas e passivas que dependem inteiramente de um Estado punitivista e responsivo às suas demandas.
Todas essas questões perpassam, de um modo ou de outro, o livro. Porém, a pergunta se encontra deslocada dos sentidos que atribuímos inicialmente. Interessa ao livro questionar a categoria identitária como premissa do feminismo, sem que isso o leve necessariamente a um feminismo classista ou interseccional.
As políticas pós-identitárias no feminismo e políticas queer apontam para um novo entendimento do feminismo. Não mais pautado em responder quem de fato seria a mulher do feminismo (cis, branca, hétero etc), criam-se novas maneiras de se pensar a política. Se comumente entendemos a política a partir de critérios de identidade, representação, unidade e universalidade, esta fica confinada a práticas institucionais, o que faz com que seus sujeitos careçam de imaginação política para romper com a lógica prescrita.
Como pensar a ação política fora da premissa identitária e quais as consequências disso? Como colocar os corpos em assembleia senão por um ideal identificatório? Essas são questões que há muito interessam a filósofa Judith Butler, cujo livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade é um marco no feminismo e estudos queer. 
A proposta do meu livro é pensar esse modo de se fazer política dentro do feminismo, conforme proposto por Butler, a partir de outra corrente de pensamento contemporânea ao feminismo, a psicanálise. 
Se por um lado a autora se refere à dificuldade de consistir quem seria a mulher do feminismo, e os processos de segregação contra mulheres em situação precarizada dado a outras opressões que elas se encontram sujeitas, a psicanálise opera por um viés anti-identitário quando Lacan anuncia que “a mulher não existe”.
Se essa frase já causou rebuliço dentro do movimento feminista outrora, hoje podemos dizer que ela está à altura de seu tempo. Um feminismo não identitário é um feminismo feminino, não em sentido de sexo, nem de gênero, nem de feminilidade, mas de gozo e de lógica. Não há para nós mulheres um mito do matriarcado e é por isso que somos nós quem podemos subverter o patriarcado e operar politicamente fora dele.
Não se trata de criticar e jogar por terra as políticas identitárias, classistas e intersecionais, mas de propor, não só, que há um modo feminino de ação política e mais, que o feminino é político! Este é um livro importante para aqueles que se interessam pelos modos de ação política, formas de reconhecimento e debate entre psicanálise, feminismo e teoria queer.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

FOME NÃO É PROBLEMA NO BRASIL

Arte incrível do Cris Vector
Enquanto o presidente dos milicianos diz que a fome não é um problema no Brasil ("falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira", afirmou o mentecapto), o país vive um retrocesso imenso. Depois de uma redução jamais vista na desigualdade social, estamos de volta à miséria. Em dois anos, quase 2 milhões de pessoas passaram a linha da pobreza extrema (segundo o IBGE, quem ganha menos de R$ 7, ou US$ 1,90, por dia). 
Se alguém duvida, basta ir às ruas e ver como explodiu a população de rua em todos os cantos do Brasil. "Como pode ser um problema da pessoa se a cada dia tem mais e mais gente na rua?", pergunta um morador de rua entrevistado pela excelente reportagem
Recomendo também o artigo maravilhoso da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado para entender o que aconteceu com o país. Tem volta?

quarta-feira, 24 de julho de 2019

PROJETO SEVERINAS, O FEMINISMO NO SERTÃO CEARENSE

Meninas do Assentamento Recreio com o cartaz da exposição

Conheci Mayara Albuquerque em 2015, quando tive a honra de palestrar num congresso sobre gênero no sertão
Agora em fevereiro, pude fazer parte da sua banca de mestrado na UECE de Quixadá, em que esta jovem brilhante dissertou sobre como incluir o ensino de escritoras mulheres nas aulas de literatura nas escolas públicas de Quixeramobim, Ceará (leia sua dissertação inspiradora aqui).
Quixadá, 2015
Eu já conhecia seu lindo projeto, que ela compartilha aqui com todxs nós. Leia e apaixone-se pela iniciativa desta militante feminista e professora do ensino médio no sertão nordestino. E conheça o Projeto Severinas no Instagram.

Mayara em ação
Se alguém na próxima vez me perguntar o porquê do projeto vou lembrar do que um dia desses veio na cabeça e dizer: foi a forma de conhecer mulheres que sempre quis conhecer sem a timidez atrapalhar. 
A forma tímida na hora de conversar permanece e a câmera deveria atrapalhar no lugar de ajudar, mas é o meu pretexto, a minha grande carta na manga. Não poderia dizer para uma mulher que nunca vi na vida: “oi, saí de casa, rodei alguns quilômetros de moto, às vezes solitariamente, só para vir te conhecer e por aí eu te chamo carinhosamente de Severina”. Provavelmente ela me acharia  uma pessoa não muito boa das ideias e até mesmo perigosa. 
Convite da primeira exposição do ano
Para entrar labirinticamente nas veredas do Sertão com a minha moto pequena, sem bolsas de couro penduradas, resolvi escrever e concorrer a um edital. A felicidade é que ganhei, me tornei uma proponente e, assim, teria recurso público para espalhar a palavra do feminismo Sertão afora.
Oficina Vivência Feminina de Autoamor: Somos Todas Uma, com Ruanna Azevedo na Escola Humberto Bezerra, em Quixeramobim
O projeto é Severinas Mulheres do Sertão e eu sou a Mayara Albuquerque, ou uma jovem mulher, professora, leitora de mulheres, pesquisadora de gênero, lgbt e tudo mais que o atual governo adora, só que não. Escrevendo divago muito, já falando me perco nas palavras e até mesmo para explicar o projeto para as mulheres depois de bater em suas portas ansiando uma resposta ao meu “ôôô de casa” não é fácil. Eu digo que estou lá para conhecer a história delas e a maioria acha graça. 
Margarida e Raimunda são irmãs. Raimunda, que segura a foto da mãe, faleceu no começo do ano. Esta foto saiu da exposição direto para a parede da casa dela. Raimunda era cega
A minha relação com as mulheres do campo vem de alguns anos e posso dizer que a minha vida nunca mais foi a mesma. Tive a oportunidade de trabalhar em uma ONG como comunicadora popular e conheci mulheres que nunca mais esquecerei. Socorro, Didi do Sossego, Didi da Aroeiras, entre muitas outras que me mostraram como o “perigo da história única” a que se reflete a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é real.  
Essas mulheres são múltiplas, desdobráveis, como diria Adélia Prado. No entanto, a mídia vê mulheres rurais com enquadramentos tão limitados que quando não são “sofridas”, são muito “guerreiras” e até a seca não é páreo para elas. A relação desabrochou tanto que mesmo em sala de aula nunca deixei de pensar com carinho nessas mulheres e no que o contato com elas me fazia e pensei no projeto como uma forma de permanecermos próximas.
Momento de meditação guiada por Maria Oliveira com as mulheres do Assentamento Canaã
Com o Severinas desenvolvemos oficinas em escolas públicas da cidade e zona rural, realizamos rodas de conversa que chamamos carinhosamente de Ciranda das Mulheres Sábias, em referência ao livro da psicanalista e poeta Clarissa Pinkola Estés, com mulheres de assentamentos e comunidades, e também fazemos exposições fotográficas nas zonas rurais com as fotografias das mulheres que vivem lá. É como costumo falar quando estamos reunidas, o projeto não é nosso, é de vocês, das Severinas. Não faria sentido expor na cidade quando a maioria não poderia ver a sua foto e levá-la para casa. Um dia devemos ocupar espaços mais centralizados, mas por enquanto queremos descentralizar e estar com elas. 
Margarida ao lado da margarida que plantou no quintal
Escrevi um texto sobre o projeto que fica disponível em uma painel nas exposições que fazemos e gosto muito dele: 
Catálogo-zine para prestação
de contas com a Secult
"A exposição fotográfica Severinas -- Mulheres do Sertão não é só sobre mulheres que carregaram água na peneira a vida toda, que foram silenciadas ou excluídas, é sobre  força também. A força de ser mulher, de mover o mundo com o ventre e a dor, com o sexo e o desejo, com as mãos e os pés, cabelos longos ou não. Severinas é sobre mulheres que vivem no Sertão e os seus cotidianos e o que aprendemos quando temos a oportunidade de compartilhar a vida com elas.  
O que nos lança nessa 'retirância' é transformar registros de viagens pelo interior do Ceará em exposições por comunidades e assentamentos para que as mulheres possam se reconhecer de uma maneira digna: com amor próprio, orgulhosas de suas identidades e raízes, desconstruindo o perigo da história única para assim revelar narrativas múltiplas e quebrar o processo de invisibilidade que carregam ou carregaram ao longo de suas vidas". 
Maria Oliveira rodeada de meninas na Oficina Tecendo Novas Mulheres com a Literatura de Autoria Feminina na escola Liceu de Quixeramobim, na comunidade Uruquê
Os dias de exposição são de festa. Fotografamos o máximo que podemos, conhecemos as mulheres e vamos criando laços e nos relacionando com a comunidade, até o momento  em que temos um bom acervo e os convites estão prontos. No dia é muita foto para ver, amigas para rever, além  da mesa com toalha de chita e café com bolo. 
Última oficina em parceria com a Funarte na comunidade Fogareiro
Terminamos exaustas, porém muito felizes. Falo no plural porque ao meu lado caminha uma grande amiga e companheira de projetos e sonhos que é a Maria Oliveira, sem ela nada disso seria possível. Assim como as mulheres e as instituições que nos financiaram ou ainda estão nos financiando, mesmo assim Maria e eu já entramos em acordo que mesmo que passemos em algum momento por um período sem recursos financeiros faremos o que for possível para continuar com as atividades. 
Irismar e sua bicicleta no Assentamento Olho D'Água do Forno
O primeiro edital que ganhamos fortaleceu a nossa jornada e muito. Com o “X Edital  Ceará de Incentivo às Artes 2015” da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará – Secult começamos a viajar e nos empoderar. Desde as primeiras viagens percebi que o projeto não finalizaria com um relatório final, mas que seria uma das grandes alegrias da minha vida. O que ocuparia a minha mente e me faria crescer como ser humano, me daria um pouco de preocupação e ansiedade para no final ser mais um dia memorável, me daria experiências pelas quais sem elas eu seria um pouco menos eu.            
Segunda exposição com o apoio da Funarte, no salão comunitário do Assentamento Parelhas
Muito empoderadas e acreditando no que estávamos fazendo resolvi inscrever o Severinas para o  “Prêmio Funarte Artes Visuais – Periferias e Interiores” da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e quase não acreditei quando vi o resultado. Nós tiramos o primeiro lugar, o primeiro! Depois disso percebi, de uma vez por todas, a sua potencialidade e  importância e que temos muito o que conquistar pela frente. 
Sempre digo que não sou fotógrafa, Maria também não é curadora, e juntas não somos artistas. Isso não é modéstia nossa e quem sabe um dia possamos ser essas coisas e muito mais, mas o que queremos mesmo é viver em um estado menos machista e ver mulheres mais empoderadas e derrubando o patriarcado com frases muito simples como um dia vivenciamos: “sai pra lá um pouquinho que hoje elas vieram me fotografar”. Foi o que uma das mulheres fotografadas disse para o marido enquanto eu tentei fazer um registro seu segurando minhocas.
Estandarte do projeto produzido pela professora e bordadeira Neyliane Oliveira. "O presente mais bonito que recebemos", diz Mayara
Por fim, resolvi escrever para Lola e pedir o espaço no seu blog, que sabemos não ser qualquer diário virtual, não porque eu quero visibilidade, mas porque precisamos valorizar o trabalho de mulheres, precisamos valorizar o que fazemos, sobretudo ouvir mulheres que nunca foram ouvidas e que desconhecem suas próprias vozes, seu próprio poder.
Ciranda das Mulheres Sábias no Assentamento Olho D'Água do Forno