quinta-feira, 30 de novembro de 2017

SOBRE A POLÊMICA DO ENADE E A TRANSFOBIA NOSSA DE CADA DIA

Reproduzo aqui um texto que a página Professores Contra o Escola sem Partido publicou sobre uma polêmica no Enade que eu nem estava sabendo:

Nessa última semana, parece que a página do Escola Sem Partido e outras associadas a ele encontraram um novo alvo para onde dirigir seu discurso paranoico. Depois da polêmica com a redação do ENEM, a bola da vez é uma questão do ENADE (avaliação para alunos do ensino superior) que tratava da importância do nome social para pessoas trans, pedindo que a resposta fosse dada respeitando-se os direitos humanos. 
Assim como foi com o ENEM, os ataques do Escola sem Partido e cia se concentraram nesse último, batendo na tecla do senso comum de que exigir o respeito aos direitos humanos seria uma forma de impor a "ditadura do politicamente correto", doutrinando estudantes e censurando a liberdade de expressão dos estudantes. Outros, como o canal Mamaefalei, seguiram o caminho de desqualificar a questão pois ela não teria nada a ver com com uma avaliação de alunos de cursos superiores como engenharia, por exemplo.
Vamos discutir esse assunto mais a fundo aqui na página ainda nessa semana, então só vamos fazer algumas considerações a respeito:
1. O ENADE é composto de um total de 40 questões, sendo somente 10 dessas do componente de Formação Geral, que representa um peso de 25% no valor total da prova. Como as críticas não parecem se dirigir às 10 questões como um todo, mas somente a que trata do nome social, parece que o problema não é com o modelo da prova em si e sim com o assunto dessa questão. Como se assumir abertamente transfóbico não deve passar uma impressão muito boa, a saída parece ser a acusação de "doutrinação ideológica".
2. Uma prova de conhecimentos gerais implica na discussão de temáticas que estão presentes tanto na vida acadêmica quanto na vida social dos estudantes. O debate sobre o direito ao nome social pode até não ser um tema do campo da engenharia, mas cursos de engenharia a princípio devem estar abertos para todos os tipos de pessoas, inclusive pessoas trans. O objetivo do ENADE é construir "referenciais que permitam a definição de ações voltadas à melhoria da qualidade dos cursos de graduação por parte de professores, técnicos, dirigentes e autoridades educacionais." Isso envolve não só discussões sobre o currículo ou sobre a estrutura física dos cursos, mas também sobre relações de convívio e acessibilidade.
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3. Fazer essa questão ou o ENADE como um todo não é obrigatório. O comparecimento na prova do ENADE e o preenchimento do cartão de identificação é obrigatório, mas não a realização da prova. A prova não está avaliando estudantes individualmente, mas sim os cursos que estes frenquentam. Os resultados  individuais no ENADE afetam os conceitos dos cursos, mas não dos alunos. É muito comum que estudantes de graduação boicotem o ENADE por um número variado de razões sem que para isso precisem sair prejudicados. Dessa forma, parece um tanto estranho classificar uma questão específica cuja resolução não é obrigatória como um exemplo de "doutrinação".
4. Sobre a questão do respeito aos direitos humanos e a liberdade de expressão, tratamos muito disso na época da polêmica do ENEM, mas vale sempre reforçar: PRECONCEITO NÃO É OPINIÃO! Não dá para usar o argumento da liberdade de expressão como argumento de autoridade. Direitos são complementares e interdependentes. Não se pode usar de um direito para violar o outro. O direito à liberdade de expressão não pode ser usado para violar a dignidade humana de grupos vulneráveis como pessoas trans. Só porque você pensa assim, não quer dizer que você deva agir assim. Vivemos em sociedade, certas regras precisam ser seguidas.
5. O nome social é um direito garantido pelo governo brasileiro e embasado juridicamente no campo dos direitos humanos.
6. Isso não é uma defesa ao ENADE. Entendemos que esse modelo de avaliação externa é insuficiente para promover políticas públicas que garantam um modelo democrático de universidade.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

"SEM MEDO DE VIAJAR SOZINHA, MAS..."

Maiara Braga tem 24 anos, mora na Espanha e é professora. Aqui ela conta o que tem passado nos últimos dias:

No dia 17 de novembro de 2017 eu estava a caminho de Portugal pela terceira vez nesse ano. Prometi a mim mesma que ia visitar o país uma vez por mês até o ano acabar e estava intencionada a cumprir a minha meta. Já havia viajado duas vezes em dois meses da mesma maneira. O que poderia ser diferente?
Eis que nessa viagem em específico eu era a única passageira desde Paris até Santiago de Compostela. Partindo por Santander, daria umas cinco horas de chão sozinha. Viajo sozinha de avião, ônibus, trem, barco, desde os 12 anos de idade. Meus pais apoiaram desde cedo este meu lado aventureiro. Faço isso há doze anos e nunca tive medo, pelo menos, sempre confiei muito na minha boa sorte.
A viagem teria tudo para ser mais uma da minha coleção se não fosse o motorista me assediando com perguntas durante todo o trajeto, perguntando se eu tinha redes sociais, falando da sua vida, mandando fotos e sentado do meu lado num ônibus vazio (quem dirigia nessas horas era o suplente).
Poxa, eu estava aterrorizada. Era só eu, o motorista e o suplente durante a travessia de um país pro outro. A minha única solução era "fazer o jogo" e ser educada o máximo possível. Também liguei e mandei mensagens com minha localização em vários apps e para várias amigas. Além disso, tirei muitas fotos e peguei os nomes dos envolvidos e registrei a viagem por precaução.
Quando cheguei em Santiago de Compostela, entraram mais pessoas e eu me camuflei em meio a elas. Respirei aliviada e achei que isso seria apenas um fato isolado, até o dia 24 de novembro, em Porto, onde eu estava num bar iluminado com uma amiga comendo um salgado e bebendo uma cerveja. Sempre vamos a esse bar e ficamos no balcão pra facilitar o acesso, mas nesse dia um rapaz bem apessoado iniciou um brinde e sucessivamente um flerte.
Notei que ele fazia o meu tipo e aceitei o brinde e perguntei-lhe o seu nome. Não me respondeu. Perguntei-lhe outra vez e também de onde era. Não obtive resposta. Virei as costas decidida a deixar pra lá. Mas o sujeito me agarrou pelo pescoço, prendeu meus braços e pernas com o seu corpo e apertou forte o meu corpo contra o seu. Tudo isso se passou em questão de segundos, em meio a muitas pessoas e num lugar bastante iluminado.
Eu estava em choque, e minha amiga, notando minha expressão, me ajudou a sair dos braços dele e o xingamos. Enquanto isso, ele tentava me tocar e me apertar a todo custo. Seus amigos se aproximaram e diziam ser da mesma cidade que ele e que tudo não passava de uma brincadeira. Sim, BRINCADEIRA. O ato de surpreender e agarrar uma mulher por trás era uma mera brincadeira. Discutimos e logo percebemos que não valia a pena e fomos embora pra casa.
Cheguei em casa frustrada e bem insegura, com medo de desencadear uma crise de ansiedade, e no sábado, dia 25, decidimos não sair. Meu bilhete de volta estava marcado pro dia 26 e assim foi, peguei o ônibus com destino a Paris e nessa viagem tinha mais pessoas, achei que seria tranquila.
Ledo engano, o motorista dessa viagem também começou a me assediar. E o ônibus estava cheio. Perguntou-me se eu estava indo à Paris e eu disse que não, que meu destino era Santander, disse pensando que seria o fim da conversa, mas ele continuou. Disse que se eu quisesse podia ir à Paris de graça com ele, que não me cobraria o bilhete nem nada da viagem. Sorri amarelo e peguei o celular pra mandar mensagem para as minhas amigas avisando de uma possível situação constrangedora.
Perguntou-me se meu nome era Maiara Braga, confirmei. Ele: Você tem facebook? Eu disse que não tinha. Ele: Hum, eu sei que seu nome é Maiara Braga, o seu telefone e email, mas não te acho aqui no face... Você tem whatsapp? Eu disse que tinha, mas por questões de trabalho, e que não usava. Ele: Então como vamos nos encontrar em Paris um dia? Como você conversa com seus amigos? Eu: por twitter.
Nesse instante eu já havia enviado minha localização às minhas amigas e solicitado que me ligassem para conversarmos durante o meu trajeto. O motorista me viu digitando freneticamente e perguntou se eu o estava denunciando à agencia de viagens por assédio, se eu era uma dessas mulheres que não diferenciava assédio de cavalheirismo. Não respondi.
Meu telefone tocou e fiquei conversando com as minhas amigas. Aí chegamos em uma parada e o motorista me convidou para uma cerveja. Eu queria muito fazer xixi mas preferia fazer xixi nas calças a sair da vista dos outros passageiros, então não me movi e disse que estava bem e que ia dormir. Minhas amigas ligaram de novo e conversamos por umas duas horas até chegar na minha cidade e descer. Eu cheguei dessa viagem exausta e muito humilhada.
Não consigo conceber a ideia de que minha paixão por viajar esteja colocando em risco a minha integridade e em consequência disso, a minha vida.
Talvez o assédio a mim sempre tenha existido, mas depois de terminar um relacionamento abusivo e aprender a "detectar os sintomas", passei a prestar mais atenção nos detalhes e nas coisas ao meu redor. Tenho certeza de que se eu pensar nas minhas viagens passadas vou encontrar mais situações assim, mas prefiro nem alimentar essa ideia pra não desanimar mais.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

REBECA, UMA MULHER DE CORAGEM QUE PRECISA ABORTAR

Esta é a história de Rebeca, uma mulher que pediu o direito ao aborto seguro no STF na semana passada.
Em uma fase de troca entre métodos, de injeção para DIU, o serviço público de saúde deixou Rebeca Mendes Silva Leite, 30 anos, mãe de dois filhos, sem método alternativo enquanto esperava uma ultrassonografia. Ela engravidou e procurou a Anis - Instituto de Bioética para uma medida judicial que lhe concedesse o direito de realizar um aborto legal. Fez exames laboratoriais e por imagem que atestam gravidez de 6 semanas, 2 semanas de atraso menstrual. Ela está informada e lúcida, foi a uma psiquiatra que emitiu laudo sobre os riscos a sua saúde mental, de sua família e mesmo do feto com a obrigatoriedade da gravidez. Ela repete muito “Não quero morrer, quero ser a mãe de meus dois filhos”. Recorrer a um método clandestino não é uma opção para ela. 
Na quarta passada, 22/11, o Supremo Tribunal Federal conheceu a história de Rebeca, por meio de uma ação apresentada pelo PSOL e a Anis pedindo o direito de interromper uma gravidez indesejada de seis semanas. Rebeca não tem condições econômicas e emocionais de levar sua gestação adiante: é responsável pela criação de dois filhos e vive com recursos de um trabalho temporário que vai só até fevereiro. 
Aqui, Rebeca conta novamente sua história, em uma carta direcionada a ministra Rosa Weber, da 1ª turma do Supremo, solicitando a descriminalização e segurança do aborto para o seu caso. Não há prazo para que a ministra tome a decisão. Se for determinado pelo STF que a decisão tem repercussão geral, o aborto para todas as mulheres até a 12.ª semana da gestação passaria a ser permitido.
Em tempo: não há até então nenhuma decisão autorizando casos como o de Rebeca no STF. Todas as decisões sobre aborto dizem respeito a gestações de risco de vida para a mulher ou de fetos com má-formação.
(O depoimento de Rebeca foi originalmente publicado no site Think Olga e faz parte da campanha #EuVouContar, criada pela Anis e pelo Think Olga com o intuito de ouvir semanalmente histórias de aborto). 
Meu nome é Rebeca, tenho 30 anos, sou mãe de dois meninos. Thomas de 9 anos e Felipe de 6 anos. Não é fácil, mas tentarei descrever o motivo do meu atual sofrimento. Na terça-feira, dia 14/11, descobri que estou grávida.
Minha menstruação, até então, estava atrasada apenas 10 dias. O que isso significou pra mim naquele momento? Bom, senti um grande abismo se abrindo e me sugando cada vez mais para baixo. Desde então, já não sei o que significa dormir, comer, estudar, enfim, tudo o que faço tranquilamente e quando não estou fazendo “nada”, eu estou chorando. Fico imaginando as possibilidades, e a longo prazo se eu estivesse vivendo outra realidade, o mínimo diferente que fosse, eu não estaria escolhendo fazer um aborto.
O que tentarei fazer aqui é um relato verdadeiro do que está acontecendo neste momento e mais ainda, tentarei ser o mais racional possível. Como já disse, sou mãe de dois meninos lindos e mesmo o pai pagando a pensão alimentícia para os meninos e morando muito perto de nós, ainda assim, me considero uma mãe que também faz o papel de pai. 
O lema dessa pessoa que se considera pai dos mais filhos é: “eu já pago pensão”. Isso é o que eu escuto basicamente, em qualquer situação, desde chegar da faculdade às 23 horas e perceber que um deles está com febre alta e ligar e pedir que nos leve até o hospital, pois ele tem carro e eu não, e a resposta que eu tenho é: “Eu não pago pensão? Chama o Uber e leva você”. Dentre outros absurdos que não vêm ao caso.
Mas o que isso tem a ver com a atual gestação? Infelizmente, o pai dos meus dois filhos é responsável também por essa gestação. Quando eu conto esse detalhe, geralmente as pessoas riem da situação. Mas não sabem como é ter um relacionamento saudável e sem remorsos, sendo uma mãe solteira. Mesmo assim, estamos separados há 3 anos, e essa foi a única aproximação amorosa que tivemos. Mas ainda assim não é esse o motivo que me leva à decisão de interromper essa gestação. 
Já adianto aqui, são dois motivos que me levam a essa decisão. O principal deles é que em fevereiro, para ser mais exata, no dia 11/02/2018, eu serei uma mulher desempregada. Tenho um contrato de trabalho temporário no IBGE, e nessa data ele se encerra sem a possibilidade de renovação. Serei então uma mãe de dois filhos desempregada e grávida.
Se já é difícil para uma mulher com filhos pequenos trabalhar em nosso país, é impossível uma mulher grávida conseguir um trabalho para qualquer atividade que seja. Seremos três pessoas passando necessidades, não conseguindo pagar meu aluguel sem ter dinheiro para comprar comida e com toda essa dificuldade ainda terei um bebê a caminho. Esse é um cenário que a longo prazo não tenho perspectiva de melhora. 
O outro motivo que tenho é que estou cursando o quinto semestre do curso de Direito, curso este onde eu possuo uma bolsa integral pelo PROUNI e é o passaporte da minha família para uma vida melhor. Continuar com essa gestação significa também interromper por prazo indeterminado a conclusão desse sonho.
Não sou uma mulher irresponsável, estava trocando de uso de um contraceptivo por outro. Como não possuo convênio médico, todo procedimento é feito pelo SUS, onde todo e qualquer procedimento é moroso. Moro na cidade de São Paulo e, pra ser sincera, eu poderia ter ido até a Praça da Sé com 700 reais e comprar o tal do “Cytotec” e ter tomado na minha casa e acabado com tudo isso. 
Diante dessa possibilidade pesquisei o funcionamento e as consequências deste ato. Me entenda, eu nunca estive nessa posição e os relatos que vi foram mais que suficientes para descartar essa possibilidade. O medo do procedimento não funcionar e acarretar má-formação ou o remédio causar uma hemorragia causando a minha morte, e ser levada para um hospital e chegando lá ser levada para delegacia. Não quero ser presa e muito menos morrer. Não parece ser justo comigo. Não estou grávida de 4 ou 5 meses, estou grávida de dias apenas.

Meu comentário: Toda força e apoio a Rebeca. Que mulher de coragem! Dar a cara no meio de um clima tão reacionário como o que estamos vivendo... Ela é a primeira mulher a procurar proteção judicial para realizar um aborto voluntário.
Ministra Rosa Weber, seja uma mulher de coragem você também: permita que Rebeca interrompa essa gravidez de menos de duas semanas e possa continuar vivendo, estudando, trabalhando, dando amor aos dois filhos que ela cuida sozinha. Chega de criminalizar o corpo das mulheres! #PelaVidaDeRebeca

UPDATE: A ministra negou o pedido de Rebeca. Mostrou que não tem coragem. Aliás, faltou tanta coragem que sequer divulgou a íntegra da decisão. 

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

"MULHER PEDE PARA SER ESTUPRADA" SOB A LÓGICA DO CAPITALISMO

Uma leitora querida chamada Ice Princess me enviou este email:

Adoro seu blog e devo dizer que você me inspira muito.Você é uma das feministas que eu mais admiro e uma das pessoas mais fortes que já vi. Eu não sei se no seu lugar seria tão forte para aguentar tantas ameaças de gente tão má. Mas é Deus que sempre nos dá força. Por isso peço que Ele te abençoe e te ajude nessa situação difícil (eu sei que você é ateia). Parabéns. Continue sempre com o bom trabalho. Continue sempre a nos inspirar mais.
Pois bem, quando li um post antigo seu -- Como a lógica do friendzone iria funcionar sob a ótica do mercado de trabalho --, ri muito, achei genial e tive essa ideia inspirada nela:

Como a lógica do "mulher pede para ser estuprada" iria funcionar sob a lógica do capitalismo
Um homem entra armado em uma loja de doces e grita:
- PARADOS TODOS VOCÊS! ISSO É UM ASSALTO! SE DEREM UM PIO EU ATIRO!
Todos ficam com medo e não dizem nada.
Desesperado, o homem corre até uma fonte de chocolate e bebe com a mão todo o chocolate dela. Depois pega todos os doces e barras de chocolate das prateleiras e come tudo, igual a um animal. Não satisfeito, abre sua mochila e a enche de doces.
Um funcionário da loja com medo o observa de longe.
- EI, VOCÊ AÍ! VEM CÁ! -- grita o criminoso.
O funcionário vai correndo até ele.
O homem lhe dá a chave do seu carro.
- Quero que você encha o meu carro com todos os doces da loja. Não deixe nada. Coloque tudo.
- O quê? Mas você não pode fazer isso!
- Posso e farei.
- Não. Não pode não! Roubo é crime!
- Foda-se.
- Mas você não pode fazer isso! Se roubar tudo, nós ficaremos no prejuízo!
O assaltante dá risada da cara dele.
- HAHAHA! Mas quem pediu por isso foram vocês mesmos!
- Pedimos? Como assim?
- Vocês totalmente estavam pedindo para a loja ser assaltada.
O funcionário ficou irritado:
- VOCÊ É LOUCO?! NÓS NUNCA PEDIMOS PARA VOCÊ ASSALTAR A NOSSA LOJA!
- Não pediram? NÃO PEDIRAM? Você está de sacanagem comigo?
- Do que você está falando, seu varrido?
O homem desabafa com muita revolta:
- Eu estou desempregado há quatro meses, passando fome. Essa loja fica perto da minha casa, todo dia vocês botam uma enorme fonte de chocolate aqui na vitrine para me provocar, colocam anúncios por toda a parte, fazem pesquisas de mercado na rua, criam produtos cada vez mais atraentes, fazem comerciais em que o chocolate é sempre derramado em câmera lenta, usam pessoas fantasiadas de bichos ou então mulheres bonitas para vender seus produtos! E tudo isso vocês fazem para me provocar! Me torturar! Eu, um pobre coitado passando fome, com meu estômago roncando e vocês botam uma tremenda fonte de chocolate gigante na vitrine? Querem me matar do coração?
O funcionário fica pasmo.
- Senhor,o nome disso é marketing.
- MARKETING O CARALHO! VOCÊS ESTÃO ME PROVOCANDO!
- Nós não estamos lhe provocando, senhor, o marketing é somente para vender nossos produtos!
- NÃO! NÃO! VOCÊS FAZEM ESSAS COISAS PARA ME PROVOCAR!
- Não é para provocar o senhor, é para atrair novos clientes.
- PORRA NENHUMA! É PARA ME PROVOCAR!
- Não. O marketing que fazemos é dirigido a todo mundo, não somente ao senhor.
- NÃO! TODO ESSE MARKETING É DIRIGIDO A MIM!
- Por que o senhor tem tanta certeza disso?
- Ora! Mas que pergunta ridícula! Dois meses atrás vocês lançaram meu sabor de chocolate favorito: pistache! No mês passado foi paçoca, meu outro sabor favorito! E nesse mês vocês criaram um doce que é exatamente igual à receita de um doce que minha mãe costumava fazer para mim! E na semana passada, enquanto eu passava aqui, você sorriu para mim e perguntou se eu queria experimentar o novo doce lançado, que era o mesmo que minha mãe costumava fazer para mim quando eu era menino! Como eu podia resistir a tudo isso?!
O funcionário estreita os olhos e cruza os braços:
- Senhor, mas isso não significa que estávamos tentando o senhor. Nosso marketing não é dirigido a ninguém em específico, e sim ao público em geral.
- ISSO É RIDÍCULO! TUDO ISSO QUE VOCÊS FAZIAM ERAM MENSAGENS SUBLIMINARES PARA ME TENTAR!
- Não. Não eram não.
- ERAM SIM!
- O que nós fazemos ou deixamos de fazer nada tem a ver com o senhor nem com ninguém. Só tem a ver com nós mesmos.
- CALA A BOCA! E AGORA FAZ O QUE EU MANDEI! ENCHE O CARRO DE DOCES! -- aponta para ele a arma.
- Você não tem o direito de roubar!
- Ah por favor, vocês próprios se colocaram em risco.
- Como assim?
- Abriram essa loja em um bairro onde o índice de crime e roubo é muito alto, não instalaram câmeras de segurança, não colocaram segurança armado na loja e vocês nem têm seguro contra roubo. Vocês são um bando de bananas.
- Mas isso é porque a nossa loja é muito nova! Nós acabamos de abri-la! Nós não temos como nos defender de assaltos ainda!
- Não é problema meu. Entenda isso como uma punição por vocês não se darem o valor.
- A nossa loja não é ação na bolsa de valores para se dar mais ou menos valor, seu mentecapto.
- Que seja. Se querem evitar um assalto, parem de ficar mostrando e insinuando seus produtos para todo mundo!
- E por que então você simplesmente não paga pelos produtos?
- Hahaha! Por que eu pagaria se eu simplesmente posso tomar à força de vocês?
- Porque isso é violência e é errado!
- Mas eu não tenho culpa! Sou apenas um pobre homem seguindo meus instintos! Eu tenho fome, logo preciso comer!
- E porque você não trabalha para ganhar o seu dinheiro? Aí poderia comprar quantos doces quisesse!
- Ah... mas isso seria tão mais difícil! Melhor roubar mesmo! Mais fácil!
- Mas você é um completo idiota mesmo. Além de louco. Acha que razões tão fúteis justificam um crime? Se todos no mundo pensassem igual a você, ninguém trabalhava e todo mundo só roubava!
- Ah, mas eu posso, tenho direito.
- E quem te deu esse direito?
- Eu mesmo.
- Ah é? Mas seu direito termina quando começa o MEU!
- Por que você tá tão nervosinho? Foi você quem pediu por tudo isso ao se insinuar e ficar vulnerável!
O funcionário lhe dá um tapa forte na cara.
- Você pensa de uma forma completamente imatura, inconsequente, distorcida e egoísta. Primeiro: acontece que simplesmente "poder" fazer alguma coisa errada não é justificativa para fazê-lo. Nada justifica o mal e o errado. E segundo: NÃO é o mundo quem deve te policiar para que você não faça o que é errado e sim VOCÊ MESMO que deveria SE policiar para fazer o que é certo e não fazer o que é errado. A moralidade reside em nós mesmos, não no exterior. Se todo mundo fizesse o que quer o tempo todo, ninguém podia fazer nada. Se todos no planeta não tivessem essa consciência, de nada adiantariam as leis. Elas seriam só papel. Terceiro: QUALQUER UM pode resistir a fazer o que é errado porque todos nós podemos usar a razão, ao contrário dos animais, que só podem usar seus instintos. Se você não consegue se controlar, talvez seu lugar seja numa jaula com direito á plaquinha: "Perigo! Não tente esse animal! Ele não consegue controlar os próprios instintos"! Mas você nunca pensou nisso tudo, né seu idiota?
O homem lhe olha sem jeito, larga a arma e dá o fora.