sábado, 20 de novembro de 1999

QUANDO O ASSUNTO É CHACINA, A GENTE VALE QUANTO GANHA

Diagrama da Veja: a cobertura da mídia não é igual para crimes envolvendo ricos e pobres

Chacina no cinema? Horror no shopping? Carnaval da mídia? Tudo isso e mais um pouco neste acontecimento lamentável do estudante de medicina que atirou a esmo durante uma sessão de cinema em São Paulo. Ainda vamos ler ou ouvir muitos detalhes sórdidos. Dos noticiários de TV a gente espera qualquer coisa, que todo Jornal Nacional tem um pouco de Cidade Alerta, mas de repente toda a mídia escrita dita "séria" assume seu lado Notícias Populares ou O Dia. Páginas e mais páginas narrando a mesma coisa, chafurdando-se em sangue. Os jornais nos oferecem cadernos especiais, deslocam vários reportéres, não economizam nas fotos coloridas, derramam-se em análises.
Na mesma semana, na mesma cidade, só que um pouco mais longe do ar-condicionado, duas crianças foram baleadas na cabeça em frente à uma padaria da periferia. Depois, mais mortos num casamento evangélico. A diferença na cobertura é gritante. Poucas linhas sobre os pobres; mandam um estagiário qualquer para a reportagem e não se fala mais nisso. Afinal, chacinas em subúrbios são corriqueiras, acontecem (literalmente) diariamente e faz tempo que os jornais pararam de gastar tinta publicando nome de vítima que ninguém vai ler.
Porém, no caso do atentado no shopping, entrevistam até amigo de vítima. Sinceramente, há algo mais inútil do que perguntar pra alguém "o que você achava do falecido"? Sendo amigo, então, é saliva à toa. O adjetivo mais modesto usado para descrever a fotógrafa assassinada foi "brilhante". Precisamos mesmo saber algo sobre ela para sentirmos pena e indignação? Quando criança pobre recebe tiro, mal entrevistam a mãe.
Outras tantas páginas estão sendo gastas para descrever o sentimento dos freqüentadores de shopping. Uma senhora diz que assim não dá, que, francamente, ela ficará preocupada em deixar as filhas adolescentes no cinema enquanto vai fazer compras, que estão querendo estragar suas poucas opções de lazer. Ao balbuciar essas sábias palavras, nem ela nem o jornalista têm a mínima idéia sobre o apartheid social em que vivemos.
A mídia dá todo esse destaque à matança do shopping não só porque público que folheia jornal é de classe média, mas também porque jornalista - quem cria e redige - também pertence a esse estrato. Esse negócio que repórter corre atrás da notícia, esteja ela onde for, é pura balela. Deve ser incômodo empoeirar a roupa de griffe em uma visita às ruas esburacadas da favela. Cobrir notícia em centro de compras está mais dentro de seu habitat natural.
Por um lado, é bastante normal que nos interessemos mais pelos nossos semelhantes. Se ocorre algo no nosso prédio, ficamos mais atentos do que se fosse em outra rua. Gostamos daquela sensação mórbida de que "poderia ter acontecido conosco". E também nos identificamos, pelo menos esteticamente, com as vítimas e com o assassino que, na pior das hipóteses, assiste aos mesmos filmes que a gente.
Mas não precisamos exagerar. Lembro, de memória, de outros desastres envolvendo a classe média e da cobertura exacerbada da imprensa: as viúvas da TAM, a explosão do shopping de Osasco (shopping é shopping, nem que seja em cidade-satélite), a falência da Encol, a queda do Palace 2 (foto)... Na mesma época em que caiu o edifício do Sérgio Naya (quem?) havia acabado de ocorrer um desabamento de barracos, com muitos mais mortos. Mas quem pediu donativos foram os sem-teto da classe média, aqueles que ganhavam mais em uma semana do que os favelados em um ano. É difícil esquecer o apelo de uma das vítimas do Palace: "precisamos urgentemente de ticket-combustível".
No fundo, falamos do atentado no shopping com uma pontinha de orgulho, como se tivéssemos enfim importado o modelo americano. E o que é bom para os EUA é bom para o Brasil, certo? A classe média continua fazendo o que sempre fez: olhando para o próprio umbigo. O que eu realmente queria saber é quem decretou que a vida de um economista vale mais do que a de um faxineiro. A mídia e quem mais?

sexta-feira, 5 de novembro de 1999

CRÍTICA: SEXTO SENTIDO / Enfim, um terror que dá medo no cinema

O menininho que não quer ver dead people

"O Sexto Sentido" faz todo o sentido. Este suspense psicológico, em cartaz em SC, pelo jeito vai continuar nas salas por um bom tempo. Até agora, não conheci uma só alma que não tenha gostado do filme, se assustado com ele e adorado o final, a grande vedete. Pode ler isso sem susto que não tenho a mínima intenção de ser uma estraga-prazeres e entregar o desfecho.

A história envolve dois personagens principais. Um, o psicólogo infantil que, após levar um tiro de um ex-paciente, tenta recomeçar sua vida. Seu casamento está em frangalhos, já que a mulher não fala com ele. E seu arsenal de pacientes fica reduzido a um menininho que lhe lembra muito aquele que atirou nele.

Este garoto de uns oito anos tem uma peculiaridade: ele vê pessoas mortas. Nós, os espectadores, não vemos o que ele vê até mais ou menos metade do filme, o que ajuda a criar um clima. Como todo mundo está cansado de saber, o que não enxergamos é bem mais aterrorizante do que o que nos é mostrado em technicolor. Tal qual o menino, não entendemos o que os fantasmas querem com ele. Serão perigosos, podem machucá-lo, ou simplesmente querem se comunicar com ele?

É então que o diretor e roteirista Shyamalan exibe toda a sua perspicácia. Antes dos plufts aparecerem, ele usa um recurso hitchcockiano. Quem assistiu a "Os Pássaros" notou que, anteriormente ao ataque das aves, o mestre põe na tela a sua cena mais gráfica, uma vítima sem os olhos, para que saibamos que os passarinhos não estão pra brincadeira. Em "O Sexto Sentido" é parecido. Shyamalan tranca um garoto em pânico com um fantasma. Ouvimos seus gritos e depois checamos as marcas. Quando os mortos realmente começam a pipocar, ficamos com medo porque vimos como eles podem ser perigosos.

Meu fantasma favorito é o do pré-adolescente que entra no quarto do nosso pequeno herói e diz, "Vem cá que vou te mostrar onde papai guarda o revólver", e, ao se virar, exibe um belo rombo na cabeça. Outros cadáveres não são tão bem sucedidos e parecem mais saídos de filmes trash. É o caso da fantasma do trânsito e dos três enforcados na escola. Pode ser porque as cenas estão iluminadas demais, e aparição combina mais, até rima, com escuridão.

Sobre o tão aclamado final, tenho uma confissão a fazer. Não pensem que estou me gabando não, mas eu adivinhei o fim. Isso é incrível - eu, que até hoje não entendi como termina "De Olhos Bem Fechados"; eu, para quem meus alunos teens, ó suprema humilhação, tiveram de explicar o desfecho horripilante de "A Bruxa de Blair". O que quero dizer é que se até eu, uma negação para prever conclusões cinematográficas, pude decifrar o remate de "O Sexto Sentido", então talvez ele não seja tão surpreendente assim. Mas é super bom, do tipo que faz com que a gente relembre o suspense e queira vê-lo mais uma vez, só pra conferir.

Bruce Willis está bem no que deve ser seu melhor papel desde "Pulp Fiction", mas quem rouba o filme é o ator-mirim Haley Joel Osment, que certamente será indicado ao Oscar de coadjuvante, e já entra como favorito. Tomara que este menino tenha futuro e não desapareça como os talentos precoces Culkin, Linda Blair, Tatum O'Neal. A lista é infinita e só quem se salva mesmo é Jodie Foster. Primeira coisa que Osment deve fazer para assegurar seu lugar em Hollywood? Mudar de nome. Três nomes dificilmente pegam.

Shyamalan homenageia todos os clássicos certos, como "O Bebê de Rosemary" e "Repulsa ao Sexo", ambos de Polanski; Hitchcock, "O Exorcista", e, obviamente, "O Iluminado". Ganha um doce o primeiro diretor de terror desta década que não diga que sua maior influência seja Kubrick.

Eu não acredito em fantasmas, almas penadas ou duendes, certo? Mas devo confessar que fiquei petrificada durante a exibição do filme. Olhava para a poltrona vazia do lado e por alguns microsegundos da minha fértil imaginação imaginava uns cadáveres sentados. Depois de assistir a "O Sexto Sentido", você também vai ver pessoas mortas por um tempo.