sexta-feira, 30 de junho de 2017

LEI QUER QUE MULHER QUE ENGRAVIDA DE ESTUPRO VEJA IMAGENS DE FETOS ANTES DE ABORTAR

Visualize a cena, que é bastante comum: uma mulher é estuprada. Ela engravida. Ela quer abortar. 
Pode substituir "uma mulher" por "uma menina". Isso também -- meninas de 10, 12 anos que são estupradas e engravidam, quase sempre do pai ou padrasto -- acontece direto. Nesses casos, há ainda outro agravante para ter que interromper a gravidez: o corpo da menina não está formado. Prosseguir com a gestação pode colocar a vida da vítima em risco. 
Nos casos de gravidez decorrente de estupro (o que ocorre com frequência: a estatística é que 7% das mulheres estupradas acabam engravidando), o aborto é permitido no Brasil. Aliás, é numas. O Código Penal de 1940 não diz que aborto em caso de estupro "não é crime". Diz apenas que "não se pune", se praticado por médico. O que mais vemos é pedirem alvará para que a mulher ou menina estuprada possa realizar um aborto. E enquanto isso, a gestação vai avançando...
Ou seja, na teoria a mulher ou menina que foi estuprada e engravidou pode abortar, sem sequer precisar fazer boletim de ocorrência. Na prática, a realidade é completamente diferente. Apenas alguns poucos hospitais em todo o Brasil realizam o aborto legal. O que mais se vê é médico alegando que não quer realizar o procedimento porque a sua consciência não permite, mulher sendo tratada como bandida, alvarás que só chegam meses depois. 
Pra resumir: 67,4% das brasileiras que engravidam por conta de um estupro não conseguem abortar. Quer um dado ainda mais chocante e desumano? 80% das meninas até 12 anos que engravidaram não fizeram aborto legal. Apenas 5,6% conseguiram fazer. 
Já deu pra perceber o circo de horrores que é tentar fazer um aborto legal no Brasil. E isso que, cada vez mais, abortos podem ser realizados através de medicamentos. Nem sempre é preciso uma cirurgia. Ainda assim, em nome da religião, dificulta-se ao máximo que mulheres e meninas possam interromper sua gestação.
Mas vamos ampliar esse cenário de horror. Visualize que a mulher ou menina que engravidou após ser estuprada consiga encontrar a tempo um médico e um hospital que faça um aborto (o que é seu direito). Antes de poder abortar, a vítima de estupro deve ver imagens do feto mês a mês. Está visualizando? A menina ou mulher, traumatizada pelo estupro, é forçada a ver várias imagens de fetos mostradas por gente que já a encara não como vítima, mas como criminosa. 
É ou não é uma sessão de tortura? 
Pois é isso o que prevê o projeto de lei 1465/2013, aprovado esta semana na Câmara Legislativa do Distrito Federal. O projeto, de autoria da deputada Celina Leão (PPS), foi encaminhado para o governador Rodrigo Rollemberg (PSB), que tem 21 dias para vetá-lo ou sancioná-lo.
O projeto prevê também mostrar alternativas de adoção à mulher estuprada e passar informações sobre o risco de abortar. Não é preciso ser muito inteligente para deduzir que o propósito real é um só: fazer com que a vítima desista do aborto. Esse tipo de procedimento já faz parte da rotina de vários estados dos EUA, onde o aborto é legal há mais de quatro décadas. Como lá os conservadores não conseguem voltar a proibir o aborto, eles criam cada vez mais dificuldades para as mulheres que desejam abortar.
A nota do Juntos! explica melhor o que está acontecendo:

Desde 2014, a CLDF [Câmara Legislativa] é conhecida e marcada por uma das atuações mais conservadoras do país – como a autoria do Projeto de lei da Escola sem Partido e recentemente a derrubada do Projeto de Lei que criminalizava a homofobia no Distrito Federal --, ao passo que é recorrentemente foco de diversas manchetes nos jornais por inúmeros escândalos de corrupção. Essa é mais uma das ações que mostram como os políticos que hoje ocupam o cargo de deputados distritais nessa câmara possuem claras intensões de retroceder nos direitos de nossas mulheres, juventude, LGBTs e trabalhadores.
A crueldade desse projeto se mostra em mais uma vez a atuação do legislativo ir no sentido de culpabilizar mulheres vítimas de estupro, as submetendo a situações de violência psicológica para duvidarem se devem ou não exercer um direito que já lhes é assegurado por lei. A luta das mulheres no último período nas chamadas “primaveras feministas” ia também no sentido de fortalecer a luta por mais direitos. 
Hoje no Brasil, cerca de 50 mil mulheres morrem pela realização de abortos clandestinos. O movimento feminista tem se mobilizado no sentido de avançarmos no direito ao próprio corpo das mulheres. esse projeto vai na contramão das recentes lutas travadas pelas mulheres no Brasil. Se as mulheres derrubaram Cunha, agora é preciso unificar forças e exigir que o governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, vete esse projeto, e assegure que o pouco que já temos garantido em lei pelo direito aos nossos próprios corpos seja assegurado.
#VetaRollemberg #ACulpaNãoÉDaVítima #NaoAoPL1465/2013

Será que mostrarão esta imagem?
Saco gestacional, 6 semanas de
gravidez. Não é possível ver um
embrião nesse estágio
Pra quem acha que nós feministas estamos fazendo alarde, que a lei só vale para o Distrito Federal, não sejam tolinhos. O Congresso mais reacionário e corrupto da nossa história tem dezenas de projetos para não apenas garantir que o aborto jamais seja legalizado e descriminalizado no Brasil, como também para proibir o aborto definitivamente em casos de estupro, risco de vida pra gestante, e fetos anencéfalos. É a agenda deles. Isso e retirar todos os direitos das trabalhadoras e trabalhadores, como direitos trabalhistas e aposentadoria. 
E eles está fazendo a festa. Enquanto a gente faz greve geral e grita Fora Temer (e temos mais é que fazer greve e gritar mesmo), eles vão passando as aberrações que quiserem. 

UPDATE em 4/7/17: Felizmente, hoje o governador Rodrigo Rollemberg vetou o projeto que havia sido aprovado na Câmara Legislativa do DF. No Twitter, o governador afirmou que a aprovação seria uma barbárie: "Algo macabro para qualquer mulher que já foi vítima de um crime". Ele disse ainda: "Respeito os direitos das mulheres, sou solidário às suas lutas e ao combate a qualquer tipo de violência, inclusive aquela que vem em forma da lei. Vetarei integralmente o projeto de lei que obriga profissionais da saúde a mostrar imagens do feto às gestantes vítimas de estupro". 

quarta-feira, 28 de junho de 2017

MAISA E DUDU CAMARGO: QUANDO A BUSCA POR AUDIÊNCIA PASSA DOS LIMITES

Desde a semana passada bastante gente tem me pedido pra escrever sobre a Maisa, jovem de 15 anos que desde criança aparece nos programas do Silvio Santos. Só que não estou acompanhando nada sobre ela.
Ontem Vanessa Cordeiro veio me contar mais um absurdo contra Maisa e eu pedi que ela escrevesse um guest post. E ela escreveu (obrigada, querida!). Vanessa é estudante de Análise e Desenvolvimento de Sistemas em São José dos Campos, SP. 

Há mais de uma semana, o Twitter vem comentando assiduamente o momento constrangedor que a estrela Maisa Silva (15 aninhos apenas) viveu durante uma edição do Programa Silvio Santos, exibido aos domingos pela SBT e comandado pelo dono da emissora, Silvio Santos.
Na edição que foi vinculada no dia 18 de junho, Maisa participou do quadro “Jogos das Três Pistas”, game que disputava contra o apresentador de telejornal Dudu Camargo.
Pra quem não está familiarizado com a peça: Dudu Camargo comanda todas as manhãs um jornal do SBT, mesmo tendo apenas 18 anos e NENHUMA formação jornalistica no currículo.
Durante o game, Silvio Santos decidiu perturbar Maisa insistindo na ideia de que a garota deveria namorar Dudu Camargo, já que, de acordo com Silvio, Dudu se trata de um rapaz “inteligente e falante”.
Mesmo vendo o desconforto da colega, Dudu decidiu dar continuidade às “brincadeiras”, fazendo piadas e “se jogando” para ela. Já Maisa (visivelmente constrangida) rebateu todas as insinuações de Silvio e as provocações de Dudu de forma firme e bastante clara, não dando abertura para qualquer interferência dos dois homens ali presentes na sua vida.
As respostas da garota e todo os momentos de seu desconforto podem ser lidos nessa matéria do Huffpost, que também acompanha o vídeo completo do game disponibilizado pelo próprio SBT.
Imediatamente após o programa, uma chuva de comentários sobre o posicionamento da Maisa em relação ao assédio moral (sim, assédio moral) circulou pelas redes sociais, sendo que em boa parte dos comentários as pessoas se mostraram favoráveis à forma como ela tratou toda a situação.
Assédio moral é a exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções.
É claro que no meio de tantos comentários de apoio, infelizmente Maisa (lembre-se, 15 anos) também encontrou quem a tachasse de arrogante por supostamente não aceitar ser vitima de uma “brincadeira” de dois homens, maiores de idade, num programa de auditório e transmitido em rede aberta… É, pois é…
Enfim… A repercussão foi tamanha que Maisa resolveu se pronunciar sobre o caso nas suas redes sociais (Instagram e Facebook), e deu um verdadeiro SHOW ao reafirmar seu posicionamento e ainda falar sobre a dificuldade da mulher de se posicionar contra essas situações, sem ser tachada de grossa ou a errada da história:

"Tô começando esse texto dizendo que eu não estou fazendo isso pq estou me sentindo pressionada, ou como se eu devesse explicações, e etc.
Estou fazendo pelas pessoas que têm carinho comigo e se preocupam com meu bem estar.
Minha apresentação no Programa Silvio Santos, do último domingo (18), está sendo motivo de questionamento e ataques nas redes sociais.
Isso é comum, pois vivemos em uma sociedade onde a mulher muitas vezes não tem voz e precisa lutar com situações constrangedoras e brincadeirinhas todos os dias.
Quando uma menina de 15 anos não aceita qualquer brincadeira ou comentário, e se posiciona, causa espanto. E muita gente se sente no lugar de tentar repreender tal atitude como se me conhecessem, ou se fossem meus pais.
Infelizmente as pessoas não conhecem os bastidores. Muito menos minha relação com o Silvio, e com outros colegas de trabalho.
Com certeza, uma parcela dos telespectadores gostariam que eu aceitasse tudo o que aconteceu no programa, como dançar com um rapaz mais velho (mesmo eu NÃO querendo), ou beijá-lo.
Estamos aqui para trazer reflexão: até quando as mulheres vão viver precisando aceitar tudo? Não é não!
Recebi muitas mensagens de apoio, pelo posicionamento e por não aceitar tudo em nome do entretenimento. Eu sou uma adolescente de 15 anos como qualquer outra, me posiciono com as causas necessárias, falo o que penso, sempre mantenho minha educação, tenho o direito de liberdade de expressão, de gostar ou não gostar, e nunca precisei ficar criticando as pessoas nas redes sociais para me sentir melhor.
Agradeço o apoio e compreensão do nosso público, espero que vcs tenham uma ótima noite, muita paz, respeito e menos ódio né?
Eu faço o que amo, pras pessoas que eu amo! Não vou mudar o meu jeito para agradar a ninguém… espero que vocês sempre sejam quem vocês são
Um beijo! Maisa"

Tudo poderia ter terminado ai, com essa resposta MAGNÍFICA da Maisa sobre o assunto, e com Dudu e Silvio cientes de que as atitudes dos dois foram completamente ridículas… mas não.
Toda essa situação que já era de um total absurdo, infelizmente, conseguiu ficar PIOR!
Dudu Camargo, claramente querendo se aproveitar de toda a repercussão do caso (ele confirmou isso durante outra entrevista que fez, mas na Rádio Jovem Pan), decidiu dar continuidade indo até o programa da pessoa que justamente é conhecida por se aproveitar de casos “bombásticos”, com muito sensacionalismo: Sonia Abrão.
No programa de Sonia Abrão que foi ao ar dia 22 de junho (quatro dias após o ocorrido) pela Rede TV, Dudu afirmou que durante o game de Silvio, depois da Maisa comentar sobre a voz dele, Dudu convidou a menina para “dormir uma noite com ele”. A cena, de acordo com ele, foi cortada do programa de Silvio.
A descrição da entrevista do moço a Sonia Abrão pode ser lida neste post do Huffpost e o vídeo dele dizendo que chamou Maisa para dormir com ele, pode ser visto nesse post da própria Maisa no Twitter.
Se não bastava ter assediado moralmente uma adolescente em um programa de TV, Dudu confirmou ainda que a assediou sexualmente!
O assédio sexual pode ser definido como avanços de caráter sexual, não aceitáveis e não requeridos, favores sexuais ou contatos verbais ou físicos que criam uma atmosfera ofensiva e hostil. Pode também ser visto como uma forma de violência contra mulheres ou homens e também como tratamento discriminatório.
O SBT  —  sabendo disso  —  ainda editou e excluiu a cena, se omitindo em tomar providencias sobre os fatos.
E pior: na tarde de ontem, em uma matéria publicada pelo jornal Estadão, o jornalista Gabriel Perline afirmou que durante a gravação do “Programa Silvio Santos” que irá ao ar no próximo domingo (dia 02/07), Silvio Santos sabendo de toda repercussão do caso e querendo se aproveitar disso, promoveu um novo encontro entre Maisa e Dudu.
Neste novo encontro, de acordo com o jornalista, Silvio voltou a se intrometer e fez comentários que desagradaram a menina. Ela começou a chorar no palco, e Silvio  — vendo a cena  —  continuou com o discurso.
Maisa, segundo a fonte do jornalista, saiu do palco chorando e não voltou mais à gravação.
Essa postura do Silvio só comprovou e deixou claro o quanto o SBT não se importou com o assédio moral e sexual que a garota sofreu, e ainda tentou realizar um encontro entre o rapaz que a assediou e utilizou a imagem dela pra se promover, com o único intuito de garantir audiência e comentários sobre o programa na internet.
Utilizar-se de um ocorrido desagradável e criminoso (assédio é crime) contra uma CRIANÇA (de novo, Maisa tem 15 anos) para se promover e promover um programa é no minimo asqueroso.
Eu espero  —  sinceramente  —  que a família da garota não aceite isso e tome providencias LEGAIS sobre todo o ocorrido!
Além da sororidade que tenho por ela (mulheres, uni-vos!), ainda tenho um carinho especial por tê-la acompanho desde pequena. Ela nasceu na mesma cidade que eu e por isso sempre prestei atenção nela.
Vê-la sofrendo esse tipo de assédio, ser constrangida e utilizada pra promoção, e ainda não vendo nenhuma ação responsável de um adulto para protegê-la, é angustiante e doloroso.
Maisa há muito tempo vem se mostrado uma garota de personalidade forte e que apesar de nova, com opiniões até então espontâneas, seguras e consistentes.
Estar nesse tipo de situação e ambiente, sem que pessoas ao seu redor (e não só pessoas na internet) a apoiem, pode prejudicar o desenvolvimento dela como pessoa, como cidadã, como MULHER.
Espero que medidas sejam tomadas e os responsáveis por causar esse estresse a ela sejam responsabilizados e punidos.
Nem uma menina maravilhosa como essa e nem NENHUMA mulher merece passar por isso!
#EstamosComVoceMaisa

UPDATE em 6/7/17: Continua muito feio o negócio. Dudu parece que vai ganhar um programa. Tudo parece que pode ter sido armado (sem consultar Maísa) para disfarçar que Dudu é gay. Misoginia para encobrir homossexualidade, a gente já viu isso. A produtora que ousou confortar Maísa foi demitida. Tem um bom resumo aqui:

terça-feira, 27 de junho de 2017

O SONHO DA INTERNET ACABOU?

Leia o texto do Jaime sobre a charge que fez

Quando a internet começou, eu pensei que ela iria ser uma ferramenta fantástica pra mudar o mundo. Pensei que todos, ou quase todos, se dariam as mãos pra cantar Kumbaya juntos, sabe?
Não deu certo, infelizmente. Óbvio que não dá pra viver sem a net e que ela é ótima pro ativismo. A gente se mobiliza por aqui também. E um monte de gente que não tinha voz antes agora tem. 
Resumo da internet: homens gritando sem distinção
Mas ela também é um palco para o pior do ser humano. O anonimato permite que homens cheios de ódio ataquem e falem coisas que jamais falariam em público. 
Não creio que os comentaristas de portais de notícias, com toda sua ignorância e preconceito, representem a população brasileira, por exemplo. São grupos organizados que se reúnem para espalhar ódio. 
Fica a reflexão: pra quê tanta raiva?
Na internet você pode ser o que quiser. É estranho que tanta gente escolhe ser estúpida

segunda-feira, 26 de junho de 2017

GUEST POST: EXPERIÊNCIA COM UM ALUNO MISÓGINO FÃ DE BOLSONARO

Recebi este email da F. 

Olá, Lola. Tudo bem? Gostaria de compartilhar contigo uma das experiências mais marcantes que passei como educadora de Ensino Médio. Aconteceu esse ano, e ainda me sinto um pouco incapaz e abalada com a situação. O título é autoexplicativo, então vamos aos fatos...
Sou professora de Literatura de algumas tradicionais escolas. Escolas de excelente ensino e das quais me orgulho muito de fazer parte.
Por mais que pareça masoquismo para alguns, eu amo a minha profissão, gosto de lidar com adolescentes e já estou nessa rotina há quase uma década. Nunca pensei em ser outra coisa na vida, sempre fui apaixonada por Literatura e esse me pareceu ser o caminho natural se percorrer. A Literatura, por sinal, salvou a minha vida em tantos aspectos que não poderia enumerar todos!
Não tenho filhos (nem pretendo ter) então acabo me envolvendo muito nas vidas dos meus alunos, pessoas que aprendi a respeitar. Eu tive uma adolescência pobre e de periferia, então tinha muitas ressalvas quanto a meninos ricos tais como esses que hoje eu ajudo a educar. A verdade é que esse pessoal tem problemas que, na minha cabeça juvenil, gente rica nunca deveria ter. Posso citar abandono, abuso físico e sexual, assédio moral, entre várias situações que pensamos estar longe de famílias abastadas.
A história que vou contar é sobre um desses meninos que passou em minha vida. O caso é que eu nunca tive problemas com estudantes, eu sempre fui muito próxima deles (mesmo ministrando uma disciplina que não é muito atrativa a essa faixa etária) e sempre desenvolvi atividades dinâmicas, divertidas e multidisciplinares, pois sabemos que não é fácil "enfiar" Barroco ou Parnasianismo pelas goelas deles. Vou chamar esse moço de Homero.
Homero chegou até nós com um histórico de expulsão de outras duas escolas da capital. Ouvimos de colegas que trabalhavam nessas outras instituições que iríamos aguentar uma "barra", que esse garoto era problemático e que era extremamente dissimulado. Eu ouvia àquilo tudo cabisbaixa e pensando em como meus colegas poderiam formular tais considerações acerca de um menino de (na época) 15 anos. Até então, eu não sabia o porquê dele ter passado por isso, e como gosto de desafios, logo quis "adotar" o caso dele para mim.
Quando entrei para dar aula, percebi que Homero era muito quieto e que estava sempre com um livro nas mãos. Ele lia compulsivamente, mas uma literatura muito específica: livros sobre economia, estratégias de convencimento, estudos de especialistas que "venceram" na vida etc. Eu sempre me aproximei dele para conversar e para tentar entendê-lo, mas ele pouco me dava atenção (tanto a mim como a seus colegas). Aos poucos, no entanto, ele foi "mostrando as garras".
A primeira vez em que vi o machismo de Homero foi num debate de interpretação de texto em que coloquei para eles a música "Pretty hurts", da Beyoncé, em comparação com um poema de Cecília Meireles. Homero levantou a mão e pediu para falar. Deixei que falasse e me senti enjoada. Resumidamente, o rapaz afirmou que "esse papo de padrão de beleza" era coisa de "feminista gorda de perna peluda". 
Eu me senti tão chocada que não conseguia nem sequer formular uma frase coerente. Em tempos de "escola sem partido", tento me policiar ao máximo para que o que eu diga não pareça imposição de ideologia, mas não consegui colocar panos quentes na situação. Me recompus e expliquei a ele, com dados e alguns exemplos, que infelizmente mulheres morriam todos os dias em busca de um padrão que dificilmente é alcançado. Homero riu, fez uma negativa e abaixou a cabeça. As colegas dele ficaram visivelmente constrangidas, sem contar a maioria dos meninos que pude observar.
Posteriormente, descobri com o professor de História que Homero contestou uma questão da prova de sua disciplina porque não concordava com os dados da escravidão no Brasil que se encontravam ali. Segundo ele, o trabalho escravo foi necessário e fazia falta. Novamente fiquei bestificada. O professor perguntou de onde ele havia tirado isso. Segundo ele, suas inspirações são pensadores "de fora do MEC": Olavo de Carvalho, Danilo Gentili, Kim Kataguiri e, claro, Bolsonaro e cia. Confesso que não fiquei surpresa, infelizmente.
Em situações posteriores, sempre que tinha oportunidade, Homero disferia alguma piadinha, algum comentário misógino (devidamente rebatido por mim sem que ele se propusesse a continuar a discussão), até que chegou ao seu ápice. Vou contar como foi.
Um dos trabalhos que fizemos foi o julgamento de Capitu (de Dom Casmurro, de Machado de Assis). A turma foi dividida entre o grupo dos juízes, acusação, defesa e imprensa sensacionalista. Homero ficou no grupo dos juízes. Nos processos de desenvolvimento dos argumentos, descobri que ele mandou uma colega de grupo calar a boca porque ela era uma “mulherzinha” e não deveria falar mais alto que os homens do recinto. Quase tive uma síncope de tanta raiva.
Chamei os dois separadamente para conversar, tentei ouvir a versão de cada um e ele negou que a situação houvesse acontecido daquela forma. Disse ter sido mal interpretado e jurou que pediria desculpas. De fato pediu mesmo, mas foi uma cena deplorável. Estava claro que ele estava fingindo arrependimento, mas optei por manter a postura de adulta e dar uma chance a ele. Podia ser o jeito de falar, algo assim. Até que ele piorou nas suas posturas.
Homero usou o celular de um amigo para humilhar, ofender e xingar uma de nossas estudantes. E a mim. Essa menina negra linda, a quem chamarei de Juliana, é uma das melhores alunas do colégio. Ela recebeu ameaças de surra e comentários terríveis acerca de sua cor, sua religião e sua naturalidade (a menina é baiana). Em uma das mensagens, Homero (que, óbvio, não se assumiu) disse que ela iria apanhar quando saísse da escola. Ah! Claro, e era para ela ME levar consigo, que ele ia "dar umas" na minha cara também.
Juro que quando recebi as mensagens da Juliana, já sabia que tinha sido o Homero. Quando cheguei em casa chorei muito, me senti fracassada... Não com as ameaças, que eu sabia que não se concretizariam, mas com a minha incapacidade de ensinar alguma coisa para esse menino. Não dava para ignorar, a escola procurou a delegacia e um BO foi aberto.
Quando questionado, Homero negou tudo. Seu pai foi chamado à escola, assim como foi em todas as outras situações que relatei. A sua postura? Bem, ele apoia incondicionalmente o seu rebento dizendo que “opinião não é crime” e que se a escola não tinha como provar, não deveria chamá-lo para resolver questões menores.
Homero acabou de completar 16 anos e é um fascista fã do Bolsonaro que sonha em ser político, como já me relatou. No fim, Lola, eu pergunto a você: quem é o grande errado dessa história? É o pai omisso? É a educação que recebe em casa? É a falta de exemplos? Descobri recentemente que a mãe de Homero está com câncer, quase morrendo. O lar é claramente disfuncional... De onde vem tanto ódio desses adolescentes ultraconservadores que estão surgindo AOS MONTES por aí? O painel é assustador, mesmo.
Eu deveria ter comemorado quando ele pediu transferência da escola. Mas não comemorei. A justificativa foi de que ele não tinha amigos (e não tinha mesmo... Ninguém concordava abertamente com aquilo que Homero dizia) e estava com algumas notas baixas. Me senti perdida e um tanto inútil. Já recebi inúmeros pais que me procuram para receber dicas de como lidar com seus filhos adolescentes e de como dialogar com eles. Ironia! Nunca tive filhos, como lhe falei, mas aparentemente tenho respostas que eles não têm. Os filhos deles têm um carinho e um diálogo comigo que não têm com os pais... Já Homero, que tanto precisava de uma luz, entrou e saiu da mesma forma, e eu não pude atingi-lo.
Sei que não podemos mudar o mundo e encaro a minha profissão como um dom. Claro que a minha trajetória em escola particular, com todas as condições estruturais e ganhando bem (para a realidade brasileira), não pode ser considerada um ato de altruísmo perfeito se comparada à trajetória dos colegas guerreiros que estão nas escolas de periferia onde eu mesma estudei um dia. Mas, mesmo assim... Meu “dom” não pôde mudar alguém que precisava MUITO.
Me sinto um pouco desesperançosa. Gostaria muito de ouvir a opinião de minhas/meus colegas de profissão que acompanham seu blog. Já lidaram com um caso “Homero”? Como foi? Como conseguiram superar?
Muito obrigada por ler. Desculpe qualquer erro, mas escrevo um pouco emocionada e tendo a ficar prolixa!