quarta-feira, 29 de novembro de 2023

RACHADINHA DE JANONES NÃO É MENOS PIOR QUE A DOS OUTROS

Anteontem o Metrópoles revelou um áudio em que o deputado federal André Janones (Avante-MG) pedia rachadinha a seus assessores. O áudio é de fevereiro de 2019 e foi gravado em seu gabinete na Câmara. Janones estava então assumindo seu primeiro mandato.

Pra quem não sabe quem é Janones, o advogado se lançou candidato a presidente nas últimas eleições pelo partido nanico (e não de esquerda) Avante. Foi muito inteligente em desistir da candidatura e apoiar Lula, ganhando assim projeção nacional. Foi importantíssimo na campanha, entendendo as redes sociais como poucos e muitas vezes usando artimanhas bem parecidas com as da direita, como fake news e ataques pesados contra adversários. Seu método recebeu a alcunha de janonismo cultural (recentemente ele publicou um livro com esse título). Foi cotado para ser Secretário da Comunicação (felizmente, o PT escolheu um dos seus -- o deputado federal Paulo Pimenta). Segue sendo um nome importante na resistência ao bolsonarismo.

Mas sua casa começou a ruir com a divulgação de outros áudios. Um o mostrava histérico com a incompetência dos seus assessores, principalmente com seu primo, que iria ser candidato a prefeito de Ituiutaba (MG), e que, segundo Janones, só queria o cargo para poder ganhar milhões com propina e gastar tudo com prostitutas. Um político confiável deveria manter pessoas assim longe da política. Nunca nomeá-lo assessor, certo? 

Mas o áudio de 2019 é infinitamente pior. Nele, Janones diz a seus assessores: "Tem algumas pessoas aqui, que vou conversar em particular depois, que vão receber um pouco de salário a mais e elas vão me ajudar a pagar as contas que ficou da minha campanha de prefeito, porque eu perdi R$ 675 mil na campanha. Elas vão ganhar a mais para isso. ‘Ah, isso é devolver salário, e você está chamando de outro nome.’ Não é, porque o devolver salário você manda na minha conta, e eu faço o que eu quiser. Eu perdi uma casa de R$ 380 mil, um carro, uma poupança de R$ 200 mil e uma previdência de R$ 70 (mil). Eu acho justo que essas pessoas também participem comigo da reconstrução disso. Então, não considero isso uma corrupção. Isso são simplesmente pessoas que eu confio e que participaram comigo em 2016, que eu acho que elas entendem que realmente meu patrimônio foi todo dilapidado. Não acho justo, por exemplo, o Mário vai ganhar R$ 10 mil, e eu vou ganhar R$ 25, né, de… Só que o Mário os 10 mil é dele, é líquido. Eu, dos 25, 15 eu vou usar para pagar as dívidas que ficou de 2016. Não é justo, entendeu?”

Não tenho qualquer dúvida que nós da esquerda consideraríamos esse áudio lamentável (e criminoso) se ele viesse de algum deputado de direita. Não dá pra passar pano só porque Janones é aliado. 

Sabemos que Bolsonaro e seus filhos usaram o esquema das rachadinhas durante décadas para enriquecerem. Mas lógico que não são os únicos. É sim uma prática bastante comum entre parlamentares e seus assessores. E deve ser combatida e eliminada, porque é corrupção com dinheiro público. 

Ao que tudo indica, Janones não usou as rachadinhas para enriquecer, e sim para pagar dívidas da campanha de 2016, quando concorreu a prefeito de Ituitutaba (ficou em segundo lugar, com 13 mil votos). E, diferente da familícia Bolso, seus assessores não eram funcionários fantasmas. Mas é rachadinha de qualquer jeito, uai.

A fala de Janones também me chamou a atenção porque ele insiste no "patrimônio dilapidado" que ele precisa reconstruir. Fica a dúvida: se ele tivesse sido eleito prefeito, como faria para reaver o dinheiro investido na campanha? Cobrando rachadinha dos assessores ou propina nas obras da cidade? 

Janones usou suas redes sociais para expor sua revolta por ter sido exposto. Disse que o áudio é clandestino e criminoso (ou seja, que não foi gravado com autorização), que está fora de contexto, que desafia colocarem o áudio na íntegra (aqui os quase 50 minutos de áudio na íntegra), que está sendo atacado pela extrema-direita, que já o tinha acusado em 2021, sem nenhum resultado. 

De fato, Janones foi denunciado ao MPF de Minas pela primeira vez em 2021 pelo ex-assessor Fabricio Ferreira de Oliveira, que afirmou que o esquema das rachadinhas era operado pela então secretária parlamentar Leandra Guedes, hoje prefeita de Ituitutaba. Oliveira anexou à denúncia a gravação de outro assessor de Janones, Alisson Alves Camargo, que dizia receber cerca de R$ 10 mil por mês e repassava a metade para "eles" (Janones e Leandra). Tudo era feito com dinheiro vivo. Mas nessa denúncia de dois anos atrás havia apenas os áudios dos assessores falando das rachadinhas. Agora há o áudio do próprio Janones. 

À noite, em entrevista ao ICL, Janones se contradisse várias vezes. Disse que não se lembrava de ter falado isso, e que não tem como se lembrar de cada coisa que falou nos últimos anos, mas depois deu detalhes do contexto do áudio (foi mesmo pros seus assessores, que ele chama de amigos). No áudio, e no início da entrevista, falou em dívidas da campanha dele, que depois viraram dívidas da campanha deles (dos assessores). Disse que a campanha para prefeito foi linda (e daí?). Disse que ele realmente falou tudo aquilo pros "amigos" (ele não assume que já eram seus assessores e que ele já era o chefe), mas que ele acabou não cobrando nenhum dinheiro, pois pagou as dívidas sozinho (só as dele? e as dos outros?), ou seja, que não houve materialidade (só intenção). Disse também que foi a mão de Deus que o colocou na Câmara, então só Ele pode tirá-lo de lá. Onde já vimos esse discurso messiânico antes?

Ontem, quando o Metrópoles publicou a íntegra do áudio (que foi gravado por um outro ex-assessor, o jornalista Cefas Luiz), Janones lançou uma nova versão: que sim, ele "sugeriu aos amigos" coletar parte do salário deles para pagar dívidas da campanha, mas que sua "sugestão foi vetada pela minha advogada e, por isso, não foi colocada em prática. Fim da história". Não é isso o que os ex-assessores dizem. Eles dizem que as rachadinhas começaram logo depois da reunião de 2019 (a que está gravada em áudio).

Infelizmente, a secretária do PT Gleisi Hoffman (e outras pessoas do governo) já se manifestaram em favor de Janones, como se as denúncias fossem invenções de bolsonaristas, como se não houvesse um áudio extremamente comprometedor (e que é verdadeiro, não uma montagem nem um deep fake). 

Janones, lógico, se aproveita disso e se vitimiza com louvor. Alega que não se deve julgar e condenar sem ampla defesa (isso aparentemente não vale pros inimigos políticos), que o que estão fazendo com ele foi o mesmo que fizeram com Lula, e que "se não aprendermos a guerrear eles voltarão, com tudo! E aí, já era democracia!"

Eu não votei no Janones porque não voto em Minas. Mas nunca votaria porque só voto em mulheres para cargos parlamentares e porque nunca votaria num candidato do Avante (ainda por cima terrivelmente evangélico, pelo que parece). Reconheço sua importância na campanha de 2022, mas isso não deveria dar um passe livre pra ele agir da mesma forma que os velhos corruptos da direita que a gente tanto combate.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

É RIR PRA NÃO CHORAR COM O NAUFRÁGIO DA ARGENTINA

Qualquer pessoa minimamente sensata está desapontada que a Argentina -- que muita gente achava que era um país mais politizado que o Brasil -- elegeu um traste completo como Javier Milei. 

As pesquisas erraram feio. Poucos imaginavam uma porcentagem tão grande para o maníaco da serra elétrica: 55% a 44% para Massa. O atual ministro da economia teria que descontar em Buenos Aires (que representa a metade dos eleitores do país) a enorme vantagem de Milei nas outras províncias, mas só conseguiu empatar. Nas províncias de Mendoza e Córdoba, Milei teve mais de 70%. E lá não tem Nordeste pra salvar o país. Só Santas Catarinas.

Tudo bem, a "esquerda" argentina (tenho dificuldade pra encarar peronismo ou kirchnerismo, dos quais nunca fui fã, como esquerda) errou feio em escolher Massa para ser o candidato. O atual governo é um fracasso, não foi capaz de reverter a desgraça de Macri (de direita), e o resultado está aí: inflação anual de mais de 140% e miséria em 40%. Era duro votar em Massa sem pensar que ele seria a continuidade. Mas dar um tiro no escuro desses e eleger um cruzamento de Bolsonaro com Paulo Kogos (como estava ontem no Twitter)?! Pô, eu votaria em qualquer coisa pra não votar no Milei! Votaria no Conan, o cachorro morto que lhe dá conselhos! Votaria até nas pulgas espirituais do Conan! Votaria até no Macri! (no Bolsonaro não. Há limites pra tudo nessa vida). 

O principal grupo que elegeu Milei foi de rapazes jovens, sem educação formal, que já nasceram numa Argentina em crise (em 2001 o país passou pela pior crise de sua história, com cinco presidentes em duas semanas!) e nunca viram seu país prosperar. Desiludidos, achando que não podem contar com o Estado pra nada, eles acreditaram na lorota da extrema-direita de que é melhor acabar mesmo com o Estado! Ironicamente, esses são os que mais vão sentir na pele o que é um país quebrado, sem subsídios para a população, com tudo privatizado. Como sempre, alguém vai ganhar muito dinheiro com um governo de extrema-direita. Pena que não será o povo.

Milei já anunciou que romperá relações com seus dois maiores parceiros comerciais, China e Brasil. Disse que quer acabar com o Mercosul e que os primeiros países que irá visitar, logo após sua posse no dia 10 de dezembro, serão Israel e Estados Unidos. Na sua declaração de hoje afirmou que "tudo que puder estar em mãos privadas estará" (olha o tamanho do desastre). 

O sociólogo Rudá Ricci destacou num fio algumas das propostas do cosplay de Capitão Gay (personagem antigo do Jô): na educação, Milei quer a fusão dos ministérios da saúde com o da educação, criando o "Ministério do Capital Humano". Propõe um "voucher da educação", e o livre comércio de órgãos humanos. Uma de suas promessas (que provavelmente não será concretizada por falta de verbas) é fechar o Banco Central e dolarizar a economia, exterminando o peso argentino. Terá minoria no Congresso, o que pode brecar seu projeto de destruição total. Mas qualquer coisa que fizer já será ruim.

Não haverá surpresas. O programa neoliberal de Milei já foi provado e reprovado. Não deu certo no Chile, nem na ditadura militar argentina, nem com Menem, nem com presidentes substitutos que ficaram poucos dias no cargo, e, finalmente, nem com Macri. Não há nada de diferente no discurso de Milei. Minha previsão (podem anotar) é que será uma gestão tão, mas tão tenebrosa que ele não completará seu mandato. 

Pra reaça (de qualquer país) é fácil fazer previsão, já que eles não têm o menor compromisso com a ética e com a verdade. Quando Milei der muito errado (e vai dar), irão dizer que ele não é um libertário de verdade, que ele não é de (extrema) direita. Foi o que fizeram com Macri, lembram? Alguns bolsonarentos arrependidos adotaram esse "argumento" pro Bolso também. Não cola. Assumam: vocês não sabem votar. Muito menos governar. Só roubar.

Pra não chorar, a gente fica com o bom humor. O único lado positivo dessa história é que um monte de bolsonarista havia dito que se mudaria pra Argentina se Milei ganhasse. O problema é que não dá pra confiar. Mentem o tempo todo. Mas se for por uma boa causa, a gente faz vaquinha pra pagar as passagens só de ida.

Uns juraram que ganhar a Copa do Mundo foi tipo a última refeição de um condenado antes da execução. Outros que o resultado das eleições se deve a gerações de argentinos que vieram passar o verão em Santa Catarina. Um escreveu: "as veias fudidas da América Latina", ha ha (triste).

Como disse um humorista, "Zoar a Argentina agora é chutar cachorro morto. E cachorro morto é assunto de Estado". Uma tuiteira colocou um vídeo do Inelegível telefonando pro Milei com a legenda "Milei adora falar com cachorro morto". O extremista já declarou que privatizará a YPF, a petroleira deles, e tem um bocado de gente pedindo pro Lula mandar a Petrobrás comprar a empresa argentina. Outro disse que daqui a alguns meses poderemos trocar um caminhão de abacate por qualquer empresa do país vizinho. Outro: "Já já vão querer anexar e vamos mudar 'do Oiapoque ao Chuí' para 'do Oiapoque ao Ushuaia'". 

Já o maridão sugeriu (é brincadeira, sulistas de esquerda!) que, como Milei promete liquidar a Argentina, os bolsonaristas do Sul bem que podiam comprar um pedaço do norte da Argentina (vai ficar baratinho logo), se mudar pra lá, e fundar o Sul é Meu País. Aí a gente aproveitaria RS, SC e PR livres de fascistas para criar o Nordeste do Sul por lá.

Não, sério, assim como existe resistência no sul do Brasil, também existe na Argentina. Muita gente (principalmente as mulheres, acima de tudo as feministas) continuará lutando. Vamos torcer por elas para que o pior passe logo e lutar junto sempre que pudermos. 

terça-feira, 14 de novembro de 2023

IRINA KARAMANOS, A MAIS JOVEM EX-PRIMEIRA DAMA DO CHILE

Publico aqui mais um excelente post da nossa correspondente oficial no Chile, a jornalista Isabela Vargas (que, além de jornalista, também é mãe da Gabriela, feminista e integrante da coordenação do coletivo Mujeres por la Democracia Santiago de Chile). 

Perguntei pra ela se lá no Chile as pessoas andam preocupadas com as eleições da vizinha Argentina, que no domingo pode eleger o maníaco da serra elétrica Javier Milei, causando um grande estrago em toda a América Latina. Ela respondeu que no Chile todos estão em campanha contra o texto da nova constituição, que foi escrito por um conselho constitucional formado pela extrema-direita. O plebiscito está marcado para o dia 17 de dezembro. "Torce por nós!", pede ela. "Tem muito retrocesso no novo texto. Consegue ser pior que a constituição do Pinochet".

A gente não tem um minuto de paz! Mas leiam sobre essa decisão da (ex) primeira-dama chilena e avaliem se pode influenciar outras primeiras-damas. Nossa Janja, sabemos bem, é alvo constante da extrema-direita daqui, mas parece gostar de ser primeira-dama (ela tem opção?). Eis o post da Isabela:

Na última semana, as redes sociais do Chile sacudiram com trechos do TED Talk com a ex-primeira-dama chilena Irina Karamanos Adrian. Num dos vídeos, ela explica os motivos que a levaram transformar o papel tradicionalmente atribuído às companheiras dos presidentes eleitos nas democracias modernas.

O argumento é muito interessante e bastante válido. Na visão de Irina, o cargo de primeira-dama é resultado de afeto e não de um processo democrático. Por conta disso, ela abandonou o cargo em dezembro de 2022, mas antes disso, fez as transformações necessárias.

Na apresentação do TED Talk, Irina explica que nem ela, nem ninguém mais, sonha com ser primeira-dama do Chile, quando se pensa em um futuro profissional. No caso dela, é fácil de entender, especialmente, porque além de feminista, militante do mesmo partido do Gabriel Boric (Convergencia Social), ela tem um excelente currículo, especialmente na área acadêmica.

Irina é formada em Artes Visuais e estudou Ciência Política, Educação e Antropologia na Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Além disso, tem diploma em Diversidade Linguística pela Universidade Autônoma de Barcelona.

Aliás, em se tratando de diversidade linguística, o currículo dela realmente impressiona. Ela fala espanhol, alemão, inglês, indonésio básico e grego. Recentemente, começou a estudar Kawésqar, língua do povo originário no extremo-sul do Chile e que é falada por apenas uma pessoa.

Na apresentação do TED Talk, ela explica que enfrentou muitas críticas no início do governo Boric, quando tomou a decisão de assumir o cargo de primeira-dama. Apesar de ter deixado claro desde o início que a sua intenção era fazer uma mudança nos rumos do gabinete, as principais organizações feministas no Chile não gostaram nada.

Mesmo assim, ela encarou de frente o desafio e começou o trabalho. Aos poucos, foi repassando as fundações ligadas ao gabinete para determinados ministérios. O trabalho foi concluído em dezembro do ano passado, quando ela anunciou sua saída do Palácio La Moneda.

Oficialmente, Irina Karamanos continua acompanhando Gabriel Boric em eventos protocolares. No entanto, ela agora retomou a sua militância política dentro do partido que os dois fazem parte, além de participar dos TED Talk.

Em sua primeira participação, ela teve a oportunidade de contar como está combatendo os estereótipos de gênero. Para Irina, ao abandonar e extinguir o gabinete de primeira-dama, ela está devolvendo o poder político a quem realmente pertence, ou seja, para pessoas que foram diretamente eleitas pelo voto e, desse modo, protegendo a democracia.

Considerando que os dois são muito jovens (ela tem 32 e ele, 37) e de uma geração que veio realmente para promover mudanças na velha estrutura tradicional da politica, me parece muito interessante a atitude dela. Vamos ver se os próximos governos eleitos irão manter e respeitar essa inovação.

Um dos trechos da palestra dela que mais me chamou a atenção foi quando ela mencionou como temos forte no nosso imaginário a imagem do homem sempre acompanhado, principalmente, aqueles que ocupam cargos de poder. 

E não pude deixar de lembrar do Boric na cerimônia de abertura dos Jogos Pan Americanos sozinho, brincando com o sobrinho dele, um bebê de apenas alguns meses nos braços.  A primeira coisa que eu pensei: onde está a Irina?

Por outro lado, nunca me causou estranheza ver a Dilma sozinha, acompanhada da filha e do netinho em eventos protocolares importantes. Assim como a Bachelet, que desempenhou os dois mandatos [de presidenta do Chile] como uma feliz divorciada. Realmente, são estereótipos que levam muito tempo para se desconstruir. O importante é que a Irina Karamanos está dando os primeiros passos para romper essas estruturas. Acho que isso é super válido.

Se realmente, veremos essas mudanças respeitadas no futuro, não temos como saber. O que estamos testemunhando agora é uma grande inovação, num mundo que está mudando muito, especialmente no Chile, onde as mulheres e o movimento feminista cada vez mais ocupam seu legítimo espaço na disputa política.  

Eu observo com muita alegria esse movimento porque minha filha de 8 anos já tem assimilado que o futuro é feminino. Recentemente, estudando os gregos em História no colégio ela ficou chocada quando viu que as meninas não recebiam educação escolar, somente os meninos. É muito bom saber que daqui pra frente, as mulheres querem sair desse espaço de estar à sombra de alguém simplesmente porque elas não querem e sabem que podem mais. 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

HÉTEROS JURÁSSICOS CONTRA O CASAMENTO HOMOAFETIVO

Faz quase um mês, numa terça-feira, 10 de outubro, a comissão de Previdência, Assistência Social, Infância e Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou um projeto asqueroso, desses de envergonhar qualquer pessoa minimamente inteligente. A comissão aprovou, por 12 votos a 5, uma proposta para proibir que pessoas do mesmo sexo possam se casar entre si. 

O projeto original, na realidade, é de Clodovil, o primeiro deputado gay assumido. O que ele propôs em 2007 foi justamente o contrário do que foi aprovado mês passado: que pessoas do mesmo sexo possam se casar. Mas o relator, o deputado bolsonarista Pastor Eurico (PL-PE), alterou o projeto, estabelecendo que "nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento, à união estável e à entidade familiar".

No relatório do pastor deputado, há aberrações como: o "homossexualismo" "separa a sexualidade do seu significado procriador", "é contrário à lei natural". Ou seja, se uma união não gera cria, nem deveria existir (tipo a minha: sou casada com um homem há 33 anos mas decidimos não ter filhos; logo, pela lógica do pastor, não temos uma união, nem somos uma família). 

Parece que regredimos, sei lá, uns doze anos. O casamento homoafetivo já é uma realidade há muitos anos. Nem é mais discussão. Ainda em 2011 o STF reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Além do mais, ainda que um projeto retrógrado desses represente bem o Congresso ultraconservador que temos (em que a maior bancada é justamente uma bolsonarista repulsiva), ele não representa a maior parte da população brasileira, que não vê problema algum no casamento homoafetivo.

Em 2021, uma pesquisa internacional realizada em 27 países apontou que 54% dos entrevistados apoia o casamento entre pessoas do mesmo sexo (apenas dois países, Rússia e Malásia, tiveram maioria que se opõe). No Brasil, 55% apoia. A maioria do mundo (61%) apoia adoção por casais do mesmo sexo. No Brasil, 69% apoia. Mais ainda: 65% dos brasileiros são a favor de leis contra a discriminação de pessoas LGBT (o projeto aprovado é abertamente discriminatório). 

Já uma pesquisa do DataPoder no final de janeiro mostrou que 46% dos brasileiros são contra o casamento homoafetivo. A onda retrógrada fez que esse percentual subisse 7 pontos em 7 meses, 13 pontos em dois anos. 44% são a favor atualmente, o que configura empate técnico. A pesquisa também indicou a polarização de acordo com a ideologia política: entre quem aprovava o governo Lula (em janeiro, quando ainda estava começando), 61% era a favor do casamento gay (ainda assim, 27% contra). Entre quem desaprovava Lula, 60% era contra o casamento gay (35% a favor).

Uma pesquisa mais recente, de junho deste ano, revelou um placar mais apertado, mas, ainda assim, favorável ao casamento homoafetivo: 52% dos brasileiros aprovam, enquanto 40% são contra. O Brasil está na média mundial, embora o apoio em países como Argentina e México seja muito maior (67% e 62%, respectivamente). Essa pesquisa da Pew Research Center mostra o contrário daquela da DataPoder -- pela primeira vez nos últimos dez anos, a população brasileira é majoritariamente a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo. 

Essa mesma pesquisa demonstra o peso das religiões: 56% dos católicos apoiam o casamento gay, mas esse apoio cai para apenas 32% entre os protestantes. Ainda outra curiosidade apontada pela pesquisa: apenas entre 1% e 2% dos casamentos realizados no Brasil são entre pessoas do mesmo sexo. E, dentro desse universo, 61% dos LGBTs que se casam são mulheres. 

É em cima dessa porcentagem minúscula de gente do mesmo sexo que se casa que a comissão da Câmara quer tripudiar.

O projeto segue para a Comissão de Direitos Humanos, que tem ampla maioria de parlamentares progressistas, como Erika Hilton (Psol-SP) e Daiana Santos (PCdoB-RS). Essa comissão deve barrá-lo, só que ainda não sabe qual a estratégia mais eficaz. Se engavetá-lo, existe o risco de algum deputado reaça assumir o comando nos próximos anos e tentar aprová-lo novamente. Também há a possibilidade de ganhar no voto, como pontua Erika: “Se virmos que o projeto pode ser enterrado no voto, às vezes é bom. Isso passa um recado para a sociedade, mostra que a democracia se mantém de pé, e que a Câmara não é esse curral do fascismo e do ódio antidemocrático”. 

Ainda que o projeto seja aprovado, o que é duvidoso, ele será barrado pelo STF, pois ele é evidentemente inconstitucional -- simplesmente não se pode ter uma lei que discrimine uma parcela da população, que diga que alguns podem casar civilmente ou constituir união estável e outros não. Mesmo assim, temos que lutar e ficar de olho. A Aliança Nacional LGBTI+, por exemplo, promove a campanha “Nossas Famílias Existem” em protesto contra o projeto.

Eu sempre me perguntei por que existem héteros conservadores que são contra o casamento homoafetivo. Afinal, não tem nada a ver com eles. Não vai interferir em nada na vida deles se Adão e Evo constituírem uma união estável. Opa, mas interfere sim. Se eles não são considerados um casal, os bens de um, no caso de morte, vão pros pais (muitos dos quais cortaram relações com o filho ao saberem que ele é gay). Mas, sinceramente, não sei se os héteros conservadores pensam em herança quando vociferam besteiras contra o casamento gay. 

Encontrei na feminista americana Rebecca Solnit uma boa explicação para os conservadores se oporem ao casamento entre pessoas do mesmo sexo -- é porque ele pode ser de fato igualitário. E é disso que eles têm medo, que o casamento homoafetivo implique que o casamento entre homem e mulher (o tradicional) também deve ser igualitário, não mais com a mulher sendo vista como propriedade do marido, como foi durante séculos. “O casamento igualitário é uma ameaça sim: ele ameaça a desigualdade”, alega Solnit. É uma ameaça aos papéis tradicionais de gênero. 

Mais uma prova de que LGBTfobia e misoginia andam sempre juntinhos.