domingo, 31 de março de 2013

GUEST POST: FAZENDO ARTE NO ESCURO

Esse rapaz, B., me enviou um relato sobre a família que não o aceita como ele é. Não aceita nem sua arte.

Lola, tudo bom? Sempre li muito o seu blog, aprendo muito sobre as questões de gêneros, desigualdades e tiro dele também argumentos para deixar as coisas do cotidiano honestas e plurais. Sou um homem de dezenove anos, sou um cara feminista, e componho poesias. Sempre gostei muito de escrever, pois sempre fui muito acuado pelo (maldito) sistema patriarcal e tradicionalista imposto por minha família nordestina, daquela que acha que todo cara deve ser “cabra macho”, e em que as mulheres são completamente submissas (guerreiras em cuidar dos filhos e arrumar pendências em casa, porém submissas).
E você não imagina o quanto sofro por isso! Poucas vezes tive uma conversa (verdadeira) com toda a família. Vivo o que eu realmente sou, o que eu realmente gosto clandestinamente. Sentir o frio da mentira me abraçando todos os dias já virou tão rotineiro que às vezes me perco no que sou.
Enfim, sou gay, tenho um namorado, sou ateu, torço por um mundo plural e gosto de rock! Ou seja, sou uma besta fera da minha parcela de família. Me sinto muito perdido de não poder ser o que sou, de viver em fragmentos, sufocado. Não posso expurgar o que eu sinto. Queria berrar para eles, quebrar toda a hipocrisia e alienação em que eles vivem, e até machucá-los com a minha verdade, com o meu jeito de ser.
Vivo perseguido pelo medo. Tenho receio de quando estou com meu namorado e nossas amigas e o celular toca. Tenho medo de imaginá-lo tocar! Às vezes eu simplesmente queria sair e não voltar pra casa, pegar o caminho do curso ou estágio e não mais voltar... Apenas me esquecer, me deixar pra lá, não ter resultados, não ter absolutamente em que cogitar. Me sinto fraco por não ter a capacidade de falar, e fico cheio de ira em pensar que toda a minha família é tão ignorante a ponto de não saber definir o que é hetero e o que é homo! Serei completamente visto como imoral, serei chamado de viado, baitola e todo esse xingamento hostil e humilhante.
Até mesmo as poesias que escrevo e são lançadas nos livros da cidade (por uma rádio independente), são vistas como porcarias pelos meus pais. Eu não quero me calar, mas tenho medo de tudo se tornar bem pior.
Às vezes penso se seria bacana acordar hetero, branco e católico. Não, eu gosto do que eu sou, do que eu penso, do que eu escrevo, mas tenho medo de expor para pessoas que tanto julgam e queimam a língua por terem um filho gay. No mais, vou seguindo por aqui, compondo versos, tocando violão e fazendo a minha arte no escuro. 
“Em copos sujos se afoga a ira
E os lamentos saem do coração
Acaba o morto o que não poderia
É tão rico o mundo da ilusão” (Arte no Escuro)

sábado, 30 de março de 2013

GUEST POST: AS BRUXAS QUE NOS ENCANTAM

Conheci Eliana Calado porque ela comprou meu livro (algum dia sai a segunda edição). 
Aí vi que ela é graduada em História e fez o mestrado em Literatura na UFPB, e o doutorado em História Cultural na UnB. Agora ela está trabalhando no departmento de Geociências da UFPB. 
Ela escreveu um livro muitíssimo interessante chamado O Encantamento da Bruxa: O Mal nos Contos de Fada. Pedi pra ela que escrevesse um guest post sobre este tema que assombra a infância de praticamente todxs nós.

As bruxas me fascinam. Fascinam-me, na verdade, já há bastante tempo. Lembro em especial de um sonho que tive quando criança ainda bem pequena, talvez com quatro ou cinco anos: uma bruxa de vestes negras e chapéu pontudo me segurava nos braços e me jogava num caldeirão. Com uma colher de pau, tentava me misturar aos demais ingredientes de sua receita. Acordei em pânico, mas completamente deslumbrada.
O sonho certamente estava relacionado aos vários discos coloridos que me narravam quantas e quantas vezes eu quisesse ouvir as mesmas histórias: A Moura Torta, Os Três Porquinhos, Chapeuzinho Vermelho e tantos outros. O susto de João e de Maria ao serem surpreendidos devorando a casa da bruxa malvada, eu também o sentia todas as vezes que escutava a história, e a sua tenebrosa gargalhada que se seguia ressoa nos meus ouvidos até hoje.
Um presente encantador eu recebi de meu pai cerca de dois anos mais tarde: uma caixa de papelão que, aos meus olhos, era enorme e muito pesada. Continha livros vermelhos grandes e ilustrados: Peter-Pan, O Soldadinho de Chumbo, Cinderela... A imagem primordial que guardo de Branca de Neve vem dessa mesma caixa e nada tem a ver com a personagem de Walt Disney: é uma moça de cabelos longos e anelados, vestida de branco. Nesse mesmo período, eu também me deliciava com lendas brasileiras contadas por Gonçalves Ribeiro e ilustradas por José Lanzellotti: O Curupira e O Negrinho do Pastoreio são as mais lembradas.
Um pouco mais tarde, foram os contos de Pierre Gripari (A Bruxa do Armário de Limpeza, A Bruxa da Rua Mouffetard, O Diabinho Gentil) e os livros de Angela Sommer-Bodenburg da série sobre o pequeno vampiro Rüdiger e seu amigo humano Anton que me despertaram inúmeros devaneios sobre o quão fantástico seria um contato "palpável" com esse mundo além. Na adolescência, a descoberta das narrativas míticas gregas e a leitura das crônicas vampirescas de Anne Rice, assim como a curiosidade pelas práticas mágicas, estimulada por filmes como As Bruxas de Salem (The Crucible) e Jovens Bruxas (The Craft), ambos de 1996, aguçaram o gosto pelo universo do extraordinário.
Foi esta curiosidade que me despertou a vontade de investigar. Imaginando-me praticamente como detetive, eu já tinha em mente pesquisar sobre bruxas quando optei pelo curso de História. (In)felizmente, as leituras não se adaptavam aos meus sonhos: a Idade Média não era tão tenebrosa; mais: as bruxas nem sequer eram características desse período, e sim de um momento posterior; mais grave ainda: a Idade Média era um discurso, uma noção teórica, uma invenção humana; pior: as bruxas também. Passado o susto, o fascínio aumentou mais ainda.
A decisão estava tomada. Comecei então o processo de pesquisa para o que veio a ser anos depois minha dissertação de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba, sob orientação da querida professora Beliza Áurea. Publiquei a pesquisa, de maneira independente, sob o título O Encantamento da bruxa: o mal nos contos de fadas.
Já se vão oito anos da minha defesa e da publicação do livro. De lá pra cá, andei por muitos outros caminhos. Defendi no começo do ano passado minha tese de doutorado, na área de História Cultural, que tratava das autobiografias de Simone de Beauvoir (outra grande paixão). De tão envolvida com as palavras de Beauvoir, acabei deixando os livros bem guardadinhos (não tenho talento como vendedora e divulgadora). Pra falar a verdade, o livro está disponível em livrarias virtuais, mas a grande maioria não me dá nenhum retorno das vendas. Sendo mais sincera ainda, confesso que nunca vou atrás de saber se tenho alguma graninha pra receber. 
Bom, nunca esperei enricar -– nem com a publicação desse livro, nem me tornando professora -– mas sinto bastante orgulho da pesquisa que fiz e gostaria enormemente de divulgá-la. Trabalhei pra caramba, procurei dar o meu melhor na pesquisa e acho que mais pessoas podem se interessar pelos temas que discuto.
Lola então resolveu me dar uma mão e me ofereceu um espaço nesse blog fantástico para que eu divulgue o livro. Trato de resumi-lo:
A primeira ideia do que é uma bruxa, frequentemente, acontece na infância por meio dos contos de fadas. Acostumamo-nos a receber uma definição previamente pronta, sem que, muitas vezes, mesmo atingindo a idade adulta, cheguemos a questionar como teria sido formulada e justificada. As assimilações acríticas feitas ao longo de nossa vida são tantas e tão frequentes, ocupando de tal modo os mais diversos aspectos da nossa vivência, que se torna muito difícil perceber o conjunto de todas elas.

Afirmar que uma bruxa é sempre feia e malvada tornou-se quase uma evidência, assim como a percepção de que os contos de fadas são produções reveladoras de um inconsciente humano atemporal, que perpassa séculos com as mesmas dúvidas, angústias, ansiedades e contradições, sem que as normas de comportamento sejam compreendidas como, não apenas, mas também relacionadas à dimensão sócio-histórica.
É precisamente a preocupação com esse âmbito que norteou meu trabalho. Iniciei o livro com uma contextualização histórico-cultural dos contos de fadas: as contribuições das diferentes análises que o tomam como objeto de estudo; o surgimento dos contos de fadas enquanto gênero literário; o trabalho dos Irmãos Grimm: seu propósito, seu estilo narrativo, certas consequências da sua notoriedade.
Daí, parti para um estudo historiográfico, para a investigação das raízes históricas de uma das vilãs mais emblemáticas dos contos: a bruxa. Compreender a bruxa, entretanto, não seria possível sem antes buscar entender um elemento chave da formação do seu perfil: o diabo. A ressignificação da bruxaria e do diabólico, principalmente, a partir de fins da Idade Média constitui o cerne do segundo capítulo. Concluí o trabalho com uma análise do processo de ficcionalização da bruxa, enfocando, para tanto, três dos mais conhecidos contos de fadas dos Grimm: Branca de Neve, João e Maria e Rapunzel. Que mudanças, que permanências subjaziam na vilã burlesca dessas histórias da pavorosa bruxa de outrora?
Entre as muitas questões que levanto, destaco as seguintes: como a memória concernente à bruxa foi construída? Como o seu perfil foi elaborado? Como o personagem grotesco e vilão dos contos de fadas tornou-se a principal referência do que é uma bruxa? Por que histórias permeadas de elementos históricos, culturais, morais foram apresentadas como ontologicamente neutras e universais?
Bom, gente, acho que é isso.
Se, por um lado, não pretendo enricar, também não pretendo ter prejuízo e aí não dá pra enviar o livro à torta e à direita “de grátis”. O preço do livro, já com frete, fica quinze reais. O depósito pode ser feito no Banco do Brasil: Ag. 3204-2, C.C. 7128-5 Daí é só enviar seu endereço, junto com uma cópia do depósito ou da transferência, para meu e-mail: elianacalado@gmail.com
É isso, pessoal. Beijo grande!

sexta-feira, 29 de março de 2013

AOS HOMENS QUE SE AUTO-BOICOTAM

Não me lembro nem em que post um mascu chamado Vato Loco deixou o seguinte comentário (tudo sic): 
“Logico que mulher gosta de sexo, MULHER ADORA SEXO, talvez algumas não gostem do ato sexual !!! ??? explico, o sexo da um poder social gigantesco para as mulheres, principalmente as mais novas no auge,elas sabem se uma mulher entrar num ônibus e dizer que quer da para 10, levantaram 30 homens, se um homem entrar num ônibus e dizer que quer comer uma, alem de ele não comer ninguém, ele vai tomar um coro !!!”

Vato, vocês mascus vivem dizendo que o único poder que uma mulher tem é o sexual. Ou seja, mulher só tem poder até os 30 anos (aos 30 anos e um dia sua atratividade acaba e ela fica pra titia, passando o restante da sua existência -- uns 50 anos, por aí -- sozinha e deprimida). E lógico que o único poder que uma mulher tem é o decorativo. Vai junto com aquela outra frase que vcs repetem feito um mantra: "Se mulher não tivesse b*ceta, nenhum homem falaria com vcs".
E junto com essa frase genial e nada misógina, imagina, vem todo um pensamento de que mulher não gosta de sexo, que mulher USA sexo para conseguir o que quer, já que toda mulher no fundo é uma prostituta (palavras de vocês, não minhas, inclusive proferidas por um coleguinha sancto que acabou de completar um ano na cadeia). E vem junto toda uma ideologia igualmente patética que descreve homens como incontroláveis seres sexuais.
Já na vida real, quase toda mulher com um mínimo de experiência sexual já conheceu homem que não tem uma ereção no momento desejado, homem com baixa libido, homem que "nega fogo", homem que tem o desejo sexual muito menor que o da parceira, homem que prefere se masturbar com pornografia do que transar com alguém de carne e osso... Mas, pra vcs, homens assim não existem. Homens são máquinas de sexo e acabou! (ainda bem que, pelo menos, nenhum mascu se vangloria de proporcionar prazer sexual à parceira. A vantagem de acreditar que mulher não gosta de sexo é que o cara não precisa sequer fingir que se preocupa com o orgasmo dela. Mascus não são apenas os maiores fracassados da internet, mas também os piores amantes do universo).
Mas vem cá, você tem umas fantasias bem malucas, hein, Vato Loco? Isso de uma mulher entrar no ônibus e dizer que vai dar pra dez, e todos os homens do ônibus fazerem fila... Ha ha, é engraçado demais pra responder. Sabe o cara que fala grosserias pra uma mulher na rua? Se uma mulher responde à grosseria, tipo dizendo "Vamos lá pra sua casa sim, gostosão", qual vc acha que é a reação do cara? (  ) Sair correndo. (  ) chamar a mulher de puta, ameaçá-la e aí sair correndo. (  ) Dizer "Vamos!" 
Se você não sabe a resposta, pergunte pra uma mulher que já respondeu dessa forma. Os caras morrem de vergonha! Isso porque grosserias na rua tem muito menos ligação com convites sexuais de fato que com demonstrações de poder. Julgar, avaliar, é poder.
A maior parte das mulheres (e dos homens) não estão dentro do poder de beleza imposto pela mídia. Se alguém que for a cara (mas que seja anônima) da Juliana Paes entrar num ônibus e anunciar que quer dar pra dez -- se bem que imagino que vc esteja pensando mais na Sonia Braga de Dama do Lotação -- o pessoal dentro do ônibus a achará maluca. Aí as reações variam. Alguns podem querer agredi-la fisicamente, outros só verbalmente. Mas o fato é que a maior parte dos caras ali achará que aquela mulher lá tomando a iniciativa é uma puta, uma vadia, um ser moralmente condenável, e uma afronta à masculinidade.
O que significa um cara querer transar com uma mulher mais livre sexualmente e logo depois apelidá-la com uma das mais de duzentas palavras usadas pra condenar a sexualidade feminina? Note: não estou falando de namoro sério ou casamento. Estou falando de uma mulher que só quer sexo (incrível, eu sei, mas existem mulheres assim) com um cara que só quer sexo. Os dois querem a mesma coisa, e os dois transam. 
Não é que ela "foi usada", que ela "não se valorizou", "não se deu o valor" (o valor, pra vcs, é negar sexo). Ela queria transar e transou. Aí o sujeito que queria exatamente a mesma coisa passa a se referir a essa mulher como vadia e puta. Por quê? Que medo é esse? Se vcs homens gostam tanto assim de sexo, são tão senhores da situação, então por que condenam as mulheres que fazem sexo?
Talvez nem seja um assunto relacionado, mas me lembro quando algumas mulheres começaram a tentar fazer topless nas praias cariocas, na primeira metade da década de 80. Opa, mulheres com o peito de fora! Óbvio que os homens, esses cidadãos que adoram sexo, vão adorar, né? Não, não foi assim. Eles ficaram escandalizados. Algumas mulheres tiveram que sair escoltadas pela polícia. Os homens ficaram hostis, não cheios de tesão.
Eu também me lembro de quando era jovem e não queria relacionamento algum, só sexo. Eu deixava isso claro pros meus parceiros. No começo, tudo bem –- era isso que eles queriam também. Mas, com o tempo (e antes de conhecer o maridão eu nunca tinha ficado com alguém por mais de dois meses), o cara passava a se sentir desconfortável. Como assim, só sexo? Eu não gostava dele? Não o considerava pra algo mais sério? Não queria sonhar com uma aliança no dedo? Não desejava viver feliz para sempre com ele? Pros caras mais inseguros, era inconcebível que eu, uma mulher, só quisesse sexo. Aquele era um papel masculino! Eu não estava desempenhando o meu papel!
Na sociedade machista que a gente vive, o papel da mulher no sexo é sempre passivo. E depois vocês se queixam que a mulher não toma a iniciativa, né? Ué, se ela procurar sexo, será xingada (se bem que mulher é xingada de qualquer jeito -- basta ser mulher pra ser chamada de vadia). Não faz nenhum sentido. Não seria mais legal pra todo mundo se mulheres pudessem transar sem ser julgadas por isso? Eu nunca canso de me espantar com homens que dizem gostar de sexo com mulheres e as xingam quando fazem sexo com elas. É muita esquizofrenia! E esse comportamento estúpido está longe de ser exclusividade mascu. 

quinta-feira, 28 de março de 2013

GUEST POST: TRAUMÁTICA REPRESSÃO DOS PAIS


A N. me enviou este email tocante que fala de muitas coisas: de criação de filhos, de bater pra educar, de traição, de pornografia, de machismo. 
Este é o modelo de "casamento tradicional" que os conservadores veem ameaçado. Mas se este é o conceito de família sagrada que eles aceitam, tomara que acabe mesmo. Quem quer ter essa criação?

Eu tenho uma história para contar. A minha história. Sempre que comeco a te escrever, eu choro, fico triste e apago tudo. Ja tentei te escrever umas oito vezes. Mas hoje eu vou conseguir. Aí vai:
Eu cresci em uma família machista. Na verdade, antes de ter contato com outras famílias no colégio, não sabia que existia maneira diferente de ser uma família.
Meu pai sempre foi a autoridade suprema da casa. Minha mãe, uma mulher submissa e complicada.
Até meus quatro anos fui filha única, e excessivamente cobrada. Digo, excessivamente MESMO. Com direito a castigos de 3 horas sentada olhando para parede. O mais irônico é que  as minhas notas no colégio sempre foram boas. E mesmo assim, nunca recebi um parabéns. Na verdade, meus pais só olhavam meus deslizes.
Eu era incapaz de negar um pedido dos meus pais. Fazia todas as lições de casa, organizava meu quarto, lia meus livros (meus pais não me deixavam assistir TV). Eu era silenciosa e costumava brincar embaixo da mesa da sala.
Até os oito anos não tenho muito do que reclamar. Na verdade, até os oito eu fui bastante feliz. Feliz sim, apesar do modelo de sempre: meu pai sempre rígido, minha mãe sempre seguindo os seus passos. Eu era feliz porque achava que era assim que todas as crianças eram tratadas: de maneira severa.
E, de fato, até meus oito anos eu amei os meus pais com todo o meu coração.
Até que nos mudamos para a casa onde moramos  hoje. Uma observação: minha mãe nunca foi do tipo "maternal". Sei que nunca ouvi um "eu te amo". E só fui abraçada nas vezes em que fiquei doente.
Mas, voltando aos meus oito anos: assim que chegamos na nova casa, meu pai precisou fazer viagens frequentes a trabalho. Ficávamos sozinhas, eu, minha irmã, meu irmão de colo. Foi aí que minha mãe mudou.
Tanto ela quanto o meu pai sempre foram adeptos da psicologia da palmada, aquela "palmadinha inocente" que se dá nas crianças. Até então, eu só havia levado palmadinhas mesmo. Até que meu pai começou a viajar.
Meu pai viajava, minha mãe ficava furiosa. Eu não sabia porquê ou com o quê ela se incomodava. Só sabia que sobrava pra mim. As palmadinhas evoluíram para beliscões nas coxas, nos braços, ou puxões de cabelo. Quanto mais eu gritava, mais ela me beliscava.
Não havia motivo específico. Sei que uma vez (eu ja estava com 9 anos) ela me beliscou nos braços até que eu ficasse roxa. O motivo? Eu tinha tomado banho com as minhas bonecas, e ao sair do banho, o cabelo delas respingou no chão.
Eu choro ao contar isso porque na época, eu achava que isso era uma falta grave. Depois desse incidente do banheiro, passei a tomar meu banho e depois secar todo o chão com pedacinhos de papel higiênico. Não preciso dizer que minhas bonecas nunca mais tomaram banho.
Houve outras vezes, dias em que ela puxou meu cabelo até arrancar tufos porque eu fiz "uma pergunta idiota" (a pergunta: mãe, nós vamos almocar na tia?).
Lola, hoje em dia eu sei que era absurdo os motivos pelos quais eu apanhava. HOJE eu sei. Naquela época, eu achava que a culpa era minha. Que se o banheiro estivesse com pingos de agua no tapete, eu era uma má filha. Que, se eu derrubasse um copo, eu era burra. 
Meu pai me batia menos, bem menos. Os motivos eram outros. Do meu pai, eu apanhava caso não comesse toda a comida que estava no prato. Apanhava se respondesse que não queria vestir o cachecol azul. Na minha cabecinha infantil, se eu fizesse tudo certinho, meu pai não me bateria. E era verdade. Já que meu pai me batia com o que eu chamo de "propósitos definidos", eu não tinha medo dele. Eu o amava por ele brincar comigo de soldadinhos de chumbo e luta marcial. Eu o amava porque quando ele chegava em casa a minha mãe não me batia nem gritava comigo.
Eu o amei muito. Até meus onze anos.
Eu estava na quinta série e tinha criado um email para poder falar no msn com a minha melhor amiga. De manhã nós iamos à aula, de tarde nós ficávamos trocando dicas pelo msn sobre um joguinho sobre animais virtuais.
Uma tarde eu fui abrir meu msn e já havia janelas de conversa abertas. Não eram minhas.
Mas eu tinha onze anos, e li.
Eu não sei se quero falar o que li. Eu li coisas que crianças de onze anos não deveriam ler.
Na hora eu soube que eram conversas do meu pai com outra mulher. Por que o meu pai estava marcando para comer a xota de uma mulher? O que era lamber o c*? Coisas que eu não entendia muito bem.
Mas foi assim que eu soube que ele traía a minha mãe.
Pensei em me matar duas semanas depois. Ia pular da sacada. Liguei para a minha melhor amiga antes. Graças a ela, não pulei.
Minha visão de pai e mãe tinha sido destruída. Assim que meu pai saía pela porta, minha mãe virava outra pessoa. Gritava comigo, me batia, dizia que eu nunca ia conseguir passar de ano no colégio. Quando o meu pai chegava, eu sabia que ele tinha saído para "comer a xoxotinha" de uma mulher.
Um mês depois ele começou a esquecer sites de pornografia abertos no computador. Ele simplesmente os abria e ia embora.
Eu corria para o computador pra fechar os sites. Não sei até hoje se ele queria que a minha mãe visse, não sei.
Sei que eu fechava os sites para que a minha mãe não soubesse. Eu tinha medo de ficar sozinha com a minha mãe, e se meus pais se separassem, por que ele ia me querer? Quem iria chegar em casa e fazer a minha mãe voltar ao normal?
Com onze anos eu fui exposta a uma quantidade imensa de pornografia. Aos onze anos eu fechei inúmeras conversas, muitos sites pornôs, inúmeras mulheres arremessando coisas pelo c* ou com um pau na boca.
Eu garanto que não estava preparada pra ver aquilo.
Nessa época, comecei a acordar suada e tremendo muito. Os tremores e o suor evoluíam para uma falta de ar imensa, e por fim eu vomitava tudo que tinha comido.
Dois anos mais tarde eu fui diagnosticada: síndrome do pânico. Eu sofro com a síndrome até hoje.
Bom, não falei dos meus irmãos. Sei que escrevi muito e vou resumir. Minha irmã tambem apanhava. Meu irmão, não.
Meu irmão cresceu e foi criado de uma maneira muito diferente. Minha mãe o deixa tirar notas baixas no colégio. Ele nunca teve alguma punição pelos comportamentos dele.
Hoje ele está com 12 anos. E sabe, ele não é uma cópia do meu pai, nem da minha mãe. Ele é o pior dos dois juntos em uma pessoa só. Meu irmão me chama de vadia na frente de todo mundo. Me chama de empregadinha, de putinha, manda eu ficar de quatro. Ele se masturba na minha frente.
Quando ele fica com raiva, ele bate em mim, na minha irmã e na minha mãe.
O meu pai deixa. Na verdade, o meu pai também bate na minha mãe.
As únicas vezes que meu irmão é reprimido pelos meus pais é quando há visitas na casa. Aí, ao me chamar de putinha, ele é punido. Ao bater na minha mãe ele leva um tapa de volta do meu pai. Mas isso é para manter as aparências.
Lola, eu sei que a minha história é pesada. Nunca tinha escrito ela antes, e posso te garantir que chorei da primeira linha ao fim.
Hoje tenho 20 anos. Ainda moro com os meus pais. Hoje o meu horizonte não é tão escuro quanto eu achava que ia ser. Hoje eu não quero mais morrer todos os dias.
Estudo na melhor faculdade do meu estado. E namoro o amor da minha vida. Ele nunca gritou comigo, e sei que nunca vai gritar. Nunca me bateu, e sei que nunca vai me bater. Lola, eu nunca tinha sido tratada dessa maneira. Com tanto respeito, com tanto carinho.
Apesar de todos os esforços dele, eu continuo me achando feia. E estou tão cansada de achar que sou burra. Estou tão cansada de pedir desculpas MIL VEZES por dia, porque eu sempre acho que quando algo dá errado, seja na faculdade, seja com meu namorado, seja com minhas amigas... eu acho que é minha culpa.
Teu blog é muito importante para mim. Por favor, continue sempre escrevendo. Sei que você deve ser muito ocupada. Sei como é. Pra ficar longe de casa eu faço dez cadeiras e tenho uma bolsa de iniciação científica.

quarta-feira, 27 de março de 2013

COMO LIDAR COM A PRESSÃO PARA TER FILHOS

"Não quero ter filhos. Isso não me faz menos mulher, nem uma pessoa ruim"

A N., de 24 anos, me enviou este email:

"Oi, Lola! Eu era uma pessoa 'normal' na vida, cometendo normalidades atrozes como ofender as feministas com todos aqueles adjetivos que vc deve conhecer tão bem; rindo de piadas preconceituosas. A única causa que eu defendia era a gay, e apenas a defendia por ser bissexual. Tive que ouvir muito nessa vida que eu era confusa, que tinha que me decidir ou que estava seguindo onda. Me doía e defendia, mas poxa, e a dor dos outros? Dói diferente da minha? Então eu passei a me policiar cada vez mais nos preconceitos, até naqueles mais 'inocentes', como o musical.
Mas ano passado, com a Marcha das Vadias, eu fui atrás porque gosto muito de saber o porquê das coisas, e vi uma causa legítima. E vi que eu falava mal do feminismo por não conhecê-lo. E não me lembro bem como cheguei no seu blog, mas foi em meio a vários links que levam de um lugar ao outro. Li muito dele, salvei e baixei livros feministas, e mesmo às vezes não podendo atuar na causa de forma mais ativa, sinto que me informando melhor já melhoro como pessoa. E afinal, uma pessoa melhor no mundo não faz um mundo melhor?
Essa minha breve explicação de como cheguei no seu blog é pra embasar a minha real questão. Li num post seu que vc cita o fato de não querer ter filhos mas apenas como um fato, sem estender. Hoje eu sou casada com um homem, mas a minha decisão desde sempre é que também não os quero. Tanto que na infância eu tinha pesadelos sobre estar grávida e mesmo antes da primeira relação sexual eu tinha receios quando meu período atrasava. Vê se pode!
Meu marido concorda plenamente comigo e já pensava assim antes de nos conhecermos; até aí tudo ok. Acho que os motivos não são relevantes. O real motivo desse email é o seguinte: como lidar com a pressão social sem mandar todo mundo à m*rda e dizer: NÃO QUERO E PONTO! MEUS MOTIVOS NÃO SÃO DA SUA CONTA! Sou bem enérgica e muitas vezes pareço grossa mesmo sem dizer palavrões ou ofensas diretas. Estou tentando mudar isso também e não quero criar indisposições com ninguém, tô tentando crescer, como já disse.
Porque pros amigos, pros colegas de trabalho eu só solto um "não tenho suporte financeiro ainda, preciso de mais estabilidade", e cola. Ou ainda que não é a hora. Mas a família (mais a dele que a minha) cobra incessantemente, e quando me perguntam quando eu terei meus filhos, já soltei alguma coisa próxima com: "Talvez na próxima encarnação". A cobrança foi ficando maior. Eu já pensei até em falar que somos incompatíveis geneticamente, ou que um de nós é estéril. Mas tem aquela né, pra quem não queria, andou pesquisando a fertilidade demais. 
Como se defender de gente que acha que eu sou obrigada a por filho no mundo só porque eles fizeram? Você pode falar sobre o assunto? Sobre mulheres em geral que optaram não ter filhos e porque elas não são a face do mal que há no mundo?
Outra parte do assunto é além disso o meu medo pavoroso e galopante de engravidar. Eu odeio camisinha (e sei que não estou certa), mas pra mim é incômodo e desconfortável, e se tiver ela na jogada, meu prazer some. Eu tomo pílula de 24 comprimidos, mas se eu esqueço uma eu fico o resto do mês sem sexo, só de medo. E as injetáveis, já ouvi muitas histórias que se aplicada de forma errada, ou se faltar uma gota, já tem um risco. Um gineco me indicou o DIU de hormônio que diz ter validade de 5 anos. Mas eu temo tudo! Sempre acho que aquele 0,0001% vai ser eu. Como lidar?
Excelente seu blog, você é uma pessoa linda e que precisamos de muitas assim no mundo. Tudo de ótimo pra você. Só tenho a agradecer, várias vezes, por seus textos."

Minha resposta: A pressão pra ter filhos realmente é grande, e maior pra mulher que pro homem. Eu me lembro de muitas vezes que fui cobrada por quase desconhecidos pra "cumprir meu papel de mulher", mas o maridão raramente ouviu uma cobrança parecida. Acho que a cobrança aumenta entre os 30 e 40 anos, porque as pessoas veem o período como uma última chance de te salvar. E também quando a gente está perto de grávidas. É batata que alguém vai perguntar: "E o seu, vem quando?", como se você fosse uma mulher incompleta por não ter filhos.
Hoje estou com 45 anos e devo confessar que já faz um tempinho que as cobranças diminuiram. Não sei se é porque estou começando a sair da idade fértil, porque a galera já me vê como caso perdido mesmo, ou se eu parei de ligar. Hoje as perguntas são mais no passado, porque ainda não é tão comum estar numa relação estável de tantos anos (22 anos no meu caso) sem se reproduzir.
Nunca fez parte do meu projeto de vida, nem do maridão, ter filhos. Nunca me imaginei mãe, nunca foi um sonho. Talvez por eu ser feminista desde tão jovem, eu nunca acreditei na ideia de que mulher precisa ser mãe pra se realizar, nem que mulher sem filho é "seca", nem em instinto maternal (uma construção social, como qualquer pessoa que estuda o mínimo de história pode constatar). Todo esse condicionamente passou longe de mim. Também tem um pouco de conformismo e até egoísmo na minha decisão com o maridão: nossa vida tá boa como está, pra que mudar?
A realidade é que o número de casais sem filhos só aumenta. Hoje já somos 21,7% dos lares, de acordo com o IBGE. Aliás, a "família tradicional" (pai, mãe, filhos) já não é mais maioria no Brasil, o que pros conservadores é sinal que o apocalipse está próximo. Segundo o Censo 2010, as brasileiras têm cada vez menos filhos e são mães mais tarde. A taxa de filho por mulher caiu quase 22% na última década, e hoje é de 1,86 filho por mulher (o que pode ser um problema, porque nossa população vai encolher, mas aí já é assunto pra outro post).
As mudanças são rápidas, mas a mudança de mentalidade, nem tanto. Muita gente ainda fala do Brasil como se fosse comum, hoje em dia, ter cinco, dez filhos. Quando você apresenta essa estatística pra eles (média de filhos por brasileira de 1,86), simplesmente não acreditam. Se não creem em números concretos, como é que vão acreditar que mulheres podem ser o que quiser na vida, inclusive não ser mães? Que o "valor" de uma mulher não está associado a sua capacidade de se reproduzir (ou de decorar o mundo, ou de manter-se virgem)? Você conseguiu abrir sua cabeça, mas tem gente que vai levar pro túmulo os mesmos valores de seus tataravós. Essa gente vai morrer frustrada, porque viu que foi incapaz de brecar as mudanças. Vai morrer crente que o mundo está um lixo mesmo, lamentando deixar pros filhos o legado de sua miséria.
A miséria dessa gente, no caso, é que o mundo mudou pra melhor e eles não acompanharam. 
Acostume-se, porque a pressão da parte de familiares ainda virá por muito tempo. Deixe claro que você não quer filhos, seu marido também não, e que esta é uma decisão que cabe apenas ao casal. Também saiba diferenciar: nem sempre o "Vocês têm filhos?" é uma cobrança. Às vezes é o jeito que as pessoas iniciam um bate-papo. Comigo geralmente a pessoa pergunta se tenho filhos, respondo que não, a pessoa pergunta: "Por que não?". E eu digo o que digo aqui, que nunca fez parte do meu projeto de vida. 
De vez em quando a pessoa fica muito decepcionada com a resposta, como se eu estivesse deixando o planeta na mão, sabe, e aí eu emendo que talvez eu ou meu marido sejamos estéreis, porque a gente já tá junto faz tanto tempo e nunca engravidou. Mas esta não é uma boa alternativa, porque a pessoa pergunta: "Você já fez exames?", e eu digo que não, já que nunca quis ter filhos, e a pessoa termina com um "Mas você sempre pode adotar". Ou seja, fica um diálogo de surdos, com a boa alma querendo resolver um problema que nunca foi um problema.
E lembre-se que, se você tivesse um filho, alguém te cobraria pra ter mais um. Se você tivesse dois meninos, alguém iria falar pra você tentar ter uma menina. Se você tivesse três, alguém te diria que é filho demais. E se você estivesse grávida, todo mundo iria passar a mão na sua barriga. Ou seja, intrometidx é o que não falta.
Agora, isso que você descreve de pânico de engravidar é algo que tenho ouvido com certa frequência ultimamente.
Não entre em pânico! Tome todas as precauções. Infelizmente, você fazer uma ligação de trompas ou seu marido fazer uma vasectomia é muito difícil. Muito médico se recusa a realizar essa cirurgia em alguém sem filho. Continue tomando sua pílula, torça pra que a pílula masculina venha logo, acompanhe o ciclo do seu corpo, e tenha cuidado com qualquer medicação que possa alterar o funcionamento da sua pílula. Assim as chances de engravidar são pequenas. Mas nada de paranoia. Prevenção é uma coisa, pânico de engravidar é outra.
Voltarei ao assunto de não ter filhos, pois é uma pergunta constante, que várias leitoras fazem. Ah, já falei um pouquinho sobre ter filhos como missão aqui.