sábado, 30 de novembro de 2013

GUEST POST: EM HOLLYWOOD NÃO SE METE A BOCA

O sistema de classificação dos filmes nos EUA é bem puritano, como a sociedade americana, aliás. 
Cenas de sexo são proibidas com muito mais rapidez que as de violência. Fora isso, mesmo cenas de sexo são avaliadas de jeito diferente, dependendo de quem está fazendo sexo (sexo entre casais gays ou lésbicos ou interraciais é censurado com muito mais frequência que entre casais hétero), e também do orçamento do filme (classificar para maiores de 17 anos uma produção independente é mais comum que um filme de grande orçamento). 
Nada disso é novidade. O diretor britânico Adrian Lyne, que só conseguiu uma distribuidora que topasse lançar seu Lolita nos EUA oito meses depois que o filme foi lançado na Europa, disse na época (final dos anos 90), não sem razão: “Se eu estivesse fazendo um filme sobre uma menina de 13 anos que é cortada em pedacinhos por um canibal, eu não teria problemas com a censura”. 
A polêmica da vez aconteceu anteontem, por conta de alguns tweets muito bacanas escritos pela atriz Evan Rachel Wood. O historiador desempregado Felipe Pasqua decidiu me enviar um post a respeito, que publico aqui:

E o rolo mais novo aprontado em Hollywood tem a ver com a censura de uma cena de sexo oral no filme Charlie Countryman. Pra falar a verdade, ouvi falar do filme por causa dessa notícia que saiu na Folha de São Paulo, que fala de uma cena de sexo oral que foi cortada, e da reação da atriz.
Sobre o filme nada a declarar, por enquanto. Mas a atriz Evan Rachel Wood, que é quem recebe o sexo oral no filme teve muito a declarar, não sobre o filme, mas sobre a censura colocada pela Motion Picture Association of America (MPAA). E se acharam ruim terem metido a boca nela, ironicamente, ela respondeu metendo a boca na associação!
Ela sai da mesmice da liberdade de expressão acima de tudo e todos, e vai no ponto da questão. Censurar uma cena de sexo oral em uma mulher em um filme com cabeças voando e explodindo, além de outras cenas de sexo "mais pesadas" (e botemos aspas aí, porque sexo pesado pra mim é o que quebra a cama, e se quebrou provavelmente é um bom sinal), não é só uma contradição evidente, mas o vislumbre de uma sociedade que ainda é machista. Machista, sim senhorx! Por que raios o prazer da mulher é censurado? E aproveitando a qualidade da argumentação da atriz, usarei suas palavras: 
"Ao ver o novo corte de Charlie Countryman, eu gostaria de compartilhar meu desapontamento com a MPAA, que achou ser necessário censurar a sexualidade de uma mulher mais uma vez (...) Esse é um sintoma de uma sociedade que quer envergonhar as mulheres e diminuí-las por gostarem de sexo, especialmente quando (uau) o homem não chega ao orgasmo também!".
Isso é botar o dedo na ferida! Numa sociedade em que a mulher é vista mais como objeto do que como pessoa, ou que quando é tratada como pessoa é mais pra ser questionada sobre "sua moral", suas roupas, sua sexualidade e/ou suas atitudes, realmente a cena de uma mulher gozando com sexo oral pode ser incômoda. Se uma saia curta incomoda muita gente, um orgasmo feminino incomoda muito mais! 
Penso naquele cara conservador que nunca imaginou que relação sexual é uma questão de prazer mútuo (mútuo, não necessariamente simultâneo) -- ele deve ficar louco de medo da mulher lhe pedir pra ele usar a língua pra alguma coisa melhor do que soltar suas idiotices por aí! Mas é bem pior que isso, parece que ver uma mulher gozando é uma afronta à "santidade" das mulheres que ele não cansa de pregar por aí! 
As palmas ficam pra Evan Rachel Wood, que eu mal conhecia [ela, que tem 26 anos e é casada com o ator Jamie Bell, de Billy Elliot, esteve na quarta temporada de True Blood] mas me causa ótimas impressões a partir de hoje, que toma as rédeas da situação, e com isso ataca dois tabus de Hollywood: o do prazer feminino e o da censura ao prazer feminino! 

Tweets de Evan Rachel Wood. Leia de baixo pra cima (clique para ampliar). E ela tem total razão: se fosse uma cena de estupro com sexo oral, teria sido cortada? (pense no angustiante -- e desnecessário -- plano-sequência de dez intermináveis minutos de Irreversível).

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

LOLA FALA DO LULU

Muita gente pedindo minha opinião sobre o Lulu. Se vocês soubessem como estou atarefada, não pediriam. 
Se vocês soubessem como não sei nada do assunto (celular? aplicativo? Eu sou aquela só fiquei sabendo na semana retrasada que Cosplay não era um grupo de rock), não pediria. Portanto, não esperem uma opinião abalizada. Apenas uma opinião de quem mal entende como funciona o tal Lulu.
(Considerando que eu posso não ser a única pessoa no planeta se perguntando "O que é esse Lulu? É de comer?", trata-se de um, ahn, aplicativo -- que muita gente abrevia pra app (estou me esforçando) -- em que apenas as meninas dão notas a meninos das suas redes sociais, e compartilham essas avaliações com outras meninas, como num clube da Luluzinha. Há também hashtags pra facilitar o trabalho, coisas como #filhinhodamamãe, #semprecheiroso, #PagaAConta, #certinhodemais).
Tá, mas antes de dar minha opinião, vou contar uma historinha. Quando eu era jovem, na época em que os dinossauros dominavam a Terra, eu não namorava, só transava (na época não se falava em "ficar"). Não existia internet nem home computer, então a gente tinha que escrever usando caneta e papel mesmo (o horror!). Uma vez, eu fiz uma lista dos carinhas com quem já tinha, digamos, ficado. Acho que eu dava alguma nota, descrevia o sujeito, o que havíamos feito, essas coisas. A intenção é que eu pudesse me lembrar. Era pra mim. Só que um dia minha irmã descobriu a listinha e veio me pentelhar: "O quê?! Você transou com o #seiláquem?!" Fim da listinha. Eu a rasguei e nunca mais fiz outra. E sim, esqueci tudo. Triste isso.
Pra mim, minha vida sexual só dizia respeito a mim. Não tinha a menor intenção de compartilhar detalhes dela com outras pessoas, nem com as amigas e amigos (eu tinha amizade com muitos meninos héteros). Claro, às vezes as amigxs viam a paquera, imaginavam que eu havia "ficado" com o cara, pediam confirmação, e perguntavam a clássica: "Como foi?" E eu acho que respondia laconicamente com um "legal", e pronto. 
Mas andei lendo que as mulheres fazem isso de avaliar e comparar e fofocar sobre os respectivos (leia a frase seguinte pensando no Sexto Sentido)... o tempo todo. É meio como se elas fossem homens. Só que, pelo que li, elas não fazem isso na mesa do bar, e sim no banheiro. Putz, eu devo andar frequentando os banheiros públicos errados!
E permitam-me outro parênteses. Eu não acredito que todos os homens são assim. A expressão come-quieto deve existir por algum motivo. Na realidade, a maior parte dos caras que conheço não narram suas aventuras (ou falta de) por aí. Meu lindo maridão, por exemplo. Quando o conheci, 23 anos atrás, uma das qualidades que me atraíram nele foi sua ética. Ele não falava mal de ninguém. Ele simplesmente não tinha preconceitos (ainda não tem). 
Bom, pelas minhas historinhas, vocês já devem imaginar o que acho do Lulu: uma grande besteira. Precisa mesmo avaliar os caras? Parece uma forma tão besta de competir. E eu prefiro cooperação à competição, sempre. O Lulu pode ser visto como uma forma de cooperação entre as meninas? Pra indicar os "melhores partidos"? Ou pelo menos pra afastar os piores? Duvido muito. Ainda que existam (existem?) hashtags como, sei lá, #DivulgaFotosÍntimasDaParceira ou #BateEmMulher ou #Estupra ou #ÉUmMascu , é uma hashtage num aplicativo. 
Desculpe, mas avaliação anônima, pra mim, tem muito menos valor que avaliação assinada. E acusações assim flertam perigosamente com injúria e difamação, e parece que já estão rolando alguns processos. E não deixa de ser uma invasão de privacidade divulgar foto e nome de um cara que nem sabe que está sendo avaliado.

Sem falar que o que mais tem é cara fazendo perfil fake pra poder se auto-avaliar. E parece que já existem pacotes pagos pra melhorar seus pontos no Lulu (ou a notícia é fake?). 

Mas por que dar tanta atenção pra um aplicativo cretino? O que mais saltou aos olhos nesta primeira semana brasileira de Lulu foi a choradeira masculina. Agora eles se deram conta que, putz, é chato pra caramba ser xingado em rede social! 
Esse mimimi é, obviamente, uma disputa de poder. Quem avalia é quem está no poder.
Pessoas subordinadas e submissas não avaliam -- elas são avaliadas. É o que a gente vê nas "cantadas" na rua. Homens que assediam mulheres na rua não estão interessados em seduzir alguém (desconhece-se até o momento o caso de um homem que tenha conseguido levar uma mulher pra cama com as palavras "quero chupar sua menstruação de colherzinha"). O que eles querem é mostrar quem manda no espaço público. E comunicar à mulher que seu espaço deve ser apenas doméstico.
É a mesma coisa com essa revolta contra o Lulu. Muitos homens querem manter a avaliação e o julgamento, algo que eles fazem sempre -- que é até esperado que eles façam numa sociedade machista -- como exclusividades masculinas. O mimimi é: como ousa uma mulher me avaliar? Por isso que tantos caras veem o Lulu como uma invenção feminista (sendo que o feminismo não tem nada a ver com isso. Não sei se Alexandra Chong, criadora do troço, é feminista). 
E não vamos nos esquecer de como o Facebook foi criado. Lembram? 
Tá no filme pra refrescar sua memória: Mark Zuckerberg, desgostoso com as mulheres, bêbado, hackeia o site de Harvard e bola um site pra comparar a aparência física de alunas da universidade. Embora as mulheres sintam-se ultrajadas, o site é um sucesso total. O resto é história. 
Ou seja, o Lulu não soa muito diferente da versão original do Facebook. O problema, segundo tantos homens reclamões, não é a avaliação. É que eles sejam os avaliados, não os avaliadores!
Mas claro que isso vai mudar. Já já serão lançados aplicativos pra restaurar a ordem natural das coisas. E claro que essas aplicativos se basearão unicamente na aparência e na competência sexual das mulheres (nenhum homem usará a hashtag #ursinha, pode ser certeza). E claro que muita, muita gente não entende um conceito simples como falsa simetria. É o seguinte: mulher avaliar homem não é a mesma coisa que homem avaliar mulher. É o contexto, stupid! Homens sempre avaliaram mulheres. Assim como um vídeo vazado de um carinha transando não é a mesma coisa de um vídeo de uma garota transando. O carinha não terá a vida arruinada por ser visto fazendo sexo. Já a garota...

Mas, enfim, só porque eu fico impressionada com a total falta de noção de muitos homens, não quer dizer que eu aprove o Lulu. Não o vejo como um aplicativo feminista, não vejo como uma coisa bacana.
Eu não quero imitar o que os homens têm de pior. Aliás, não quero imitar, ponto. Quero subverter completamente o sistema. Quero um mundo em que as pessoas se amem livremente sem serem julgadas. É subversivo demais pra vocês?

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

GUEST POST: PAVOR DENTRO DO ÔNIBUS

A T., de 16 anos, me enviou este relato, que de cara me lembrou o começo do filme Cidade do Silêncio, sobre a onda de estupros seguidos de morte ocorridas na fronteira entre EUA e México.

De madrugada estava lendo um post sobre abusos em linhas de ônibus. O que aconteceu comigo foi um pouquinho pior, mas o tratamento que tive não mudou em nada. 
Sou de uma cidade pequena, onde consequentemente todos se conhecem. Há um ano passei por uma coisa horrível em uma linha de ônibus de minha cidade, que vai de um distrito para o outro.
Em uma quarta feira, fui na casa de minha avó após a escola. Pelas 8 horas da noite peguei um micro-ônibus vazio. Ao entrar, o motorista me pediu para pagar a passagem e sentar nos bancos da frente, antes da roleta, porque ela estava com defeito. Até aí tudo bem, não atinei pra nenhum problema. Só que, depois de eu ter entrado no ônibus, ele passou por três pontos com passageiros e não parou, dois deles lotados de estudantes. Já comecei a estranhar. 
O cara rapidamente começou uma conversa muito esquisita, dizia que várias garotinhas iam à casa dele almoçar, esperavam ele chegar do trabalho, e ainda me ofereceu o número do seu celular caso eu quisesse ligar e pegar ônibus de graça com ele.
Comecei a ficar nervosa, me deparei com meu celular sem bateria, e pela rua não passava uma pessoa. Na mesma hora levantei e pedi pra ele parar no próximo ponto. O motorista disse então: "Você vai pra casa comigo, não vou te deixar aqui."
Eu insisti, comecei a chorar, implorar, e nada d'ele me deixar sair.
Ele continuava com o mesmo papo. Então comecei a gritar e bater nas janelas. Nervoso, ele parou na mesma hora e me deixou sair. Enquanto eu descia, ele insistiu em me oferecer seu número de telefone, isso depois de cinco pontos que pedi para parar. Eu saí desesperada, chorando, tremia tanto que nem conseguia andar direito. Por acaso, parei perto da casa de um casal de amigos dos meus pais, em que o rapaz é policial.
Corri pra lá, contei tudo e eles ligaram pra minha mãe (meu pai estava de serviço nesse dia). Fomos até o ponto final, pedimos informações ao supervisor e checamos quem era o motorista. Ainda descobrimos que ele não podia pegar nenhum passageiro, pois realmente a roleta estava ruim e ele apenas levaria o ônibus para garagem, nem trabalhava naquele trajeto, ou seja, ele já teve más intenções ao parar o ônibus só pra mim. 
Esse supervisor ligou pra garagem e pediu que segurassem o cara lá. Quando chegamos, o crápula estava lá, rindo, e com a cara mais lavada do mundo, dizendo que não era nada daquilo. Na mesma hora o amigo do meu pai não se conteve e bateu nele até que separassem. 
Dali fomos pra delegacia, e lá tive uma decepção enorme. O investigador que me atendeu foi indiferente, me tratou como se eu tivesse culpa, e durante toda a conversa, tentava menosprezar a mim e a minha mãe, como se ela fosse irresponsável por deixar uma menina de 16 anos andar a essa hora sozinha de ônibus. Ele ainda disse que isso só acontece porque "algumas meninas dão ideia pra esses caras". 
Nem preciso falar que minha mãe ficou muito nervosa, e eu também, vendo que meu problema se tornava cada vez maior. No final, eu não aguentei e soltei o verbo, olhei bem na cara do investigador e perguntei: "Você tem filha?". Ele respondeu que sim, e então falei aos prantos: "Imaginou se fosse ela no meu lugar, se isso acontecesse com sua filha, imagina? Você ia gostar? Ia tratar assim?"
Na mesma hora ele ficou sem nenhuma reação. Depois pediu muitas desculpas por algum mal entendido, e nos encaminhou pro Conselho Tutelar. Lá fui bem atendida e descobrimos que o meu caso não foi o primeiro envolvendo funcionários daquela linha de ônibus.
Na conclusão disso tudo, o motorista não foi mandado embora, o investigador apenas ouviu algumas adolescentes, e eu fui só mais um caso. Nessas horas vemos o quão negligentes são as autoridades no nosso país. 
Hoje em dia não me envergonho de dizer que o desgraçado do motorista levou uma bela surra, e se borrou todo com uma arma apontada no meio da fuça. Se não fosse isso, o cara ainda sairia se vangloriando. Sou totalmente contra a violência e justiça com as próprias mãos, mas nesses casos... Ainda aqui na minha cidade o boato que ficou da minha história você pode imaginar.
Bom, só queria contar minha história e testemunhar como nós, mulheres, muitas vezes somos tratadas.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

ACREDITE SE QUISER: AMPLIAR LICENÇA PATERNIDADE É PAUTA FEMINISTA

O Conrado me fez esta pergunta e me mandou uma música muito bacana que ele compôs (e que eu não consigo linkar aqui). 

"Ler seu blog sempre foi uma delícia, e agora que virei pai de uma menina linda seus textos ganharam uma dimensão inspiradora. O que me motiva a te mandar esta mensagem é que me deparei agora com o fato de ter de voltar a trabalhar tão rápido depois de ela ter nascido. Até consegui um tempinho maior do que a semaninha prevista em lei, porque tive a oportunidade de negociar isso. Mas mesmo assim é pouco demais. Adoraria ficar dando carinho à pequena mais tempo junto com minha mulher. E talvez isso fosse importante pra filhota também. 
Então queria saber a sua opinião sobre a licença paternidade. Há algum movimento no Brasil pra estender esse momento (tão legal também) pros homens? No meu caso já passou, já voltei a trabalhar, e beleza, estou curtindo a pequena e ajudando bastante quando chego em casa... Mas acho que brigar por uma licença paternidade maior no país poderia ser bacana na relação pais e filhos."

Minha resposta: Embora o pobre Conrado tenha me enviado este email faz muito tempo (a filha dele já deve estar adulta agora), este é um assunto importante. Então vou falar com todas as letras: é claro que o feminismo é a favor da licença paternidade. Afinal, feministas não são adeptas da ideia ultrapassada de que cabe às mães cuidar dos filhos, e aos pais prover o sustento da família (quem é adepto dessa ideologia são os machistas). Além disso, feministas querem que homens participem de toda a rotina doméstica, a fim de acabar com a divisão sexual do trabalho, uma das bases do capitalismo.
Esses dias li uma citação muito interessante da Heloísa Buarque de Hollanda, em que ela desmente esse mito (ridículo) de que feminista é anti-homem. O que ela diz é que o feminismo não quer destronar o rei pra colocar no lugar a rainha. O feminismo quer é acabar com a monarquia. Bonito, não?
Ou seja, o problema não é o homem, e sim o sistema de dominação em que se baseia nossa sociedade. E esse sistema insiste que a criação dos filhos e os cuidados domésticos são deveres da mulher, mesmo que a maior parte das mulheres hoje trabalhe fora. Mas é até mais do que isso -- o sistema prega que criar filhos é algo individual, privado, nunca coletivo. Ai do Estado se quiser interferir na propriedade privada -- é isso que são considerados os filhos de um casal! Basta um governo sugerir que palmadas "educativas" não são educativas coisa nenhuma, e que fazem muito mais mal do que bem, que um monte de gente se levanta para gritar que suas liberdades individuais estão sendo ameaçadas. 
Mas e a liberdade individual de uma criança não ter que apanhar? Esse pessoal só quer liberdade individual pra poder continuar sendo violento e opressor dentro do seu castelo, do seu feudo. É por isso que a família ainda é um espaço tão violento. É sempre a mesma lógica de "briga entre marido e mulher, ninguém mete a colher".  
E a gente está tão acostumada a este único modelo que nem para pra pensar que um outro mundo é possível. Um mundo, por exemplo, em que pessoas não precisem trabalhar 40 ou 44 horas por semana. Um mundo em que as pessoas possam ter mais tempo pra criar os filhos, pro lazer, pra vida. Um mundo em que slogans como "o trabalho enobrece o homem" (e repare: só o homem) sejam questionados.
Em outubro tive a honra de dividir uma mesa sobre trabalho, direito e gênero na UFPB com a Amelinha, incansável lutadora por justiça para as vítimas da ditadura militar. E ela contou uma anedota incrível. Disse que foram as feministas que conquistaram a licença paternidade no Brasil. 
Quando algumas feministas propuseram isso, na década de 1980, muitas companheiras trabalhadoras recusaram. Disseram que "homem dentro de casa é um desastre". Porque o homem na sociedade machista se transforma num outro filho, que exige cuidados constantes quando está no ambiente doméstico (a figura do sujeito que não se levanta nem pra pegar um copo d'água ainda existe). 
Todxs nós já ouvimos mulher reclamando que tem que cuidar das crianças, do marido... Porque o marido é um crianção que não aprendeu a se cuidar sozinho. (Ainda hoje existe essa mentalidade: segundo uma pesquisa do Data Popular de 2013, 64% das brasileiras responderam que marido dá mais trabalho do que ajuda em casa. 98% das entrevistadas disseram que, além de trabalhar fora, elas precisam fazer as tarefas domésticas. E só 29% disseram que tem ajuda dos maridos. Entre os homens casados, só 5% disseram cozinhar ou lavar louça, só 5% limpa móveis e varre, só 1% lava e passa roupa).
Mas, apesar de tudo, as feministas insistiram com essa ideia louca da licença paternidade. Foram falar com Mario Amato, então presidente da FIESP, quando a FIESP tinha muita força (eu me lembro sempre do Amato dizendo, nas eleições de 1989, aquelas fatídicas entre Collor e Lula, que se Lula ganhasse, 800 mil empresários iriam deixar o país). As feministas lançaram a ideia da licença paternidade pro Amato, que respondeu: "Vocês estão loucas! Vocês querem acabar com o capitalismo!"
Amelinha conta que sim, queriam (pisc, pisc), mas não era essa a questão. Um estudo da Unicamp na época já mostrava que o custo com os dias não trabalhados durante uma Copa do Mundo era maior que seria o custo com os dias não trabalhados durante a licença paternidade. Finalmente, a Constituição de 1988 aceitou aumentar a licença paternidade de um para cinco dias. Ainda é pouco.
Só quatro países no mundo não têm qualquer tipo de lei que regulamenta licença maternidade paga: Libéria, Suazilândia, Papua Nova Guiné, e... os Estados Unidos. Há algumas variações entre estados (na Califórnia, até casais do mesmo sexo têm licença), mas, em geral, uma lei de 93 permite até doze semanas de licença para que a trabalhadora possa cuidar do bebê sem perder o emprego, mas sem receber salário. 
No Japão a licença é de até um ano, e pode ser dividida entre os pais, que recebem 60% da remuneração garantida.
Parece que a República Tcheca oferece licença maternidade de três anos, que também pode ser usada por homens. Durante esse tempo, as famílias recebem ajuda do Estado. Na Áustria as mães podem escolher entre um e três anos de licença maternidade, com bolsa do governo.
Já a Suécia garante 16 meses de licença paga, com 80% do salário, e o custo é dividido entre Estado e empresa. Desses 16 meses, pelo menos dois precisam ser tirados pelo pai. Partidos de esquerda na Suécia fazem pressão para que esses meses sejam divididos igualmente entre mãe e pai (perceba: a direita defende o Estado mínimo e o corte de todos os impostos; portanto, é contra licença paternidade. É contra até licença maternidade!). 
Esta notícia diz que o excelente Instituto Papai faz campanhas para ampliar o tempo de licença, e que há na Câmara Federal várias propostas de aumentar a licença paternidade. A mais adiantada é da senadora do Ceará Patrícia Saboia, que aumentaria a licença paternidade para quinze dias corridos. Ainda está sendo discutido se o benefício valeria também para pais adotivos, e para pais homossexuais.
Quinze dias? Eu acho é pouco. Nossa sociedade machista não me parece ainda pronta para conceder o mesmo tempo de licença para mães e pais. Só ter o pai em casa, sem que ele colabore nos cuidados da casa e do bebê, não ajuda muito. Mas ampliar o tempo de licença pode também levar um homem educado num ambiente machista a criar vínculos maiores com a criança e, assim, querer cuidar dela. É certo que os pais precisam se envolver muito mais na criação dos filhos. E ter mais responsabilidades também. Como diz a Beatriz, ninguém nunca pergunta "Cadê o pai dessa criança?". É sempre a mãe.
Quanto às consequências econômicas de ampliar a licença paternidade, é a sociedade que define suas prioridades e como quer gastar dinheiro e recursos. 
Até porque a desculpa do empresariado para não contratar mulheres porque, como disse um leitor, "as mulheres vivem engravidando" (ha ha, a média atual é de 1,9 filho por brasileira!), cai por terra se o pai dividir os cuidados dos filhos com a mãe. E é isso que eu como feminista quero: pais mais presentes, mais carinhosos, que encarem que "ser másculo" é criar seus filhos com amor e respeito. Tenho certeza que o Conrado é um desses homens com H.