quarta-feira, 29 de novembro de 2000

CRÍTICA: ERIN BROKOVICH / Talento em fórmula

Se você olhar bem, verá que Julia Roberts nem é tão bonita assim. Mas um milagre acontece quando ela sorri: seu rosto se ilumina e ela se torna deslumbrante. Então, veículo que se preze para a Julia inclui várias oportunidades para que ela nos desarme com seu sorriso. Em “Erin Brokovich, Uma Mulher de Talento”, que entra em cartaz no Estado hoje, não é diferente. Aqui ela pode mostrar todos os seus dentes.

O filme mostra como, na Terra das Oportunidades, uma jovem que sustenta três filhos sozinha, desempregada e pobre, pode exigir um cargo numa firma de advocacia e, enquanto arruma os arquivos, garimpar um caso que lhe renderá a maior indenização individual da história americana. Essa fábula aconteceu de verdade, com variações, e a própria Erin versão carne e osso aparece em uma ponta como garçonete.

Nada será fácil na saga de Erin, mas sabemos que ela alcançará seus objetivos. É a típica fórmula que faz com que o espectador deixe a sessão sentido-se bem, acreditando na grandeza humana. E na força da grana, já que a personagem fala em dinheiro de cinco em cinco minutos.

Julia está bem, desfila inúmeros modelitos, todos com decotes generosos, como se a Linda Mulher reencarnasse em alguém mais brega. Ela pode até conseguir uma indicação para o Oscar, se a Academia lembrar-se dela no fim do ano (o que é difícil). Se for nomeada, será por uma cena: aquela em que ela está dirigindo e seu namorado lhe informa, via telefone celular, que sua filhinha falou a primeira palavra. E não foi “Hollywood”, foi “bola”.

Erin tem sérios problemas com o namorado super gentil, que não quer dividi-la com o trabalho. Ele vive pedindo para que ela abandone o caso. Pensei que iria chegar um ponto em que Erin lhe dissesse, “Calma aí, meu, minha história ainda vai virar um filme com a Julia Roberts”. E este talvez seja o maior problema: a gente nunca, nem por um segundo sequer, se esquece que o filme é com, de, e para Julia. Ela merece. Mas, e nós?

segunda-feira, 27 de novembro de 2000

CRÍTICA: A HISTÓRIA REAL / Um Lynch careta

Isso que dá não passar produções mais sérias numa cidade. O pessoal fica mal acostumado. Vai ao cinema pra zoar. Não pode ser que eu seja tão azarada a ponto de me sentar do lado de espectadores que não param de papear e fazer gracinhas. Ocorreu com "Gosford Park" e agora, com "História Real". O casal achou que todos os silêncios do filme – e eram muitos – deveriam ser preenchidos com suas vozes. E nem conversavam sobre o drama. Era um tal de "Você tá com frio?" (a cada cinco minutos), "um pouco", "deixa eu te aquecer, ho ho ho". No final, o sujeito deu seu parecer sobre a película que tinha presenciado, pero no mucho: "Que sem graça!". É, gracioso foi o nhenhenhém dos pombinhos. É pra isso que vamos ao cinema, certo?

Com tantas distrações, não foi fácil me envolver com "História Real". Mas, pra pessoas com um mínimo de sensibilidade, é um filminho singelo, impossível de não se gostar. O título original, "The Straight Story", tem mais a ver e traz uma série de ambigüidades. Primeiro, porque o personagem principal, no qual esta produção se baseia, se chamava Straight. Depois, porque esta é realmente uma trama direta, sem subterfúgios. E, finalmente, "straight" lembra algo sisudo, mainstream, "normal". Ou seja, tudo que o diretor David Lynch não é.

Só pra efeito de comparação, "Veludo Azul", uma de suas obras mais célebres, mostra de cara vermes em ação na terra. "História Real" abre com um céu estrelado. Não há aqui nenhuma das taras habituais de Lynch, como anões, máscaras de gás e membros decepados. Em seus outros filmes, Lynch expôs o que estava por baixo do americano comum e revelou seus podres. Em "Real", todos os personagens são bonzinhos e humildes. Seria quase uma celebração da América, se a maneira com que Lynch faz a narração não fosse tão simples. Parece um filme iraniano, só que sem crianças. Afinal, a velhice e o céu estrelado são universais.

"Real" trata de Straight, um homem de 73 anos que mora com a filha ligeiramente deficiente mental. Ele está mal, não consegue andar direito, tem catarata, sabe que a morte se aproxima. Recebe a notícia que seu irmão, que vive longe e com quem não fala há dez anos, sofreu um derrame. Decide ir visitá-lo, mas não tem carteira de motorista. Adota como meio de transporte um aparador de grama. Pior é que isso aconteceu de verdade: um sujeito passou seis semanas na estrada sentado num tratorzinho, "correndo" a dez quilômetros por hora. Se Lynch não estivesse sendo sério, eu diria que ele estaria sendo irônico. As imagens da faixa descontínua da estrada, com a câmera passando devagarzinho por cima delas, contrastam radicalmente com todas as cenas "on the road" vistas até hoje, inclusive as de "Coração Selvagem" e "A Estrada Perdida", outras obras tipicamente lynchianas. Straight está na contramão da história, onde a alta tecnologia impõe pressa.

No caminho, Straight encontra uma adolescente grávida fugindo de casa, e a convence a voltar à família (o que é bizarro, vindo do homem que fez "Twin Peaks"). Conhece também um bando de ciclistas, um padre, um casal que lhe oferece carona, um velhinho com quem troca confidências sobre a Segunda Guerra. Nenhum anão. As cenas mais estranhas, que mesmo assim englobam pessoas "normais", chegam quando Straight se depara com uma mulher desesperada por ter atropelado um veado. É o décimo terceiro bambi que ela mata em seu percurso pro trabalho, e ela adora animais. Não consegue entender de onde eles vêm de repente. Straight assa o veado e outros surgem, numa espécie de funeral. Ó, tudo bem, um dos irmãos mecânicos que consertam o aparador do protagonista tem algo suspeito no queixo. Será um bandaid? Um implante de pele? Estes são os únicos momentos a nos lembrar que o autor desta fábula é o Lynch.

CRÍTICA: O BARATO DE GRACE / Graça engajada

Conheço pouca gente mais despreparada do que eu para falar de um filme como “O Barato de Grace”. Imagina, é a história de uma inglesa de meia-idade que, ao acabar de enviuvar, percebe que não tem um tostão e resolve plantar maconha em sua estufa para se virar. And I with that?, que é a tradução de um aluno para “e eu com isso?”. Eu, que não sou britânica, que ainda demoro pra entrar na menopausa ou pra perder o maridão (noc-noc na madeira) que não consigo plantar um pé de feijão, e que nem sei como se escreve cannabis sativa, não tenho grandes pontos de identificação com o drama de Grace, a protagonista. Tudo bem, tampouco me identifico com os personagens de “Shrek” ou “Planeta dos Macacos”, e mesmo assim fui vê-los. Farei um esforço para falar de uma realidade tão distante da minha.

Até porque “O Barato” é bonitinho. É inofensivo, na linhagem das comédias britânicas que tratam de tabus de forma leve e descontraída, como “Ou Tudo ou Nada” (temas proibidos: impotência, desemprego, strip tease masculino) e “Billy Elliot” (homossexualismo e balé; ignorância do proletariado). Só que é menos engraçado. Parece que tudo é calculado para produzir o mínimo de risadas. Por exemplo, a seqüência em que uma Grace engomadinha vai a Londres vender sua mercadoria, oferecendo-a para “tipos suspeitos”, não é divertida. Pelo contrário, é constrangedora. Fiquei com pena da vovó traficante, e duvido que fosse esta a intenção.

Ou talvez seja minha falta de experiência no quesito drogas que faça com que eu não ria nas cenas de duas velhinhas gargalhando sem parar e sem motivo após tomar um chá de cânhamo. Vai ver que quem usa o bagulho acha a trama hilariante. Não sei não. Já presenciei amigos meus fumando e notei que um dos efeitos da erva é um ataque de riso incontrolável. Outro é a fome que bate depois. Mas o fato de eu saber disso não torna o assunto cômico.

Bom, sempre existe a chance de o objetivo de uma comédia não ser o humor, e sim exibir um slice of life, um pedacinho da vida. Neste sentido, “O Barato” está melhor servido, principalmente por contar com a presença de Brenda Blethyn no elenco. Brenda é estupenda, como quem teve o privilégio de ver “Segredos e Mentiras” pode atestar. Seu momento mais tocante ocorre quando ela conversa com a amante do marido, e ela verifica que as opiniões sexuais em torno do falecido são conflitantes. Ela convence tanto como uma viúva desprotegida quanto como uma mulher segura e pronta pra outra. Os demais atores também estão ideais, em especial o francês Tcheky Karyo (alguém lembra de “A Grande Arte”?), que faz um poderoso chefão. E gostei do hippie que, apesar das vestes, é mais nerd que qualquer homem de negócios. Pena que, no final, tudo acabe em chope.

Pelo que entendi, “O Barato” claramente defende a legalização da maconha. Ele mostra que os traficantes têm coração de ouro; que, do ponto de vista geriátrico, um baseado é positivo, e que a polícia não vê nada de mais. Há até uma opinião médica a respeito. Agora que se está provando que a principal porta de entrada para drogas mais pesadas é o álcool, não a cannabis, quiçá sua liberação não seja tão má idéia. Pra mim, não faria a menor diferença. Mas quem sou eu? Segundo minha irmã, sou a única pessoa no mundo a nunca fumar unzinho (o maridão é outro). Ou seja, uma anormal. Não sou exatamente da geração saúde, mas acho difícil condenar tabaco e dizer que outras substâncias tragáveis são ótimas, porque são “naturais”. Ahn, meleca é natural, e nem por isso recomendo ingeri-la. Ao mesmo tempo, sou do tipo viva-e-deixa-viver. Cada um vive como quer. E cada um ri do que quer. Se bem que, pra rir do “Barato de Grace”, só mesmo estando muito locão.

domingo, 26 de novembro de 2000

MENÇÕES HONROSAS DE UMA DÉCADA NEM TANTO

Chego aqui à minha última lista – é a última, prometo – relativa à década que passou. Depois de classificar os melhores e piores, lembro das menções honrosas. São todos filmes dignos, instigantes, memoráveis, que, por um triz, não conseguiram tornar-se grandes como aqueles que figuram entre os nove mais na minha modesta e muito particular opinião (que são, em ordem alfabética: "Beleza Americana", "Ed Wood", "Fargo" [foto], "Os Imperdoáveis", "Pulp Fiction", "Silêncio dos Inocentes", "Um Sonho de Liberdade", "Trainspotting" e "Truman Show").
Nas listas anteriores, me esqueci de dizer que, apesar das produções inclusas serem faladas em inglês, o espanhol "Tudo Sobre Minha Mãe" é fantástico, e que, se "Proposta Indecente" não for um dos mais lastimáveis da década, então não sei mais o que foi. Só um parênteses: nesta comédia romântica (eu ri bastante), o Woody Harrelson acusa sua esposa, Demi Moore, de querer ir pra cama com o sujeito que lhe oferece um milhão de dólares. O detalhe é que o milionário em questão é o Robert Redford que, mesmo enrugado, ainda dá um bom caldo. Este filme também ressuscitou um velho fantasma – que as pesquisas não devem ser levadas a sério. Algum jornal fez um levantamento entre brasileiras e descobriu que 80% recusariam um milhão de verdinhas para passar uma noite com o Robert. Tá, tá, me engana que eu gosto. Eu até consideraria pagar algo ao Robert se ele me concedesse a honra de, sei lá, me deixar conferir se ele é loiro mesmo, mas vamos mudar de assunto Às menções honrosas, portanto.
Arrasa-quarteirões que não venderam sua alma: "Exterminador do Futuro II – O Julgamento Final" (91), "Titanic" (97), "Homens de Preto" (97), "Matrix" (99), "O Sexto Sentido" (99; foto). Ou: só porque fizeram fortuna não significa que são ruins. Adorei estas superproduções. "Titanic" é ótimo entretenimento, na mesma linha de "Exterminador II", também do Cameron, que ainda por cima faz pensar um pouquinho. "Matrix", então, leva a montes de reflexões, enquanto "Sexto Sentido" é romântico e aterrorizante. E "Homens de Preto" faz rir do começo ao fim. Tem uma das minhas falas preferidas, mesmo que emprestada de clássicos como "A Noiva de Frankenstein". A personagem que trabalha no necrotério declara "Odeio os vivos". Dá pra discordar dela?
Estranhos, mas bons: "Na Corda Bamba" (96) "O Doce Amanhã" (97), "Na Companhia dos Homens" (97), "Boogie Nights – Prazer sem Limites" (97; foto), "Felicidade" (98). Todas produções roteirizadas por diretores de primeira ou segunda viagem, no máximo. Todas independentes, com idéias e ritmos que vão contra a corrente. Mais próximo da idéia de filme de autor, impossível. Se você não viu algum desses, está na hora de ver. Mesmo que você não se apaixone, todos deixarão o gostinho de algo novo. E daí que o gosto seja amargo? Nem tudo na vida é açúcar. Mas prepare-se, que eles são diferentes. Fãs de Stallone não devem chegar perto. São todos americanos (menos "Amanhã", que é canadense), mas procure na seção de "cinema europeu" na sua locadora mais próxima.
Eles vivem! "A Lista de Schindler" (93), vinte minutos de "O Resgate do Soldado Ryan" (98; foto), "Cassino" (95), "Maridos e Esposas" (92), "Short Cuts – Cenas da Vida" (93). Sim, há esperança pra quem pensava que os diretores fundamentais haviam morrido (Kubrick morreu literalmente; Polanski e Coppola, figurativamente – o autor de "Apocalipse" e "O Poderoso Chefão" rendeu-se a quinquilharias como "Jack" e "O Homem que Fazia Chover" nos anos 90). Sem dúvida, eles não são mais os mesmos, mas ainda há a sombra do que já foram. Spielberg consagrou-se com a conquista do Oscar por "Schindler" e "Soldado Ryan". Scorcese cometeu pecados como "Cabo do Medo" e "A Época da Inocência" mas redimiu-se, em parte, com "Cassino". Woody Allen, longe de sua melhor fase (pra mim, sua última obra-prima é "Crimes e Pecados", de 89), e bem no meio do seu escândalo matrimonial com Mia Farrow, conseguiu encantar seus fãs com as tiradas inteligentes de "Maridos e Esposas". E Altman, bom, Altman teve uma década de 80 morta, então ele até que se recuperou bem nos 90, com originais como "Short Cuts" e "O Jogador", embora "Prêt-à-Porter" seja sofrível. Este devia constar da lista dos piores.
Humor inglês pra qualquer um ver: "Para o Resto de Nossas Vidas" (92; foto) e "Quatro Casamentos e Um Funeral" (94). Dois temas difíceis, ou melhor, três: AIDS, cerimônias de casamento e enterros. E não é que esses filmes ingleses tratam desses assuntos espinhosos com pouca pompa e muito humor? "Pete’s Friends", o título original do primeiro, é uma espécie de "O Reencontro", só que mais engraçado. E "Quatro Casamentos" não tem só a carinha bonita do Hugh Grant – que, cá entre nós, já seria suficiente (vide "Um Lugar chamado Notting Hill"). Tem ironia, diálogos hilariantes, personagens bem-delineados. O que mais se pode esperar de uma comédia?
Filmes noir fora de época: "Seven – Os Sete Pecados Capitais" (95), "Os Suspeitos" (95), "Los Angeles, Cidade Proibida" (97; foto), "Uma Outra História Americana" (98). Não sei se podem ser chamados de noir, mas são tramas pesadas e criativas. "Seven" e "Os Suspeitos", além de thrillers interessantes, ainda trazem a sensação Kevin Spacey. "Los Angeles" tem todo aquele clima dos policiais dos anos 40 – ah, e também conta com o Kevin, que sucede em roubar as cenas de um elenco fascinante. Em "Uma Outra História", o protagonista é interpretado por outro grande ator da década: Edward Norton. Tirando a fotografia em preto e branco, este filme não tem tanto da atmosfera noir. No entanto, é ideal para nos levar a pensar sobre quanto os pais influenciam os filhos.
Atores que viraram autores: "Dança com Lobos" (90) e "Quiz Show" (94; foto). Kevin Costner dirigir um épico pró-indígena foi uma grata surpresa. Eu chorei compulsivamente quando matam o lobo dele. Já o favorito do pessoal, "Coração Valente", também feito por um ator – Mel Gibson –, eu nunca gostei muito. "Quiz Show" ninguém conhece, embora tenha concorrido a alguns Oscars. Leva a direção do Robert Redford, aquele loiro maravilhoso que precisa pagar pra transar em certos filmecos. Em épocas de Show do Milhão, a história de um concurso fraudado de perguntas e respostas torna-se ainda mais pertinente.
Criança também é gente: "O Rei Leão" (94) e "Babe, O Porquinho Atrapalhado" (95; foto), ou devo dizer que os animais também são filhos de Deus? Estes dois filmes infantis são mais honestos e menos engraçadinhos do que outros. "O Rei Leão", além da animação inspirada, é praticamente Hamlet para crianças. E o australiano "Babe", sobre um porco que vira cão pastor, é de emocionar e fazer a gente boicotar carne suína por vários meses. "Babe" é meu recorde também. Nunca um filme me fez verter tantas lágrimas.Como era verde meu vale - Concorrentes que não ganharam o Oscar de 94: "O Piano" (foto), "Em Nome do Pai", "Vestígios do Dia", "O Fugitivo", "Lances Inocentes". Pelo visto, 93 não foi um ano de vacas tão magras quanto o restante da década. O neozelandês "O Piano" alcança uma façanha inédita: a Holly Hunter muda. Brincadeirinha. Este drama erótico merece todas as honras, assim como o irlandês "Em Nome do Pai", um dos poucos filmes politicamente engajados dos 90. "Vestígios do Dia", "Retorno a Howards End", "Razão e Sensibilidade", são tramas literárias brilhantemente atuadas, que não agradam os paladares mais apressadinhos. Ou você adora ou detesta. Eu adoro. Pra quem prefere a tendência da montagem picotada, "O Fugitivo", com o Harrison Ford, é uma ótima pedida. "Lances Inocentes", ou "À Procura de Bobby Fischer" (teve mais de um título), é obrigatório pra quem ama o xadrez. Ou pra quem queira refletir sobre como ambições paternas afetam os pimpolhos.
Quando Hollywood dança: "Evita" (96). Tudo bem, é aqui que minha reputação (???) vai pro brejo. Boa parte dos críticos odiou "Evita". Eu acho que é porque eles são jovens demais e nunca viram musicais. Ou então porque detestam a Madonna. "Evita" não tem diálogos, só canções e coreografias. Quem foi assistir ao filme sem saber disso se decepcionou. Convenhamos: o público de hoje não está habituado a musicais. É trágico, mas o pessoal nunca ouviu falar em Fred Astaire ou Gene Kelly. Sob este ângulo, o megasucesso da Broadway pareceu ultrapassado. No entanto, onde mais podemos ouvir "Não chores por mim, Argentina" ou presenciar uma primeira dama, uma santa em seu país, serchamada de vadia? Dá pra notar que "Evita" foi escrita por ingleses...
Poderosas: "Os Imorais" (90), "Thelma e Louise" (91; foto), "Instinto Selvagem" (92), "Melhor é Impossível" (97). "Thelma e Louise" é um filme francamente feminista. Aí vem um desavisado e acha desnecessário se fazer algo anti-machista numa época de direitos tão iguais. Que direitos iguais, cara pálida? Às vezes você não se sente em plenos anos 50, pré-revolução sexual? Bem-vindo(a) ao clube. "Os Imorais" exibe um trio de desonestos, com um John Cusack atormentado pela mãe e esposa. "Instinto Selvagem", mais conhecido por aquela cena da cruzada de pernas da Sharon Stone, já foi acusado de homofóbico, de chauvinista, de tudo e mais um pouco. O que não faz muito sentido, pois a Sharon tem todos os homens do filme comendo na palma da sua mão. Ela tem a força. Em "Melhor é Impossível", é a influência de uma garçonete (e de um cão, é verdade) que regenera o Jack Nicholson.
Vou parando por aqui. Daqui a pouco acaba a próxima década e eu ainda não terminei a lista dos filmes dos 90. Atrasada, eu?

OS PIORES DA PIOR DÉCADA DE 90

Após minha lista dos nove melhores filmes da década de 90, seguida pela lista das menções honrosas, chega a vez das menções horrorosas. Ou seja, as piores produções faladas em inglês desta década que não deixou saudades. São muitas, e por isso decidi agrupá-las em categorias. Se antes ofendi alguém por omissão, agora certamente serei ofensiva por inclusão. Escandalosamente ofensiva.
Prepare-se.
Categoria "Fé demais não cheira bem":
"Ghost – Do O
utro Lado da Vida" (90) e "Amor Além da Vida" (98)
Devem haver outros representantes esquecidos nesta categoria que prega que a maior paixã
o é aquela que já morreu. Faz sentido. Idealizamos os que passaram desta para melhor, inclusive os políticos. Até o Serjão e o filho do ACM viraram santos. Por que esperar que o fogo ardente se apague e que tudo acabe num divórcio litigioso se podemos amar nosso parceiro platonicamente pelo resto de nossa existência (e além)? É bem isso que fazem esses filmecos, abusando sempre do moralismo, do melodrama, do açúcar e da nossa boa fé.Categoria "Spielberg já foi melhor":
"Hook, A Volta do Capitão Gancho" (91) e "Amistad" (97). Eu sempre preferi o Spielberg infantilóide e hiperativo... até ver "Hook". Nos 90, ele enfim ganhou o Oscar, com "A Lista de Schindler" e os brilhantes 20 minutos de "O Resgate do Soldado Ryan", mas manteve-se longe do encanto de "ET" e "Caçadores da Arca Perdida". "Amistad" traz o politicamente correto Spielberg anti-escravidão neste que tem de ser seu pior filme até hoje. O tema é nobre; a realização não. "Hook" ele fez mesmo pra ganhar dinheiro e pra assumir de umavez por todas seu lado Peter Pan. Não precisava. A gente já desconfiava.
Categoria "Quanto mais idiota melhor"
Pra quem gosta de profundidade filosófica do tipo "a vida é como uma caixa de chocolates. Você nunca sabe o que vai encontrar dentro", "Forrest Gump, O Contador de Histórias" (94) é um prato cheio. Nunca vou me esquecer de quando fui ver este drama vencedor do Oscar, e a sessão estava lotada de escoteiros e bandeirantes. É a espécie de filme feito sob encomenda pra eles. E pro público americano, que se identificou de corpo e alma com um homem de QI negativo. Tudo em "Forrest Gump" é mastigadinho, explicado e repetido dez mil vezes para que ninguém se perca. Se existisse uma "história dos EUA for dummies", este seria o volume um.

Categoria "Pedras no Stone": "JFK" (91) e "Reviravolta" (97).
Quando a crítica americana Pauline Kael anunciou sua aposentadoria, alguém quis saber qual a maior vantagem de seu retiro. A crítica, já velhinha mas não senil, disparou: "é nunca mais ter de assistir a um filme do Oliver Stone". De fato, o Stone é dose. Tento evitá-lo o máximo possível. "JFK" não é um filme. É uma tese de mestrado onde Stone trata de convencer o mundo que uma enorme conspiração matou seu adorável presidente. "Reviravolta" é menos ambicioso, mas nem por isso menos pior. "Assassinos por Natureza" (94) não é tão ruim. Sobre os outros que Stone filmou nesta década, posso dizer orgulhosamente que não os vi.
Adendo: cinco anos depois de escrever isso, revi JFK. Agora sou fã do filme.

Categoria "Pior Filme Estrangeiro": "A Vida é Bela" (98)
Fui quase apedrejada em praça pública ao escrever que a comédia dramática do Benigni era uma bomba. Me chamaram de ufanista, disseram que eu estava injustamente torcendo por "Central do Brasil". Pois bem. O italiano ganhou o Oscar de melhor ator na época e fez aquele teatrinho de subir nas cadeiras e discursar em inglês macarrônico. Se o filme não houvesse caído no esquecimento, Hollywood estaria corando de vergonha até agora. Um jornalista disse que a Academia, após perceber a besteira que havia cometido, se portou como a amante que se espanta ao notar com quem fora pra cama na noite anterior, quando estava embriagada. Hollywood não quer ver o Benigni nem pintado.

Categoria "Narcisista é a Mãe":
Uma categoria dedicada àqueles que não desviam o olhar do próprio umbigo e fazem filmes para se auto homenagearem. É o caso de "O Espelho tem duas faces" (96), onde Barbra Streisand assume que se ama de paixão; e "O Guarda-Costas"(92), que também leva a honra de conter o pior penteado dos 90, com Kevin Costner e Whitney Houston subindo às estrelas (depois, no auge do amor próprio, Costner filmou "O Mensageiro". Eu não vi, graças a Deus, mas me contaram que ele chega a declarar "I love my ass" – algo como "amo meu traseiro" ou "amo meu asno", dependendo da interpretação). "Psicose" (98), a refilmagem de Gus Van Sant para o clássico de Hitchcock, é outra egotrip. E "Showgirls" (95), amplamente reconhecido como a ruindade da década, exibe a vaidade suprema do diretor Verhoeven e seu roteirista Eszterhas. Riu-se bastante desta brava gente. Pelo menos eles tornaram os anos 90 mais divertidos, apesar de mais sofríveis.
Categoria "Decifra-me ou Devoro-te":
Há quem adore estes filmes de arte ultrapretensiosos. Eu, felizmente, não sou uma dessas vítimas. Gosto do Cronenberg dos anos 80, mas não me divirto vendo gente entediada transando nos escombros de um acidente de trânsito, como ocorre em "Crash – Estranhos Prazeres" (96; foto) (prefira "Christine, O Carro Assassino", esta sim uma boa discussão sobre o relacionamento sexual entre homem-máquina), ou encarando uma barata gigante imitando máquina de escrever em "Almoço Nu" (91). Tampouco me tornei uma pessoa melhor por ter suportado "Além da Linha Vermelha" (98) sem roncar. O mesmo não ocorreu em "A Última Loucura do Rei George" (94) – neste eu dormi sem dó. Depois disso, evitei filmes com temas monárquicos. Nada, nem Kevin Spacey, salva "Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal" (97), do Clint Eastwood. E nada, nem o Edward Norton, salva "Clube da Luta" (99). Aliás, não sei se este último se enquadra na categoria filmes de arte. Deve haver uma legião de psicanalistas tentando entender por que os homens amam esta queda livre. Por favor, se alguém decifrar o enigma, avisem-me.
Categoria "Ueba! Vamos explodir a Casa Branca!"
É com um carinho todo especial que dedico esta categoria aos blockbusters dos anos 90, que foram mais caros, mais burros, mais barulhentos e mais fascistas do que qualquer coisa que se teve notícia anteriormente. É verdade que "Independence Day" (96), "Armageddon" (98), "Impacto Profundo" (98), "True Lies"(94) (o machismo no seu clímax), e "Godzilla" (98) fizeram o que toda a humanidade tinha vontade de fazer, que é despachar os Estados Unidos pro espaço, mas nem esta ideologia positiva compensa o sofrimento que esses filmes-catástrofes infligem a seus espectadores. Perto deles, "Anaconda" parece até simpático.
É isso aí, pessoal. Espero ter ofendido todos os gostos. Numa lista destas, a gente sempre comete a injustiça de se olvidar de algum filme importante. Aguardo cartas e e-mails de ódio. Favor enviar os carros-bomba pra redação.

MELHORES DE 90 SÃO SÓ NOVE

Como agora é final de ano, final de século, final de milênio (apesar das comemorações passadas antecipadas), final de tudo, menos do mundo, decidi fazer algo quase tão tradicional quanto peru de natal (como estamos rimando hoje): uma lista. Mas, antes de começar, faço minhas as palavras do meu irmão para explicar porque não gostamos de listas.1.elas tendem a ser estúpidas
2.estão na moda por causa do filme e livro "Alta Fidelidade"
3.há sempre a inclusão de algum item para chocar
4.aborto eutanásia pena de morte ratinho
5.elas vão ficando repetitivas
6.e dizem as mesmas coisas de novo
7.são meio redundantes
9. e às vezes nem sabem contar
Isto posto, vamos à lista dos melhores filmes da década de 90. Só incluí títulos falados em inglês. Se não fosse este critério, poderia aceitar "Central do Br
asil" e uma ou outra produção iraniana como "Filhos do Paraíso" e "Gosto de Cereja". Vamos em ordem alfabética, que pelo jeito é mais fácil que os malditos números.
Beleza Americana (99) – quando o filme foi lançado, todo mundo se curvou. Com a badalação e a vitória no Oscar, os críticos passaram a falar que não é tudo isso não. É sim. Uma excelente comédia – com toques dramáticos, mas você ri bem mais do que chora – sobre a crise dos 40, a tragédia da classe média, e os valores universais, mais do que americanos. E tem o Kevin Spacey que, junto com o Edward Norton, foi a grande sensação dos 90.
Ed Wood (94) – Se você não viu esta obra, tudo bem. Ninguém viu. Porém, a história mezzo verídica do pior diretor de cinema de todos os tempos e sua relação com Bela Lugosi (quem? Uma espécie de Boris Karloff. Quem? Eu desisto) é uma declaração de amor à sétima arte e não pode ser ignorada. O diretor Tim Burton faz de um bode expiatório um visionário. A cena (fictícia) em que o pior encontra o melhor, Orson Welles, já vale o filme. É inevitável: quem ama cinema apaixona-se por "Ed Wood".
Fargo (97) – pra ficar num lugar comum, esta é a obra-prima dos irmãos Coen. Agora, o choque: foi só isso que eles fizeram de ótimo nesta década ("Barton Fink" e "Ajuste Final" são bons; o resto é ruim). Esta comédia de humor negro não é para todos os gostos. Não é qualquer um que vai se entusiasmar com as trapalhadas de um marido que contrata dois palermas para sequestrar sua própria esposa. E, lá pelo meio, entra uma detetive grávida. Tudo isso e mais o sotaque charmoso (pra ser educada) do pessoal de Minnesota transformam "Fargo" em entretenimento de primeira.
Os Imperdoáveis (92) – Definitivamente não sou uma das fãs incondicionais do Clint Eastwood, nem acho que este anti-western o redima das besteiras que fez, faz e fará. Aliás, entre os mais de 20 filmes dirigidos por ele, eu gostei de três: "Perversa Paixão", "As Pontes de Madison" (quiçá "Coração de Caçador") e, claro, "Imperdoáveis". Este último realmente é magistral.

Pulp Fiction, Tempo de Violência (94) – Não tem jeito, Tarantino marcou a década. O ex-atendente de locadora dirigiu três filmaços: "Pulp Fiction", "Cães de Aluguel" e "Jackie Brown". É verdade que também esteve envolvido em bombas como "Um Drink no Inferno" e "Grande Hotel", o que tira um pouco de seu brilho. A trama pesada e original de "Pulp Fiction" (com uma cena de estupro que está para os homens da década de 90 o que "Amargo Pesadelo" significou nos 70), além de ressuscitar John Travolta, foi depois "homenageada" – ou seja, copiada – até dizer chega. Mas isso não é culpa do Taranta.
O Silêncio dos Inocentes (91) – O único terror a ganhar o Oscar e o terceiro filme na história a ganhar os cinco prêmios principais (filme, ator, atriz, diretor, roteiro. Os outros dois, se você não se aguenta de curiosidade, foram "Aconteceu Naquela Noite" e "Um Estranho no Ninho"), este é um suspense instigante, bem atuado, bem contado, com diálogos inventivos. A gente perdoa até que faça propaganda do FBI. O psicopata Hannibal Lecter, conhecido como "Hannibal, o Canibal", não sai mais do inconsciente coletivo. Um grande filme. O resto é silêncio.
Um Sonho de Liberdade (94) – Mesmo sem o brilhantismo dos seus colegas da lista, este drama de prisão cativa o suficiente para garantir seu lugar ao sol. Tudo funciona. Talvez pudesse ser um tiquinho mais curto. No mínimo, nos faz refletir sobre nossas intenções ao mandar um homem pra cadeia – reformá-lo, castigá-lo ou afastá-lo? Deve ser o filme de maior apelo popular desta lista.
Trainspotting – Sem Limites (96) – Primeiro, o trio escocês nos deliciou com "Cova Rasa". Depois, se superou com "Trainspotting". Infelizmente, após ser cooptado por Hollywood, veio ladeira abaixo. Forneceu-nos "Por uma Vida Menos Ordinária" e, no fundo do poço, "A Praia". Bom, mas "Trainspotting" é bárbaro, e é injusto reduzi-lo a um filme sobre drogas. Trata-se das opções que fazemos na vida. O narrador, o soberbo Ewan McGregor, já começa criticando nossas escolhas. E termina afirmando que vai ser igualzinho a nós. Nós, que não merecemos tanto sarcasmo.

Truman Show (98) – Um sujeito comum tem todo seu cotidiano transmitido ao vivo, 24 horas por dia, para milhões de telespectadores. Ele não sabe, assim como não compreende que todos à sua volta (incluindo mãe, esposa, melhor amigo) são atores contratados. É ou não é um belo enredo, digno de "1984"? "Truman" também nos ajuda a entender este bando de corações solitários que colocam suas vidas à nossa disposição via internet. Além dessa vã filosofia, o filme nos brinda com um show de Jim Carrey, absolutamente perfeito no papel. A lista é esta. O elemento de choque ficaria por conta da inclusão de "Corra que a Polícia Vem Aí", mas então descobri que esta hilariante comédia é de 88. Bem, talvez você ache a lista inteira ultrajante, chocante. Você não viu nada ainda.
Aguarde minha lista dos piores filmes da década. Só pra dar um gostinho, vou antecipar a categoria "não vi e não gostei": "Patch Adams, O Amor é Contagioso" (é ruim que vou assistir a algo com este subtítulo) e outros onde o Robin Williams se empenha pra ganhar o Nobel da Paz; "Guerra nas Estrelas – A Ameaça Fantasma" (tô fora); qualquer coisa do Oliver Stone; "O Mensageiro", que eu não sou boba; "Kundun" e outros sobre o Tibete. Paciência tibetana eu já tive aos montes nesta década de filminhos tão medíocres. Já foi muito garimpar nove pérolas.

CRÍTICA: CONTOS PROIBIDOS DO MARQUÊS DE SADE / Pena de quem tem pena

De tempos em tempos, certos termos vêm perdendo o significado original. Por exemplo, a gente acha que "masoquismo" é ser crítica de cinema e ter de assistir a um bando de bobagens hollywoodianas. "Sadismo" é parecido; no dia-a-dia, assumimos que é quando alguém adora ver outro sofrer (no caso, Hollywood seria uma indústria extremamente sádica), sem haver ligação necessariamente com sexo. Só a palavra "sadomasô" ainda está ligada a sexo, se bem que também poderia estar relacionada à indústria do entretenimento.
Por que isso vem à tona? Bom, porque vi "Contos Proibidos do Marquês de Sade", que trata dos últimos meses de vida do homem que inspirou o termo "sadismo". Antes de mais nada, devo acrescentar que este não é um filme comum, feito para adolescentes e para gerar receitas referentes ao PIB de pequenos países. Tampouco é uma cinebiografia açucarada. Ou seja, não vá ao cinema esperando encontrar o velho sadomasô que sentimos em produções como, sei lá, "60 Segundos". Mas vá de qualquer jeito, que a história do marquês vale a pena.
Eu disse pena? É este mesmo o título em inglês, "Quills", que significa aquelas penas antigas usadas para escrever, antes do advento do computador, e também os espinhos de um porco-espinho, que a gente não associa a coisas muito prazerosas. Logo, o título original contém um duplo sentido e um
a neutralidade que desaparecem na tradução para o português. Há ainda um outro ponto. "Quills" mostra que o filme é menos sobre o marquês e mais sobre escritores malditos em geral e o amor à arte em particular. O marquês de Sade, pra quem não sabe – e imagino que o pessoal que nunca ouviu falar de "dantesco", "maquiavélico" e "narcisista" esteja entre aqueles que não sabem –, foi o primeiro dos escritores modernos malditos. Publicou obras que alguns consideram pornográficas, como "Justine, ou Os Infortúnios da Virtude", e levou uma vida de inúmeros escândalos. Escapou da guilhotina da Revolução Francesa por um triz para pouco depois ser encarcerado por Napoleão em um manicômio. É este período de isolamento que o filme enfoca.
No início, o marqu
ês até que é bem tratado no asilo de Charenton, dirigido por um jovem padre idealista. Suas obras são proibidas, mas ele consegue publicar o que escreve com a ajuda da camareira. Tudo muda quando um psicólogo é enviado para acabar com essa pouca vergonha. Primeiro, tiram-lhe as penas e a tinta. Ele continua redigindo, usando um ossinho de frango, vinho e lençóis. Quando isso também é confiscado, ele utiliza o próprio sangue. E finalmente, na total impossibilidade de escrever, ele dita suas palavras para os internos.
É ou não é um ato de amor? Mas o filme levanta outros questionamentos. O marquês foi um gênio o
u, nas palavras do padre, "apenas um revoltado que sabe soletrar"? O escritor tem responsabilidade pela influência que exerce sobre os leitores? A exposição a maus pensamentos nos torna pessoas melhores? Eu me tornei uma pessoa mais digna por haver assistido a 1.426 explosões cinematográficas no ano passado?
O filme deve ser indicado a alguns Oscars. Geoffrey Rush (vencedor por "Shine"), está novamente formidável no papel do marquês. O elenco inteiro é bárbaro – Kate Winslet e Michael Caine, ótimos como de costume; Joaquin Phoenix dando um show como o padre e se recuperando da má impressão deixada por "Gladiador" (não foi culpa dele. Foi o roteiro que criou um vilão caricato). A direção de Philip Kaufman não foge muito do convencional. Por outro lado, quem mais pegaria um projeto ousado desses, se não o diretor de gemas como "Invasores de Corpos", "Os Eleitos" e "A Insustentável Leveza do Ser"? O cara é bom.
Então, saia da rotina sofrível dos arrasa-quarteirões e vá ver o filme. Sadomasô por sadomasô, eu fico com o do marquês, que pelo menos era assumidamente sádico, ao contrário de Hollywood, que nos faz sofrer aos poucos. Lembre-se que, para o marquês, estamos todos caminhando para a guilhotina. Em fila.

CRÍTICA: CORPO FECHADO / Saravá, meu pai

Não entendi "Corpo Fechado" direito, mas gostei dele. Pra começo de conversa, não tem nada a ver com "O Sexto Sentido". Só porque ambos foram escritos e dirigidos por Shyamalan e se passam na Filadélfia e contam com Bruce Willis no papel principal e incluem um menininho na trama e têm finais surpresa não quer dizer que sejam filmes parecidos. São divergentes até no gênero: "Sexto Sentido" é um suspense; "Corpo Fechado", ainda não sei o que é ao certo. Acho que é um drama.
A certeza é que "Corpo Fechado" não fará o mesmo sucesso que "Sexto Sentido". Nem de longe. Bom, "Sexto Sentido" é o décimo filme mais lucrativo da história. Batê-lo não deve ser fácil. Imagina a responsabilidade do Shyamalan (que aparece novamente, tal qual Hitchcock. Aqui ele é o suspeito revistado no estádio) em repetir o êxito de público e crítica de "Sexto Sentido". Isso posto, até que ele se saiu muito bem.
Ele tem estilo. E sabe o que fazer com uma câmera. Os ângulos que escolhe em "Corpo Fechado" são altamente originais, como na cena em que os dois protagonistas conversam na arquibancada, e o enquadramento dá a ilusão que eles estão dentro de um caixão. Ou na cena da escada. Ou na tensa sequência da cozinha. Seu maior risco, no entanto, está em embutir seu próprio ritmo. "Corpo Fechado" chega a ser lento às vezes, é escuro e não traz aquela edição hiperpicotada que estamos acostumados a ver.
A trama? Vejamos se posso contá-la sem desmanchar todos os prazeres. Bruce, que já foi duro de matar e geralmente é apenas duro de engolir, agora é duro de morrer. Ele é o único sobrevivente de um acidente de trem, o que chama a atenção de Samuel L. Jackson. Samuel é seu oposto: ele é frágil e, desde a nascença, esteve sempre doente. Ele é também um aficionado por histórias em quadrinhos. Lá pela metade e lá vai pedrinha do filme, Bruce admite que talvez seja um super-herói (algo que seu fi
lho já sabia faz tempo) e decide usar seus poderes para o bem.
Seus poderes é que são um tanto estranhos. Ele toca nas pessoas e descobre o que elas andam aprontando. Todo mundo em quem ele rala parece ter um podre. Apesar da minha fé na humanidade andar em baixa, eu não acredito que a gente seja assim tão ruim. Se ele encostasse em mim, por exemplo, que terrível maldade desvendaria? Que eu puxei o lençol do maridão ou pisei no gatinho (totalmente sem querer; ele passa bem)? Mas não, o roteiro faz com que ele toque justamente nos mau
s. Se ele estivesse no Brasil, iria certeiro na direção do ACM, que, como reza a lenda, é o nosso Toninho Malvadeza. Aliás, lembrei do ACM em vários momentos. O título do filme em inglês é o frio "Inquebrável", longe do "Corpo Fechado" daqui. Nossa tradução dá um ar de saravá, meu pai.
Voltando à ficção, o novo filme de Shyamalan assemelha-se a uma mistura entre "Sem Medo de Viver" e "A Hora da Zona Morta". No primeiro, Jeff Brigdes começa a se achar um superhomem após sobreviver a um desastre de avião. No segundo, Christopher Walken emerge de um acidente de carro podendo prever o futuro ao pegar na mão de alguém. Junte os dois (ambos superiores, provavelmente), inclua um Mr. Vidro (o personagem de Samuel), bata bem até obter uma massa homogênea, e você tem "Corpo Fechado".
Sacanagem minha. O que de fato incomoda no filme é o desdém com que algumas cenas tratam o espectador. Compreendi bulhufas daquela sequência em que o Bruce salva uma família. Tá, bulhufas é exagero, mas custava o ambiente ser um tiquinho mais claro e camêra menos frenética? Há alguns furos no roteiro também. O garoto some no meio e só reaparece no final, e a relação entre pai e filho deveria ser melhor explorada.
Mas tudo bem, "Corpo Fechado" é intrigante e merece ser visto. Só não pode ser comparado com "Sexto Sentido". Nem com "Pulp Fiction", onde Bruce e Samuel trabalham juntos. Se quiser comparar com o terceiro "Duro de Matar", com a mesma dupla de protagonistas, não tem problema. Eu deixo.

CRÍTICA: GAROTOS INCRÍVEIS / Crítica prolixa para filme idem

Fui ver "Garotos Incríveis" e vou escrever uma crítica no estilo do filme. Peralá, não deveria ser tão direta assim. Deixe-me dar voltas e levar uns quatro parágrafos até começar. No final, você acabará de ler sem saber do que eu estava falando, e sem muita convicção se gostou ou não do que leu. Mas o fim é legal, apesar de não redimir tudo.
Você sabe que está com problemas quando alguém pergunta: "sobre o que que é o artigo (ou o filme)?" e você não consegue mencionar a idéia central, se é que ela existe, ou os objetivos. O personagem principal de "Garotos Incríveis", um escritor e professor cujo único sucesso já completa sete anos, está preparando um novo livro. Era pra ser um livro curto (de duração, não das idéias), umas 300 páginas, mas vemos que, após datilografar o número 261, ele acrescenta mais um "1". Ou seja, ele está redigindo uma obra imensa, sem nexo, altamente descritiva, onde a árvore genealógica do cavalo do tio é dada, acho que não vai chover hoje, e ainda está longe de terminá-la. Segundo uma de suas alunas, outra escritora brilhante, interpretada por uma dessas estrelinhas de TV a cabo chamada Katie Holmes, tá, vamos fingir que acreditamos que este pessoal sabe escrever o próprio nome, voltando ao assunto, esta mocinha aponta que ele poderia criar um romance melhor e fazer escolhas, que é a arte de escrever, se não trabalhasse "sob a influência" de drogas. Ufa! Parece que você leu três páginas, mas foram só umas cinco linhas. Assim é o filme: dura menos de duas horas, mas dá a impressão de durar mais de três. É um épico do lugar nenhum.
Eu gosto do Michael Douglas. Sempre gostei, primeiro como produtor, pois ele foi responsável por obras importantes dos anos setenta, como "Um Estranho no Ninho" (não, não é sobre passarinhos alienígenas) e "Síndrome da China", sem ligação com países asiáticos. É sobre uma usina nuclear mesmo, e é brilhante. Pena que seja impossível de encontrar em vídeo, e a TV não passa nada que preste. Michael contracenou com a Sharon Stone em "Instinto Selvagem", e, aproveitando o embalo da época, tornou-se um Casanova americano. Gostei que nosso criativo astro alegou, ao ser flagrado pela esposa, que era viciado em sexo, e lá foi ele se internar num spa. Hoje, nosso herói se casou com a beldade de Hollywood Catherine Zeta Jones, que deve ter idade pra ser sua bisneta, mas o que isso importa, se a moça já fez par romântico com o Sean Connery, e o que isso tem a ver com o filme em questão? Michael está velhinho em "Garotos Incríveis" e traz uma voz esquisita na bagagem. Pensei que fosse o Joe Pesci. Todos têm vozes estranhas, talvez a qualidade do som no cinema não estivesse boa. Michael quase certamente será indicado ao Oscar por sua corajosa decisão de aparentar na tela a idade que tem na vida real.
"Garotos Incríveis", a julgar pela profusão de nomeações ao Globo de Ouro – que, ao contrário do que se pensa, não tem nada a ver com a Rede Globo –, deve ser lembrado pelo Oscar em várias categorias. Aí você pode questionar: ué, mas o filme merece? É bom? Não, não é bom, mas também não é ruim. "Erin Brokovich" também não é grande coisa e vai ser indicado, simplesmente porque este ano de 2000 que acabou de acabar foi de uma safra terrível. Pense bem: quantos filmes bons de verdade você viu? Chega no três? Agora, quantos filmes péssimos? Use os dedos dos pés pra ajudar a contar.
"Garotos Incríveis" tem gente de respeito, como o Tobey Maguire, de "Regras da Vida", a Frances McDormand, que decorou sua lareira com o Oscar de "Fargo", e um dos melhores atores de sua geração, Robert Downey Jr, de "Chaplin", recém-saído da prisão mais uma vez por uso de drogas. Tem um cachorro morto também, devo confessar que nutro uma antipatia natural por qualquer filme que mata cachorro, mesmo de mentirinha. A direção é de Curtis Hanson, super badalado depois de "Los Angeles, Cidade Proibida". Viu só no que dá escrever sem rumo? E juro que eu nem estava "sob a infuência".

CRÍTICA: NEM TODAS AS MULHERES SÃO IGUAIS / Nem todas as produções independentes vão pro céu

Como identificar um filme independente americano? Fácil. Ele deve conter uma dessas coisas, ou uma combinação delas: a) sujeito vomitando de frente pra câmera, com todos os detalhes escabrosos; b) segmentação de mercado excessiva (tipo: filme para esquimós gays na faixa dos 25 anos veraneando na Califórnia); ou c) nu frontal masculino. Felizmente, "Nem Todas as Mulheres são Iguais" não é chegado à escatologia, se bem que quando um dos personagens menciona que sente-se nauseado ao andar de carro, eu temi pelo pior.
"Nem Todas", a história muito chinfrim de uma escritora que reavalia seu casamento ao redigir um romance erótico sobre séculos passados, tenta atingir vários nichos. Tem beijo de homem com homem, mulher com mulher (como disse uma aluna, quem colocou na cabeça chauvinista que nós mulheres temos o mínimo interesse de conhecer biblicamente as pessoas do mesmo sexo?), e até entre casais heterossexuais, esta minoria. Essa variedade serve para nos recordar que estamos assistindo a uma produção cabeça, não a um desses filminhos que Hollywood fabrica a dúzias. Quando a gente começa a titubear "qual a diferença, meu Deus?!", aparece um close de pênis. Um, não. Vários. Nem todos os atores devem ter topado se expor, então há também estátuas viris. Isso em intervalos estratégicos, como se o diretor estivesse gritando pra gente: "viu como isto é cinema independente?!".
É claro que não vou me queixar quanto às imagens. Mas talvez o tradutor tivesse acertado mais a mão se colocasse o título em português "Nem todos os homens são iguais". Há divergências, anatomicamente falando.
Outro ponto a comprovar que este é um típico exemplar do cinema livre, leve e solto é que a atriz principal, Parker Posey, é a musa dos emancipados. Acho que ela representa pras produções independentes o que o Wilson Grey significava pro cinema brasileiro: ela está em todas. Se você imagina que nunca a viu, ela participou do mainstream "Mensagem para Você", aquele filme não recomendado para diabéticos.
"Nem Todas as Mulheres São Iguais" tem uma única piada, que aparece antes dos créditos inciais. Uma americana vai a Paris decidida a perder sua virgindade com um francês. Encontra um homem na rua, leva-o pra cama. Depois do fato consumado, descobre que o cara é inglês. Se você não captou o humor, vale mencionar que os britânicos não contam com uma reputação sexual das melhores. Quer dizer, quando a gente pensa na Inglaterra, pensa em chá, rainha, pontualidade. Confesse: foi ou não foi um choque saber que o príncipe Charles queria ser o Tampax da sua amante?
Ah, tem também piadinha fácil sobre dentista, esta carreira mal compreendida. Nada que você não tenha visto em "A Pequena Loja dos Horrores", com o Steve Martin impagavelmente sádico. Convenhamos: ninguém torna-se dentista por amor à profissão. Vamos ver quem mais eu posso ofender hoje...
É tudo fraquinho – o roteiro, os diálogos, as interpretações, a edição, o ritmo. Menos a Brooke Shields, que dá o ar de sua graça por alguns instantes. Dela pode se dizer tudo, menos que seja fraca. Ela está mais musculosa que o Schwarza. Deve ser de tanto jogar tênis, imagino.
No final, podemos observar que o diretor (um tal de Brian Skeet) dedica a obra à memória de alguém com seu sobrenome. Provavelmente sua mãe ou esposa, ou qualquer um que tenha morrido durante a projeção do filme. É sacrifício pra ninguém botar defeito. Da próxima vez, uma homenagem póstuma ao espectador anônimo também seria bem vinda.
"Nem Todas" é uma comédia de erros, e põe erro nisso. É parecidíssima com qualquer outro filmeco que você tenha visto ultimamente. A diferença está nas cifras, tanto no custo quanto na arrecadação. Há outros detalhes menos sutis que tentam nos convencer que esta é uma produção original. Em vão. "Nem Todas", no fundo, não passa de uma comédia romântica – com pênis

CRÍTICA: AS PANTERAS / O ronronar dos dólares

Eu me lembro pouco da série de TV dos anos 70 As Panteras. Lembro do ícone Farrah Fawcett e de seu poster, do logotipo do programa e de como, em todo episódio, as destemidas detetives tiravam um capacete, um chapéu, uma máscara, qualquer coisa que cobrisse aqueles frágeis neurônios, e jogavam os cabelos de um lado pro outro, em câmera lenta. Talvez eu tenha mudado, ficado menos ingênua, ou talvez os tempos tenham se tornado mais cínicos. A verdade é que, na época, a história de um milionário que convoca três moças para defendê-lo à distância não me causou o mal-estar do filme recém-lançado. As Panteras é uma bomba de efeito retardado. Por baixo do barulho do ronronar dos dólares, vamos analisar os aspectos mercadológicos. Uma produção lucrativa atualmente tem de atrair, antes de tudo, meninos cuja média de idade é 9 anos. Então deve haver muita ação, explosões, rachas, luta livre, pancada, mais porrada, e diálogos que não disturbem o transe. Mas é bom se o filme convoca também as garotas. As Panteras coloca nas telas as moças que aparecem em toda santa capa de revista que elas compram. É um chamariz. As meninas sentem-se obrigadas a ir pra aprender o que elas têm de ser quando crescer: no mínimo 20 kg abaixo do peso normal, altas, bronzeadas, vaidosas, maquiadas, arrumadas e sempre prontas pros seus homens. Os produtores não são tolos, e pra abreviar a identificação, unem corpo de mulher a comportamento de criança. As panteras dão risadinhas sem motivo, são saltitantes como pré-adolescentes. Umas gracinhas.
Dizem ser necessário usar mais músculos faciais pra fazer uma careta do que pra abrir um sorriso. Neste sentido, pude notar que a interpretação da Drew Barrymore exigiu mais do que a da Cameron Diaz. Mas, nos releases, a gente tem que ler as heroínas falando que sofreram para aprender os truques de caratê, que foram cinco meses de treinamento militar. Ó vida dura! Fiquei comovida. Quero sugerir aqui o início da campanha "Adote uma Estrela Estressada". Nas entrevistas à imprensa (que não sei se são mais detestáveis que o filme – a competição é árdua), o diretor-sigla McG diz que considerou inúmeras atrizes pros papéis. Entre elas, a Gisele Bündchen. Aí eu pensei: ué, a Gisele é atriz? Bastou ver o filme para que minhas dúvidas se dissipassem. Não saber atuar não é empecilho. Interpretar pra quê, se a edição é tão picotada que o rosto das moças mal aparece? Só de vez em quando surge um close de milésimos de segundo. O resto é dublê.
Para
que as panteras finjam ser inteligentes, critérios comparativos são utilizados. Todos os homens do filme possuem QI negativo de ostra, sem querer ofender as ostras. Outro ponto mastigado nas declarações é que as estrelas juntaram-se ao projeto por seu caráter feminista (?). E que elas fincaram o pé para não usarem armas. Claro, como a gente sabe, sem metralhadora não há violência, imagina. Sem falar na violência hollywoodiana típica: vê-se um belo castelo no alto da praia. Neste exato momento, sabemos que é só uma questão de tempo pra tudo voar pelos ares. São os americanos e seu desejo de conhecer novas culturas – e destruí-las. O treinador das lutas marciais é o mesmo mestre fu-manchu de Matrix. Logo, minha sugestão é: reveja Matrix, que ao menos continha uma convicção subversiva de que tudo isso (incluindo esses filminhos acéfalos) é uma fantasia que nos impede de ver a realidade. E a realidade é que somos escravos de um sistema. Não sou eu que estou falando, é Matrix. Porém, As Panteras também tem uma mensagem pra passar, e não é só aquela de cunho machista. Há o código capachista. As heroínas sonham em olhar pro patrão. Elas se matam de trabalhar, não têm vida pessoal, nunca recebem salário, jamais reclamam, greve nem pensar, e amam um chefe que não mexe uma palha por elas e que nem pra lhes dar ordens se dispõe a encará-las. Entendo que o lema "labutar pro patrão enricar" seja a tônica do capitalismo, mas acho que podiam trocar o título do filme para "As Pamonhas", sem detrimento do conteúdo.