quinta-feira, 14 de outubro de 2021

UM PATROCÍNIO INGRATO PARA AS JOGADORAS DE XADREZ

A mãe de um aluno de xadrez do maridão, uma leitora frequente do blog, me pediu pra escrever sobre isso, então lá vai. 

Você quer a boa ou a má notícia antes? Vamos começar pela boa: a FIDE (Federação Internacional de Xadrez, em francês) fechou o maior contrato de sua história com uma empresa para patrocinar o xadrez feminino. A FIDE já determinou que 2022 será "o ano das mulheres no xadrez".

Maravilha, né? Agora a má notícia: o contrato é com a Motiva, uma empresa que lida com aumento dos seios e implantes de silicone, através de cirurgias plásticas. 

Obviamente, várias jogadoras (anônimas) criticaram a medida no site Lichess. Uma delas questionou: "O xadrez, um jogo que depende do cérebro em vez dos peitos, não deveria se distanciar dessa linha de pensamento misógina e reducionista?" Outra declarou: "Nojento". Uma jogadora afirmou ao jornal britânico The Guardian: "A FIDE não tem um bom histórico em empoderar mulheres e eu acho degradante e humilhante que uma atividade como o xadrez, que é tão cognitiva, seja patrocinada por uma empresa que lucra com a insegurança das mulheres. Eu realmente duvido que a FIDE traria uma empresa de aumento peniano para patrocinar o Campeonato Masculino". 

Concordo! Mais uma jogadora apresentou um ótimo argumento: "Já vi comentários online de gente dizendo que espera que a premiação para eventos femininos agora inclua aumento dos seios. Vi piadas citando nomes de jogadoras que 'melhorariam' se fossem contempladas. O xadrez sempre tem lidado com o machismo, e essa nova medida não ajuda em nada a brecar isso". 

Já a jogadora norueguesa Sheila Barth Stanford defende que "Nós desesperadamente precisamos de patrocínio. Já jogamos por muito menos dinheiro que os homens. Espero que este patrocínio facilite que as mulheres possam jogar profissionalmente". 

O primeiro torneio feminino com patrocínio da Motiva já aconteceu, na Espanha. Uma jogadora de Luxemburgo, Fiona Steil-Antoni, apontou que o único material promocional distribuído pela empresa foram panfletos mostrando como fazer o auto-exame mamário. A Motiva também gosta de reforçar que implantes de silicone são usados não apenas esteticamente, mas para reconstrução de mamas de quem passou por uma mastectomia.

Pros leigos que não entendem como um jogo mental (e também físico) como xadrez precisa ser separado em mulheres e homens, a resposta é bastante simples. Primeiro que a maioria dos torneios é "absoluta", ou seja, pessoas de qualquer gênero e idade podem jogar. Porém, assim como há campeonatos por idade (sub-4, sub-8, sub-12, sub-18 etc), também há torneios só para mulheres. Isso porque há muito mais homens que jogam xadrez do que mulheres, principalmente em nível profissional. Só pra saber: existem 1.694 grandes mestres (a titulação mais alta no xadrez) no mundo (14 são brasileiros). Desse total, apenas 38 são mulheres. Uma diferença gigantesca!

Ah, mas xadrez não tem a ver com inteligência? Claro, mas não só isso. Tem a ver com interesse também. O que a gente vê muito é que, além de meninos serem encorajados a jogar muito mais que meninas, quando chega a adolescência várias garotas são direcionadas a adotar outras atividades mais "femininas". Sem falar que clubes de xadrez muitas vezes são ambientes machistas. Como atesta o maior campeão da atualidade, o norueguês Magnus Carlsen, “Clubes de xadrez não têm sido muito gentis com mulheres ao longo dos anos”.

Pense num país sem tradição no xadrez. A chance de sair um campeão mundial de um país como o Brasil, por exemplo, é infinitamente menor que a Rússia produzir um campeão, já que lá xadrez é jogado por boa parte da população. Quanto mais gente joga, mais gente vai se destacar. Por isso é tão importante a excelente série da Netflix O Gambito da Rainha. Ela incentiva meninas (e meninos também) a jogarem. A série, junto com a pandemia, que faz as pessoas ficarem mais confinadas em casa, causaram um boom internacional no xadrez. 

E é por isso também que a FIDE ter escolhido como patrocinadora uma empresa de implante de silicone é tão irresponsável. A FIDE deveria aproveitar a popularidade da série O Gambito da Rainha para atrair mais meninas. Fazer meninas e mulheres pensarem criticamente no seu corpo faz exatamente o contrário: pode afastá-las dos esportes e de atividades intelectuais. 

Já contei sobre um estudo que foi feito nos EUA em 1998 (aliás, tem vários parecidos) com 72 universitárias. Cada uma era chamada individualmente a um vestiário. Metade da amostra ouvia que daqui a pouco teria que provar um maiô. A outra metade ouvia que teria que provar um suéter. Enquanto esperava, cada moça respondia um teste de matemática. Adivinha quem se saiu muito melhor no teste? As mulheres que iriam provar um suéter. As que iriam provar um maiô ficaram ansiosas com seu corpo, preocupadas demais sobre como se sairiam num maiô, e isso afetou suas habilidades matemáticas.  

E aí? Não será que associar jogadoras de xadrez a aumento dos seios possa causar uma ansiedade parecida? 

Silvio, meu marido, que dedica sua vida ao xadrez faz meio século (desde os 13 anos), lembra outro detalhe. 

Digamos que um fabricante de armas de fogo quisesse patrocinar o xadrez. Armas têm muito mais a ver com o jogo/ arte/ esporte que implantes de silicone, certo? Afinal, o xadrez é sempre comparado a uma batalha, uma guerra, uma luta, um embate. Mesmo assim, a FIDE deveria aceitar ter uma empresa armamentista como patrocinadora?

E a indústria tabagista? E a de álcool? E se uma firma de acompanhantes de luxo quisesse patrocinar os torneios femininos? Ou patrocínio é patrocínio e o que importa mesmo é que entre dinheiro para o esporte? 

6 comentários:

Isaac duarte disse...

Interessante análise.

Sabe o que isso parece? Que querem atrair mais homens para o torneio feminino (como espectadores), assim como fazem nos esportes femininos em que mulheres precisam vestir pouca roupa.

Luise Mior disse...

Excelente postagem Lola. Realmente, uma empresa que lucra com insegurança feminina é uma má escolha para incentivar mulheres a jogarem xadrez.

Jane Doe disse...

Quando se trata de mulheres ocupando "espaços masculinos" (isso nem deveria existir, mas enfim) isso é quase sempre um padrão.
É como se mulheres devem SEMPRE compensar ou "pagar" uma especie de "imposto moral" por fazer algo que - oh the horror não pertence a sua "natureza feminina":

Ok, você até pode ser jogadora de xadrez, ser altamente inteligente e uma fantástica estrategista, mas não esqueça da sua função de mulher: ser atraente e reproduzir. Aproveita o teu patrocinador e tenha seios de atriz pornô e o ambiente cheio de homens e acha um marido.

Você pode ser medalhista em levantamento de peso, mas não esqueça da sua função de mulher: ser atraente e reproduzir; Usa esse mini-uniforme que mostra a tua bunda quando você se abaixa.

Percebam quando entrevistas com mulheres de destaque são feitas: "Fulana de Tal", Diretora da multinacional "XYZ", mãe e esposa dedicada e impecavelmente maquiada.

Alguém já viu algo como: Bill Gates, Fundador da Microsoft pai e marido amoroso, vestido com o terno da ultima coleção de Gio Armani?

Chega a ser ridículo, não?
Por que raios esse tipo de coisa é ainda tao recorrente e aceitável com mulheres?

ana disse...

Excelente comentário. Estamos sempre pagando para existir

Alan Alriga disse...

Se eu não me engano têm muitas empresas militaristas que têm subdivisões que fabricam outras coisas (placas para máquinas de fliperamas, capinhas de celular, energéticos, etc...), e normalmente essas subdivisões são praticamente outras empresas com outros nomes, e elas também acabam patrocinando eventos, Universidades, etc... Que normalmente poderiam recusar o patrocínio dessas empresas militaristas hoje em dia, sendo que há uns poucos anos atrás, ninguém realmente se importava com isso e somente com o dinheiro do patrocínio.

Anônimo disse...

Exatamente, Jane!