CARTA A MINHA FAMÍLIA E AMIGOS PRÓXIMOS SOBRE MEU POSICIONAMENTO POLÍTICO

Quem me enviou este texto foi Pedro Arantes, diretor do maravilhoso documentário O Riso dos Outros, do qual tive a honra de participar. A carta foi escrita pelo seu sócio, o produtor de cinema Angelo Ravazi.

Meus queridos, devo estar massivamente presente na timeline de vocês. E como não estamos nos vendo muito ultimamente, decidi escrever essa carta.

Ainda que minha memória seja fraca, lembro da minha infância em São Paulo marcada por visitas nas casas dos meus amigos, passeios no shopping e tristes episódios de violência. Lembro da infância alegre em Bauru, com bailinhos na garagem e vôlei na rua. Lembro dos ônibus lotados que pegava sozinho aos 10 anos de idade voltando das aulas de xadrez que a prefeitura oferecia. E lembro também da minha estranheza quando mudamos para o ensolarado e tranquilo condomínio de Vinhedo.

Nasci em 82, ano das Diretas Já. Minha infância segue paralela à evolução da democracia e dos movimentos da classe trabalhadora do ABC lideradas por Lula, aquele sapo barbudo com um dedo a menos, com uma fala estranha, que parecia uma ameaça a minha vida tranquila, e aos empregos dos meus pais. As eleições de 90 são bem nítidas na minha memória. Como não gostar daquele cara que parecia um ator de Hollywood debatendo com o sapo barbudo?

Pois é, o tempo passou, o Lula virou presidente (e o mundo não acabou), saí da minha cidadezinha tranquila para voltar à violenta São Paulo, que havia me deixado traumas na infância.

E esse retorno foi um renascimento para mim. Não apenas por encontrar um caminho pelas artes, mas sobretudo por conseguir negar uma cultura do medo e uma cultura do umbigo. A gente se acostuma com a nossa rotina, com o que acontece a nossa volta e acaba achando que o mundo é isso. Achando mesmo, sem perceber o quinhão de cegueira que existe nesse sentimento.

Na minha infância era comum fazer piada de preto. Todo mundo ria.

Hoje, além de não ter graça nenhuma, você ainda pode ser preso.

As bichas eram uma aberração total da natureza! Só podia ser problema hormonal!

Ainda que as piadas homofóbicas estejam presentes na minha vida, sinto uma considerável redução, e sinto que vai continuar reduzindo até um dia acabar.

Essas mudanças não aconteceram espontaneamente; elas são resultado de movimentos, de lutas de minorias por direitos. E muitos direitos ainda precisam ser conquistados. Trata-se de uma luta incansável contra velhos preconceitos consagrados há 500 anos nessas terras. E são preconceitos como esses que pessoas como Marco Feliciano, Levy Fidelix, Pastor Everaldo e Silas Malafaia tentam perpetuar. Figuras que se sentem representadas na candidatura de Aécio Neves.

Como estar do lado desses caras?

Acontece que há outra "minoria" presente por aqui. Uma que fui conhecer melhor nesse retorno: os pobres. E se for "coincidentemente" preto, pior ainda. Conheci mães dessas "minorias" que tiveram seus filhos assassinados brutalmente justamente por serem pobres e pretos e estarem andando de noite no seu bairro, que coincidentemente fica bem longe do lugar onde trabalhavam. Não preciso dizer quem matou esse filhos, né? 

Você consegue imaginar, minha mãe, o que é isso? Você deve ter sofrido aquela noite em que aquele bandido apertava uma arma na minha cabeça bem na sua frente, não? [Quando criança, Angelo sofreu um assalto em sua casa e foi feito refém, daí a decisão dos pais de se mudar para o interior de SP]. Imagina se tivessem me matado voltando da faculdade? Porque é isso que a polícia militar do Estado de SP, governada há mais de 20 anos pelo PSDB, faz com os pretos e pobres da periferia. Que fique bem claro, ouvi isso das mães deles, não da Carta Capital.

Conheci também líderes de movimentos de moradia por aqui, que me contaram como são tratados pela mesma polícia (defendendo a propriedade de algum milionário falido), despejados na rua com toda truculência, não importando se estão com mulheres ou crianças. E esses movimentos, que normalmente não assumem partidos nas eleições, dessa vez irão votar no PT, pois têm medo de que forma irão apanhar se a truculência da polícia estadual tiver a conivência e o incentivo federal.

Como não estar do lado deles?

E pelo meu trabalho tive a felicidade de poder viajar um pouco pelo Brasil e conhecer muita gente que também faz filmes por aí e que também conhece esses "vagabundos" que preferem o peixe ao invés de aprender a pescar. E sabe o que aconteceu na última década? A vida deles melhorou. Não vamos dizer que tá boa, bacana assim como a nossa, né? Mas que melhorou, melhorou. Teve gente que começou a trabalhar, começou a estudar em universidades que não existiam antes, em cursos técnicos que não existiam, que começou a ganhar dinheiro, comprou até casa. Essa galera tem até TV a cabo! E de vez em quando consegue fazer o cruzeiro do Rei, vocês acreditam?!

A nossa democracia começou há mais de 20 anos, mas faz só uma década que a vida deles melhorou. Por que será? Os programas implantados pelo PT deram tão certo que agora a oposição (que naturalmente sempre se opôs a esses programas) decidiu brigar pela paternidade deles. Vocês não acham estranho isso?

E o nosso sistema carcerário? Recentemente vi um documentário em Brasilia, chamado Sem Pena. Recomendo a todos. 

Lá ele mostra as condições dos nossos presídios, superlotados, em que 40% ainda nem foram julgados, presos que não recebem seus direitos mínimos, onde 80% são aviõezinhos do tráfico ou apenas pretos e pobres mesmo. Há um depoimento chocante de um ex-PM contando que deixava os traficantes soltos para cobrar propina e prendia pobres aleatórios para cumprir a cota, para fazer número, número que o Alckmin utiliza para falar de segurança pública do Estado. Nesse filme fica evidente como as pessoas se transformam em perigo para a sociedade na prisão e não fora dela. Reduzir a maioridade penal ainda que para crimes graves é um absurdo social sem precedentes. Essa ideia de separar as maçãs podres para vivermos em paz, empurrar a sujeira (pobreza) para debaixo do tapete, definitivamente não é o tipo de sociedade que quero ajudar a construir.

E o Bolsa Família, vai falar o quê? Assistencialismo para vagabundos? Acho que a gente nem devia discutir esse assunto porque ninguém que tá lendo essa carta faz a menor noção do que seja viver na miséria. Nem eu. Mas certamente criticar um programa de transferência de renda para famílias que ganham menos de 150 reais por mês, e que condiciona essa transferência com a ida e frequência dos filhos na escola, certamente isso ninguém vai fazer, né? Nem o PSDB, é claro. Se bem que fazia há algum tempo... Transferência de renda, filhos na escola.

Novamente faço a pergunta. Como não ficar do lado deles?

Desde a quinta série escuto que o grande problema do Brasil é a desigualdade social. Como não ficar do lado de quem trabalha pela inclusão social como prioridade?

Porque enquanto a gente fica discutindo se a inflação de 12% que o Armínio Fraga deixou, mas com maior taxa de crescimento, é melhor ou pior que os 6.5% que tem agora só que com baixo crescimento, ou se o mensalão petista desviou mais ou menos que o trensalão de SP, que o mensalão mineiro, ou qualquer merda do tipo, enquanto isso eles estão melhorando suas vidas. Tem muito muito muito o que melhorar, mas estão. Isso importa, não importa?

E o que essa gestão custou pra gente? Nós que temos condições de não depender do ensino público, da saúde pública, do transporte público, que conseguimos pagar de boa os pedágios a cada 30 km da Bandeirantes, a viagem pra qualquer lugar do mundo que quisermos uma vez por ano -- o que o projeto de governo iniciado por aquele sapo barbudo custou pra gente? Como profissional do audiovisual tenho o dever de dizer que inclusive a minha vida melhorou muito nos últimos anos. Sinto que melhorou a de vocês também, mas aí já é com vocês.

E ainda tenho que aguentar Lobão, Coronel Telhada e cia dizerem que estão com medo de uma ditadura, que vão fugir pra Miami? Sério?! Puta papo mentiroso, elitista, escroto do caralho! Ei galera, até o Chico apoia a Dilma? Vocês se lembram do Chico? Alguém consegue ser contra o Chico? Lobão ou Chico?

E no outro lado, temos um playboy de berço político falando de meritocracia enquanto o nepotismo reina em sua vida desde que nasceu, que tava pegando ondas no Rio enquanto a outra era torturada na ditadura, que faz sorrisinho cínico quando é perguntado sobre violência contra mulher, que censura a imprensa de seu estado, que dá as mãos aos mais retrógrados para falar de mudança. Eu também quero mudanças, mas não essas!

Eu sei que os editores da Folha e da Veja capricham nas fotos e nas matérias, mas vocês realmente acreditam que esse cara vai de fato "mudar o Brasil, aprimorar os programas sociais e fazer o país crescer com eficiência?" Que tudo não passa de uma questão de administração?! Bom gerente, mau gerente, gerente pouco corrupto, gerente muto corrupto, bla bla bla! A boa gerência que acaba com a água de SP é a que queremos para o governo federal?

Angelo Ravazi em ação

Bom, meus queridos familiares e amigos, com essa carta espero ter justificado minhas convicções políticas, e espero que tenha feito ao menos vocês refletirem um pouco sobre o momento em que estamos vivendo.

Podem mas não precisam me responder. Podem mas não precisam compartilhar esse texto.