terça-feira, 7 de janeiro de 2014

SOBRE O DIREITO À LAQUEADURA

Uma leitora, a C., me procurou pra sanar algumas dúvidas. Como eu não consegui, mandei este email pra uma amiga minha que é promotora:

"Desculpe te incomodar mais uma vez, mas uma leitora me fez uma pergunta que eu não sei responder. Não sei se vc saberá, nem sei se é a sua área, mas talvez você tenha alguma informação. É sobre laqueadura. Primeiro, a gente sempre ouve falar do absurdo que é que, pra uma mulher fazer laqueadura, ela precisar da autorização do parceiro. Isso é realmente verdade? E quando o parceiro decide fazer vasectomia, ele precisa da autorização da parceira?
Bom, vamos ao caso desta leitora:

'Gostaria de fazer laqueadura mas, pelo que li, não posso fazer pois não tenho filhos. É isso mesmo?
Será que já existem decisões judiciais aqui no Brasil no sentido de que a mulher não precisa ter filhos pra se submeter à laqueadura?
Tenho 38 anos, nunca quis ter filhos (decisão desde os 20 anos, já terminei um noivado porque o rapaz queria ter filhos, e eu disse que não os teria), sou solteira, não posso tomar anticoncepcionais orais e acho o DIU agressivo (provoca sangramentos mais fortes e isso afetaria minha qualidade de vida), de modo que vejo a laqueadura como uma opção anticoncepcional.
Entretanto, esbarro com a lei, que não me dá autonomia para decidir sobre meu corpo.
Minhas dúvidas:
- A lei realmente proíbe a laqueadura em mulheres sem filhos, mesmo que eu não tenha 25 anos, ou a proibição é somente para quem tem até 25 anos? É realmente uma proibição ou orientação do SUS?
- Se for apenas orientação, então tenho como fazer a cirurgia particular aqui no Brasil?'"

Minha amiga promotora respondeu detalhadamente. Decidi compartilhar aqui suas respostas porque elas podem ser úteis pra muita gente.

A realização de vasectomia/laqueadura é regulamentada pela Lei Federal 9263/96. Há também uma resolução do Conselho Federal de Medicina sobre vasectomia e uma lei do DF sobre a gratuidade em hospitais da rede pública.
A lei 9263/96 prevê a esterilização em "homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce".
Não há proibição expressa para mulheres sem filhos, mas sim para mulheres até 25 anos de idade.
Quanto à necessidade de autorização, a lei é expressa no sentido da obrigatoriedade: "Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges."
Na jurisprudência quase não há julgados sobre a necessidade de autorização do cônjuge/ companheiro/ parceiro. A maior parte é sobre responsabilidade civil por falha na laqueadura, ausência de autorização da paciente, ou autorização para incapaz. Abaixo seguem as poucas ementas encontradas.
Não encontrei julgados no sentido de que a mulher não precisa ter filhos pra se submeter ao procedimento. As ementas encontradas falam sobre mulheres que têm filhos e a responsabilidade pela falha no procedimento.

LEGISLAÇÃO
LEI Nº 9.263, DE 12 DE JANEIRO DE 1996.
Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
RESOLUÇÃO CFM Nº 1901/2009
Estabelece normas éticas para a esterilização cirúrgica masculina.

LEI Nº 2.039, DE 28 DE JULHO DE 1998
DODF DE 29.07.1998
Dispõe sobre a realização das pequenas cirurgias que especifica pelos hospitais da rede pública do Distrito Federal.
Faço saber que a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou, o Governador do Distrito Federal, nos termos do § 3º do art. 74 da Lei Orgânica do Distrito Federal, sancionou, e eu, Presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, na forma do § 6º do mesmo artigo, promulgo a seguinte Lei:
Art. 1º Ficam os hospitais da rede pública do Distrito Federal obrigados a realizar gratuitamente, quando solicitados pelos interessados em eliminar a fertilidade, vasectomia ou operações de laqueadura das Trompas de Falópio.
Art. 2º A cirurgia será feita por indicação de médico dos quadros de pessoal da rede pública, mediante a concordância expressa do paciente.
Art. 3º O Poder Executivo promoverá sistematicamente campanhas educativas e de esclarecimentos sobre esse método de controle de natalidade.
Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 5º Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 28 de julho de 1998
Lúcia Carvalho

JURISPRUDÊNCIA
TJSP 
0006957-40.2003.8.26.0510 Apelação
Relator(a): Luiz Antonio Costa
Comarca: Rio Claro
Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Privado
Data do julgamento: 14/03/2012
Data de registro: 20/03/2012
Outros números: 00069574020038260510
Ementa: Ação de Indenização ? Dano Moral ? Laqueadura - Ausência de autorização - Ato ilícito ? Exigência de autorização escrita de ambos os cônjuges - Inteligência do § Io, do art. 10° da Lei n° 9.263/96 - Dano moral caracterizado - Indenização fixada no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), com os acréscimos legais ? Sentença reformada ? Recurso provido.

TJSP
0247207-31.2011.8.26.0000
Relator(a): José Luiz Gavião de Almeida
Comarca: São Paulo
Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado
Data do julgamento: 13/03/2012
Data de registro: 14/03/2012
Outros números: 2472073120118260000
Ementa: Laqueadura tubária. Ação para suprimento judicial da autorização de cônjuge para cirurgia de laqueadura Muito embora a agravante já tenha uma prole considerável, a urgência não se configura, pois existem diversos meios contraceptivos capazes de evitar novos filhos enquanto se julga o mérito deste processo, o que não se faz por meio do agravo de instrumento O fato de estar o marido afastado há muito tempo e haver a requerente constituído nova família, com três novos filhos, mostra que a sociedade conjugal anterior já se desfez, parecendo desnecessária a exigência do § 5º do artigo 10 da lei 9263/96. Mas essa questão é de mérito, e neste agravo apenas se deve apreciar a urgência e necessidade da concessão da tutela antecipada - Recurso improvido.

TJRS
Número: 70042878710 Inteiro Teor: doc html Tribunal: Tribunal de Justiça do RS Seção: CIVEL
Tipo de Processo: Apelação Cível Órgão Julgador: Décima Câmara Cível Decisão: Acórdão
Relator: Ivan Balson Araújo Comarca de Origem: Comarca de Porto Alegre
Ementa: APELAÇÃO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. REALIZAÇÃO DE LAQUEADURA TUBÁRIA SEM AUTORIZAÇÃO DO PACIENTE E DE SEU CÔNJUGE. RESPONSABILIDADE CIVIL DO HOSPITAL RECONHECIDA.
O conjunto probatório coligido revela que a autora havia sido internada para submissão a uma cirurgia de ooforoplastia, consistente em um procedimento para a retirada de cistos do ovário. Porém, ao contrário do esperado, na verdade, ocorreu a laqueadura tubária, situação que a levou, consequentemente, à infertilidade. Dessa forma, resta caracterizada a atitude culposa por parte dos prepostos do demandado, os quais não atuaram com o grau de diligência necessário, a fim de se cientificar acerca de qual o procedimento deveria se submeter a autora, executando manobra diversa daquela esperada. Inequívoca, portanto, a falha na prestação do serviço prestado pelo estabelecimento hospitalar. Aliado a isso, não afasta o dever de indenizar a alegação de que o aparelho reprodutor da demandante já se encontrava comprometido pela presença dos cistos no ovário, mormente considerando que a pretensão indenizatória tem como fundamento a realização de cirurgia sem o consentimento da paciente, independentemente de qual era a sua condição para procriar. Dever de indenizar configurado.
QUANTUM INDENIZATÓRIO. O valor da indenização fixado na sentença mostra-se adequado e atende aos objetivos da compensação do dano e o caráter pedagógico, levando em conta, ainda, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como a reprovabilidade da conduta e a capacidade econômica das partes. Quantum indenizatório mantido. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Valor fixado na sentença está de acordo com o padrão adotado por esta Câmara em casos análogos. Percentual mantido. Inteligência do art. 20, § 3º, do CPC. RECURSO DO RÉU DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70042878710, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Balson Araújo, Julgado em 29/03/2012). 

TJSC
ADMINISTRATIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - ALEGAÇÃO DE ERRO MÉDICO - INDENIZAÇÃO DE DANOS MORAIS - VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ - INOCORRÊNCIA - MULHER QUE ALEGA TER-SE SUBMETIDO A LAQUEADURA TUBÁRIA QUE SE REVELOU INÓCUA PORQUE ENGRAVIDOU NOVAMENTE - PROCEDIMENTO MÉDICO NÃO REALIZADO EM FACE DA AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO CONJUNTA DO CASAL E DE COMPLICAÇÕES DA GRAVIDEZ DA ÉPOCA QUE RESULTARAM NO NASCIMENTO DE CRIANÇA COM PROBLEMAS DE SAÚDE - LAQUEADURA TUBÁRIA - MÉTODO CONTRACEPTIVO EFICAZ MAS NÃO ABSOLUTO - OBRIGAÇÃO DE MEIO - DEVER DE INDENIZAR INEXISTENTE.
"Para que seja reconhecida nulidade por conta do princípio da identidade física do juiz, não basta a simples alegação, é necessário seja evidenciado o prejuízo suportado pela parte com a realização dos atos em desconformidade com o preceito invocado. (Apelação Cível n. 2001.011483-6, de Tubarão, rel. Des. Subst. Jaime Luiz Vicari, j. 15.10.2008)". (TJSC, AC n. 2009.052902-6, de Criciúma, Rel. Des. Cid Goulart, julgada em 31/05/2011). Não comprovado que a gestante foi submetida a laqueadura tubária ou que o médico lhe tenha garantido que a realizou com sucesso, até porque não houve autorização escrita do casal e sim apenas do marido, sem firma reconhecida, além da existência de complicações da gravidez da época que resultaram no nascimento de criança com problemas de saúde, não pode a mulher reclamar do Estado indenização por erro médico em virtude de ter engravidado novamente.
"Não demonstrado, pela prova produzida, erro médico na realização de cirurgia de laqueadura tubária, não há como imputar culpa ao profissional por superveniente gestação indesejada, dado que, segundo conhecida literatura médica e fartos precedentes jurisprudenciais, nenhum método contraceptivo, desde que manejado via técnica adequada, é garantia de absoluta infalibilidade, tanto mais porque, cuida-se, na hipótese, de obrigação profissional de meio". (TJSC, AC n. 2008.016333-7, de Timbó, Rel. Des. Eládio Torret Rocha, julgada em 02/09/2010). (TJSC, Apelação Cível n. 2010.000421-2, de Joinville, rel. Des. Jaime Ramos, j. 03-11-2011).

Enviei essas informações a C., que me respondeu:
"Lola querida, muitíssimo obrigada pela gentileza em me responder com o material enviado pela Promotora.
Eu já consultei um médico (particular) que disse que não faz porque eu 'ainda' não tenho filhos. Daí seguiram-se minhas explicações que não é ainda, é nunca quis ter, nem terei.... decisão tomada desde a adolescência! [Sei como é, C. Meu caso é o mesmo!]
Ele disse que ele não faz pois a mulher pode se arrepender. Sinto-me violada em meu direito de decisão. Não sei se é opinião só dele. Se for tudo bem, meu medo é que outros pensem como ele.
Olhei os julgados e links e realmente não consta sobre um caso como o meu.
Mas, pela lei, sei que o que não é proibido, que é permitido... então, é com isso que conto.
Vai ser um sossego se eu conseguir fazer, já que não posso tomar anticoncepcionais. 
Vou procurar outros médicos e vou te informando.
Eu pretendo fazer com médico particular mesmo, numa realidade bem melhor que a maioria que precisa do SUS, já me considero uma sortuda por isso. 
Tenho pavor de engravidar e será um sossego quando fizer.
Mais uma vez, muito obrigada pela delicadeza em me responder."

209 comentários:

«Mais antigas   ‹Antigas   201 – 209 de 209
Anônimo disse...

Moro na França e acredite aqui também não é "mamão com açucar" nem para a cesárea e muito menos para a esterelização...

Anônimo disse...

Maria conhece aquela história da bala? Pois é , na verdade na verdade , o que deveria nos proteger das doenças venéreas é a boa moral e claro a dona higiene. A camisinha veio como uma segunda opção já que as pessoas se esqueceram das duas coisas. Nem todo mundo gosta de camisinha e pra piorar existe até reação alérgica forte ao latex contido nela..então paciencia, estamos falando de um procedimento que envolve apenas a vida de uma unica pessoa: da propria mulher. Melhor esterelizar que abortar...pelo menos no meu ponto de vista.

. disse...

Maria Valéria, a definição entre esterilização e contracepção é bem controversia para muitos, mas há de se levar em consideração a fisiologia para entender melhor a distinção entre as duas situações. Prefiro não definír a esterilização como metodo contraceptivo ainda que adicionando o termo "definitivo". Discussão banal, ao final que tristeza a classe médica ter tantos receios em ajudar nossas mulheres com essa conversa lavada de "arrependimento".
Quanto a sua ultima opinião, não creio que seja uma questão de preconceito, isso porque o médico responsável pela esterilização feminina não é o mesmo responsável pela masculina, não há portanto discriminação ao aceitar e / ou recusar procedimentos em ambos pacientes da parte do mesmo profissional. Quem sabe seja uma questão de medo literalmente de se meter em algum problema, já que em nossa sociedade temos a cultura do " te processo" por qualquer babaquice. As pessoas estão sempre preocupadas em achar um bode expiatório para remidir seus pecados...

. disse...

E consequentemente os médicos provavelmente seriam mais favoráveis em praticar o procedimento...

Anônimo disse...

Querido, incoerente e egoísta seu comentário. Médico antes de mais nada é um ser humano como qualquer outro, porque não teria o direito de resguardar seus valores morais mesmo dentro da profissão? Porque teria que submeter-se a procedimentos que lhe traria desconforto, medo, tristeza arrependimento e tantos outros sentimentos negativos para o bem do paciente? Não existe pacientes com todo tipo de credo e valores? Porque médicos deveriam ser tão neutros ao ponto de ignorar seus credos e seus valores? Assim com nem todo advogado quer defender assassino e violentador de crianças nem todo médico quer se submeter as necessidades de seus pacientes, necessidades das quais nem sempre são vitais, basta ver a quantidade de cirurgiões plásticos que aceitam tornar seus pacientes figuras bizarras frutos de suas próprias insanidades: mulheres com seios gigantescos, homens com chifres e por aí vai. Meu amigo, meu médico de confiança não quis fazer a esterilização em mim, confesso que fiquei triste, mas ele pediu a um amigo dele que me fizesse. Ao final, eu entendi que assim como eu tinha o direito de fazer , ele tinha o direito de se recusar, mas o mais importante ele fez, me apoiou de outra forma.

Anônimo disse...

Pois é. Tenho 32 anos, nao posso com hormonios.
Decidi nao ter filhos desde criança. Uso preservativo mas fico com neura d engravidar... Por causa disto transo raríssima vezes, sempre tenho receio/medo...
Pelo SUS, dizem p mim q nao existe laqueadura p o meu caso. E nao tenho renda e nem convênio p fazer n particular... Como resolver a questão. Queria ter mais segurança p não engravidar... Tenho pavor no assunto de aborto...

Unknown disse...

Tenho um casal de filhos e a mais nova tem 12 anos e eu já tenho 40 anos. Será que posso fazer uma laqueadura?

Unknown disse...

Boa noite. Adoraria fazer parte deste grupo. Vamos levantar nossa bandeira "laqueadura sim"!!

Anônimo disse...

Vc acha que uma paciente pode processar o médico por ele não querer fazer a cirurgia que a lei permite e ganhar a causa?

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