Quinta-feira passada morreu Blake Edwards, aos 88 anos. Quem?, muita gente pode perguntar, já que ele não fazia filmes havia anos. Mas ele era marido da Julie Andrews (foi durante 41 anos), e essa vocês conhecem, espero. Julie é uma lenda no cinema desde A Noviça Rebelde. E Blake foi um dos mestres da comédia. Da Pantera Cor de Rosa e do desastrérrimo Inspetor Clouseau eu nunca fui grande fã, mas Um Convidado Bem Trapalhão, praticamente um filme mudo com aquele grande ator que era Peter Sellers, é genial (veja uns pedaços aqui). Bonequinha de Luxo, que imortalizou a Audrey Hepburn, é fofo também. Já Mulher Nota 10, com a Bo Dereck, eu nunca vi, mas não precisava ver pra saber, já aos 12 anos, que aquela besteira era machista. E lembro quase nada de S.O.B. (iniciais pra fdp, em inglês), o recadinho que Blake mandou pra Hollywood. Apenas que era esquisito pacas. Mas tudo bem, porque Blake fez pelo menos uma obra-prima (se você não aprovar a comédia-pastelão de Um Convidado): Vitor ou Vitória. Aquilo é tudo. É parte musical, parte comédia sofisticada, e parte libelo contra a homofobia. Você só tem que sobreviver ao comecinho, que é quando uma Julie faminta e miserável tenta não pagar a conta num restaurante colocando no seu prato uma... barata. Feche os olhos quando Julie começa a vasculhar sua bolsa.
O resto é tudo festa e discussão de gêneros. Julie, ou Vitória, não faz sucesso como mulher. Então, seguindo a sugestão de seu amigo gay Robert Preston, ela finge ser um travesti. E aí estoura. O problema é que captura o coração de um mafioso, que sente-se muito desconfortável por sentir-se sexualmente atraído por um travesti (veja um lindo trecho aqui). Numa das cenas, o chefão conversa com seu principal guarda-costas, que ele descobre ser gay. E lhe pergunta, mas pô, como você pode ser gay? Você é todo másculo e tal. E o guarda-costas responde que, pra não ser xingado de viado, ele precisou ser machão e violento desde a adolescência. No meio da conversa, o mafioso tem uma discussão à toa, pura marcação de território entre machos, com um sujeito. Eles agendam um duelo, uma luta de boxe, pro final da noite. Quando o chefão descobre que acabou de desafiar um campeão peso-pesado, o guarda-costas emenda: “Não se preocupe, chefe. Ele é gay”.
Todo mundo tá fantástico no filme, mas meus preferidos, além da Julie, são Robert e Lesley Ann Warren (ambos foram indicados ao Oscar de coadjuvante por suas atuações). Lesley faz a típica loira amante do chefão, mas ela passa a flertar com Robert, que é abertamente gay. Segue-se este diálogo:
Lesley: “Acho que a mulher certa podia te reformar”.
Robert: “Sabe, acho que a mulher certa podia te reformar também!”
Lesley: “Eu, desistir dos homens?! Pode esquecer!”
Robert: “Você tirou as palavras da minha boca”.
Se hoje já seria ousado fazer um filme assim, imagina em 1982 (ou melhor, talvez os anos 80 pré-backlash fossem muito mais liberais do que os tempos de hoje). Naquele ano, havia uma série de grandes filmes (todos bem críticos ao sistema) concorrendo ao Oscar: fora Vitor ou Vitória, tinha Tootsie, ET, O Veredito, Desaparecido. Deram a estatueta pra Gandhi.
O resto é tudo festa e discussão de gêneros. Julie, ou Vitória, não faz sucesso como mulher. Então, seguindo a sugestão de seu amigo gay Robert Preston, ela finge ser um travesti. E aí estoura. O problema é que captura o coração de um mafioso, que sente-se muito desconfortável por sentir-se sexualmente atraído por um travesti (veja um lindo trecho aqui). Numa das cenas, o chefão conversa com seu principal guarda-costas, que ele descobre ser gay. E lhe pergunta, mas pô, como você pode ser gay? Você é todo másculo e tal. E o guarda-costas responde que, pra não ser xingado de viado, ele precisou ser machão e violento desde a adolescência. No meio da conversa, o mafioso tem uma discussão à toa, pura marcação de território entre machos, com um sujeito. Eles agendam um duelo, uma luta de boxe, pro final da noite. Quando o chefão descobre que acabou de desafiar um campeão peso-pesado, o guarda-costas emenda: “Não se preocupe, chefe. Ele é gay”.
Todo mundo tá fantástico no filme, mas meus preferidos, além da Julie, são Robert e Lesley Ann Warren (ambos foram indicados ao Oscar de coadjuvante por suas atuações). Lesley faz a típica loira amante do chefão, mas ela passa a flertar com Robert, que é abertamente gay. Segue-se este diálogo:
Lesley: “Acho que a mulher certa podia te reformar”.
Robert: “Sabe, acho que a mulher certa podia te reformar também!”
Lesley: “Eu, desistir dos homens?! Pode esquecer!”
Robert: “Você tirou as palavras da minha boca”.
Se hoje já seria ousado fazer um filme assim, imagina em 1982 (ou melhor, talvez os anos 80 pré-backlash fossem muito mais liberais do que os tempos de hoje). Naquele ano, havia uma série de grandes filmes (todos bem críticos ao sistema) concorrendo ao Oscar: fora Vitor ou Vitória, tinha Tootsie, ET, O Veredito, Desaparecido. Deram a estatueta pra Gandhi.
24 comentários:
Tootsie é um filme e tanto, mas eu nem sabia que tinha algum Edward Blake na ficha técnica, só me lembro dele porque foram TOOTSIE e A PRIMEIRA NOITE que fizeram ter o fascínio por Dustin Hoffman.
Tootsie não é do Blake Edwards, é do Sydney Pollack, que morreu faz dois anos. Mas foi uma coincidência incrível que dois filmes desafiando convenções de gênero (masculino/feminino) tenham saído no mesmo ano, 82.
Caramba.
Faz uns seculos desde que vi esse filme. E os outros que vc citou tb são muito bons.
Mas pq vc considera ET como critico ao sistema?
Me parece uma fabula bem familia.
(isso não é desmerecimento)
Aaaaaaaamo Victor ou Victoria. Acho fantástico e muito divertido. Adoro musicais e sou muitíssimo fã da Julie Andrews. Fico triste de não ter nascido mais cedo para vê-la nos palcos (ela fez o Victor ou Victoria na Brodway, imagina!). Eu ia enlouquecer. Huahahaha. Olha que tiete.
Também achei o filme muito interessante no trato com os homossexuais. E lembro de uma parte que me chamou muita atenção:
Quando o mafioso namorado dela já sabe que ela é ela e já foi para a cama com ela, ele pede que ela revele ao mundo que é mulher, para que não achem que ele é gay. Copio o diálogo (é, tenho o filme no meu computador):
ELE: Estou achando essa viagem um pouco mais bizarra do que o normal.
ELA (com ironia): Muito obrigada.
ELE: Não é você.
ELA: Por que não? Uma mulher fingindo ser homem...
ELE: Você pode parar de fingir.
ELA: E fazer o que?
ELE: Seja você mesma.
ELA: E o que seria isso?
ELE: Como assim? Uma mulher apaixonada por um homem... Estamos nos comunicando?
ELA: Você disse "uma mulher apaixonada por um homem", mas não terminou.
ELE: E qual é o final?
ELA: Uma mulher apaixonada por um homem, fingindo ser homem...
ELE: Você pode parar de fingir.
ELA: Eu acho que não quero parar. Sou um sucesso agora. E tem mais. Acho tudo isso muito fascinante. Há coisas que tenho como homem que jamais terei como mulher. Estou emancipada.
ELE: Emancipada?
ELA: Sou meu próprio homem, por assim dizer. Você deveria se identificar com isso.
ELE: Estou tendo dificuldade de me identificar com qualquer coisa agora.
ELA: Seria justo se eu te pedisse que desistisse do seu trabalho?
ELE: Seria ridículo...
ELA: Mas espera que eu desista do meu.
ELE: Há uma diferença, pelo amor de Deus.
ELA: Mas não deveria ter.
Eu acho esse diálogo brilhante (e ele continua). Aborda tantas questões relacionadas ao feminismo e à homofobia.
Adoro o filme. Recomendo a todos!
Ah, Lola, os anos 1980 eram, com certeza, muito mais liberais que os dias de hoje. ^_^
Não sei se a decada de 80 era mais liberal per si.
Mas pelo menos depois do "fim" da Gerra Fria, parecia que todo mundo tinha uma expectativa de que o "futuro" sera mais "leve".
Que tanta raiva e odio iam diminuir...
Infelizmente acho que substimamos a força do preconceito e conservadorismo.
Não acho que a sociedade hoje seja mais conservadora que há 30 anos.
Embora eu não estivesse vivo na época, acredito que a liberalidade de tais tempos não era vivida por toda a sociedade. Não me parece que ia muito além da classe média das grandes cidades.
Hoje eu tenho a impressão de que esses valores estão mais disseminados por outros extratos sociais. E suas conquistas são vistas quase como normais, gerando maior reação de setores conservadores.
Não estava lá pra saber se a sociedade dos anos 80 era mais liberal que a de hoje... o que me irrita é que hoje estão ganhando fama muito mais filmes "prontos para consumo". Filme comercial sempre existiu, mas a tecnologia está proporcionando um advento surreal de arte sem conteúdo.
Por isso acabo gostando mais dos filmes antigos, mesmo que eles reflitam mentalidades bem divergentes das atuais. ;)
Meninos e meninas, eu vi...a década de 80 era muito mais liberal. Havia um avanço palpável, as pessoas queriam as mudanças e não estavam morrendo de medo. Sim, isso era mais forte nas classes médias urbanas, mas havia grande expectativa de que atingisse todo o mundo. A gente sonhava com um mundo igualitário, os gays poderiam andar de mãos dadas nas ruas, talvez os homens usassem saias e vestidos, o casamento seria apenas a relação estável entre duas pessoas que se amam.
Depois vieram os anos 90 e a patetada do backlash, dos yuppies, da grana a qq custo. Ficaram nossos sonhos por lá.
Mas eu entrei aqui só para compartilhar com você, Lola, que eu amo o blake edwards também e no dia da morte dele aconteceu uma incrível coincidência. Estava eu tomando café da manhã com meu filho e ele fez umas três coisas meio desastradas. Daí lembrei na hora de convidado bem trapalhão e falei para ele do filme. Ele ficou super a fim de ver e riu muito do que eu contei. Horas depois fiquei sabendo da morte do cara.
Crianças (rs),
Liberal, mas liberal mesmo, foi 1968.
Sim e não.Vivemos na época do politicamente correto que faz com que fiquemos cada vez mais conservadores. mas também muito mais gente tem voz para falar. nos anos 80 cada um tinha o seu grupo ponto final. hj o cool e ser de todas as rodas, queremos todos os espaços. então o presente tem coisas ultra conservadora mais também tem outras extremamente liberal vide esse ótimo blog
eu acho
Sim, Lola, eu percebi depois que não disse ser TOOTSIE pertencente a Black Edwards, mas preferi tive a preguiça de corrigir o texto. E também o fascínio por Dustin Hoffman a que me referia era meu.
LAETITIA:
Filme comercial sempre existiu, mas a tecnologia está proporcionando um advento surreal de "arte sem conteúdo".
(off-topic)
"Arte sem conteúdo" parece-me um dizer um pouco trivial, essa definição da arte pela arte sempre me fez espécie.
Estou a escrever a minha tese em arquitectura, e a arquitectura, como usualmente se define, é a arte e técnica de construir. O cinema é, para mim, a mesma coisa que a arquitectura, uma mistura de arte e técnica, e, tal como temos arquitectura que de arte não têm nada, no cinema também temos o mesmo, amontoados de técnica retirados de uma cartilha qualquer.
Tenho lido bastante autores que falam de arte, mas mesmo assim ainda não está bem definido, pelo meno para mim O QUE É A ARTE, por isso já que tocaste na questão, era de uma grande ajuda se mostrassem o vosso ponto de vista sobre o que é a arte, citando ou não autores que leram, pois estou a incluir na tese não apenas a opinião dos académicos (o meu orientador me aconselha o contrário, mas estou a cagar-me, odeio formatações).
Eu lembro de vários filmes libertários dessa época. De fato, os anos oitenta, com seu caos imagéticoe suas liberdades conquistadas foram muito mais libertários nas representações da sexualidade. E digo mais: os 90 tb! Alguém lembra de Pricila, aquele filme aiquetudo! Gente, onde estão essas obras? Tá tudo tão cafona, tão ortodoxo, tão heteronormativo, umas sexualidades reguladas, empacotadas, engomadinhas. Não foi só o medo da Aids, é a repressão da política conservadora imperialista, das forças do fundamentalismo religioso. Ai, pára tudo! Quero retroceder!
Lembro de ter assistido Tootsie em uma das tardes assistindo Sessão da tarde na infância e adorava, mas Vitor ou Vitória nunca vi. Curioso mesmo que nessa época surgissem dois filmes que mesmo hoje em dia seriam considerados controversos (pelo jeito certas mudanças vem em passos de tartaruga).
Adoro quando vc fala de filmes antigos, porque esses de hoje em dia, não estou conseguindo encarar, rsrs...
puxa, um dos melhores filmes q vi, vitor ou vitoria, tem chances de re make?
Lola voce viu o filme A FITA BRANCA , do Michael Heneke? que achou?
Eleuza, acho que não tem chance de Vitor/Vitória ser refeito não. Sinal de que retrocedemos é que um filme como esse não faria sucesso hoje em dia!
Fátima, tem minha crítica de A Fita Branca na letra F.
Estou tentando elaborar uma lista dos melhores (e piores) filmes da década! Sugestões são muito bem-vindas!
Pentacúspide,
Provavelmente eu me referi sim a uma visão pessoal minha sobre a arte, quando usei a expressão "arte sem conteúdo". Eu acredito que arte não combine em nada com comércio, por isso, ver uma explosão de filmes meramente recreativos (roteiros simples, atores fracos, uso excessivo de efeitos especiais) me frustra quanto às minhas expectativas na arte. Gosto de cinema, e de uns tempos pra cá vejo que são poucos os filmes do "grande circuito" que consigo assistir com reflexão, ou ao menos com emoção (já vi filmes "simples" que me emocionaram, como Bonequinha de Luxo, por exemplo). Aí, acabo ficando com os meus velhos e bons Chaplins.
Mas o cinema é só um exemplo da cultura tecnológica e globalizada se fundindo à arte e transformando-a a em mais um mero objeto de consumo. Basta ver um fenômeno que não acontecia, décadas atrás: a manipulação digital de imagens e sons. Hoje, você ouve uma música e não tem certeza se a voz do cantor era mesmo daquele jeito. Vê uma foto e nota que as características do corpo humano foram nela alteradas. Isto, ao meu ver, é mortal para a arte, porque (novamente, uma visão pessoal) a arte é expressão do ser humano, não da máquina.
Pois, Letícia, é por essa razão que eu fico totalmente perdido quanto ao que significa a arte.
Antes o artista é aquele que arrebatava a multidão deixando-a extasiado, hoje a televisão consegue fazer isso sem que isso seja arte.
A arte e a filosofia andaram juntos por algum tempo, hoje parece que há uma ruptura abismal entre as duas coisas, tornando-se "a arte" apenas um objecto de entretenimento e de fazer dinheiro. A técnica sobrepõem-se muito grandemente ao talento, passando ela a ser chamada de arte (mas essa é a minha visão), no cinema temos filmes de merda com bom CGI, visualmente arrebatadores, mas que não passam disso, na arquitectura temos edifícios formalmente fantásticos, mas funcionalmente defeituosos, mas são chamados artísticos, porque, com o desenvolvimento da média e a facilidade de comunicação a imagem tem-se sobreposto ao conteúdo.
A minha dúvida é esta: não devíamos definir a arte pelos padrões socioculturais actuais em vez de nos guiarmos pela catequese clássica?
Lola,
adoro Vitor e Vitória. E sempre gostei de Blake Edwards mesmo quando não fazia filmes tão bom.
abs
Jussara
Não é tanto que os anos 80 fossem liberais. É que o cinema entre as décadas de 70 e meados de 80 esteve com a parte criativa totalmente nas mãos dos diretores - o cinema era bastante autoral. Daí esses filmes, mais Taxi Driver, Apocalypse Now e outros.
Mas aí os estúdios recuperam o poder sobre a criação...
http://migre.me/3aPcM
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[]s,
Roberto Takata
Concordo contigo, none, pois a liberalidade dos anos 80 não deve ser assim tão boa para fazer os pretos quererem voltar a essa época.
Adoro todos eles, adoro os filmes deles... ah, eu amo cinema!
P.s.: A Julie é diva absoluta!
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