quarta-feira, 27 de novembro de 2002

CRÍTICA: ABRIL DESPEDAÇADO / Faroeste caboclo

A manchete da "Notícia" lia: "Cinema brasileiro está com tudo. Finalmente os catarinenses poderão apreciar 'O Invasor' e 'Lavoura Arcaica'". O maridão quis saber: "Tudo isso em São José?". De fato, nenhum dos dois filmes estreou em Joinville. Mas eu já desconfiava que Ville, Ville não faz parte de Santa Catarina. Me convenci disso da última vez que o "Fantástico" divulgou o Festival de Dança mencionando uma certa cidade chamada Joinville, Paraná. Bom, nem tudo está perdido – aqui, nas salas paranaenses, chegou "Abril Despedaçado".

Lá fui eu, toda prosa, prestigiar um filme de arte. E, embora tenha gostado muito da obra, farei uma revelação inédita. Toda revelação é inédita, ó redundância? Não importa. A realidade é que esta incrível revelação não consta de nenhum artigo que li sobre "Abril". É o seguinte: não entendi bulhufas. Não da história, que é simples, mas dos diálogos. Quando surgiu a narração em off e eu comecei a perder uma palavra a cada três, pensei: "pô, deveria ter usado cotonete hoje". Mas vi que um casal de amigos tinha a mesma reação. Praticamente a cada frase, a moça perguntava: "O que foi que ele falou?". E eu só via o cara dando de ombros. Apesar de eu e minha amiga sermos professoras de inglês, falamos o português com certa desenvoltura, eu acho. Por que, então, só compreendi 60% do que os atores conversavam na tela? Fazia um tempinho que o cinema nacional não me pregava esta peça (obviamente, pulei "O Auto da Compadecida" ao constatar que não assimilava uma palavra do trailer).

Aí percebi por que "Abril" fez tanto sucesso no Festival de Veneza, foi indicado pro Globo de Ouro, e recebeu do Minghella, diretor de "O Paciente Inglês", o elogio de ser o mais próximo que um filme pode chegar da poesia: o pessoal do exterior assistiu à produção com legendas! Deve ajudar ver "Abril" sem se preocupar com os diálogos, né? Depois, li numa entrevista do Walter Salles que ele teve problemas com o som dolby. Mas ele não solucionou o negócio? Vi "Abril" na melhor sala do Paraná, quero dizer, SC. Voltemos à antiga campanha: legendas pros filmes nacionais já!

Felizmente, "Abril" agrada bastante mesmo descontando o som. Os diálogos nem são tão fundamentais na trama baseada no romance do albanês Ismael Kadaré, só que transposta pro sertão nordestino de 1910. Nele, duas famílias travam uma secular briga pelas terras. Uma mata o filho da outra, numa rixa sem fim. Fora os homicídios recíprocos, até que as famílias se respeitam. Penduram a camisa vermelha de sangue num varal e só partem pra vingança quando ela amarela. Enquanto isso, o assassino usa uma faixa preta no braço significando que ele tem um mês pra se tornar um cabra marcado para morrer.

Morrer não parece ruim numa rotina tão vazia de perspectivas. O maridão, que vez por outra reclama de barriga cheia que "Minha vida é um inferno!", re-avaliou sua posição após ver "Abril". Agora ela anda dizendo "Minha vida é legal". O que mais me chamou a atenção foi como as pessoas se conhecem, se nem saem de casa. Por acaso, os dois irmãos do filme acabam encontrando uma bela moça do circo. Ao irmão mais velho, ela ensina o amor; ao mais novo, a fantasia. Porém, numa das poucas frases que entendi, um personagem diz ao outro: "a gente é que nem os bois – roda, roda, e não sai do lugar". É, a bolandeira, moenda, nem sei direito o que é isso, é parte recorrente da história. Os bois estão tão presos ao seu cotidiano que rodam sozinhos até nas horas vagas. É uma desolação. E os humanos não ficam atrás.

"Abril Despedaçado", que é um título lindo, tem essa preocupação com o tempo. A própria moenda lembra um relógio avisando o irmão quantos dias lhe restam de vida. Mas, pra mim, o tema central é o corpo em movimento. As imagens mais marcantes saem daí: o menino no balanço, a moça que gira na corda, a correria da primeira morte. "Abril" é como se fosse um faroeste sertanejo. Se homenageasse "Limite" até as últimas conseqüências, seria mudo. E aí talvez fosse ainda melhor.

Um comentário:

luci disse...

haha

"Por que, então, só compreendi 60% do que os atores conversavam na tela? Fazia um tempinho que o cinema nacional não me pregava esta peça (obviamente, pulei "O Auto da Compadecida" ao constatar que não assimilava uma palavra do trailer"

sou paraibana e posso dizer que mesmo pra mim foi dificil entender certos dialogos. mas voce nao viu o auto da compadecida? eh lindo! eh um filme bestinha, mas achei lindo. e se passa no interior da pb (o chato disso eh que todo mundo, que ja tem a ideia geral de que a paraiba eh um deserto, reafirma sua visao ignorante sobre).

vou passar abril pros franceses que moram comigo assistirem. ja que tem legendas, neh... prefiro passar "abril" a passar "o auto", porque acho que as sacadas desse ultimo nao vao conseguir ser captadas por legenda nenhuma. eh lindo