sábado, 30 de novembro de 2002

A MORTE DO MAIS SELVAGEM

Billy Wilder morreu. Quem acha que os filmes pré-1981 integram o cinema mudo ou são em preto e branco – ou seja, quem não viu nenhuma obrinha antes deste tempo – nem sabia que Billy estava vivo. Aliás, desconhecia que existisse um diretor com este nome que, em português, significa “mais selvagem”. Foi em 81 que Billy fez seu último filme, que não era grande coisa e se chamava “Amigos, Amigos, Negócios à Parte”. Uhm, por incrível que pareça, esta comédia não era muda ou em preto e branco.

Pode-se dizer que o último a deter o título de maior diretor vivo acabou de bater as botas. Billy foi um dos gigantes de Hollywood. Seu legado de 26 produções inclui um monte de obras-primas. Infelizmente, aqui no Brasil, elas são meio difíceis de serem vistas. A TV aberta não as passa com freqüência, e boa parte não está disponível em vídeo ou DVD. Tomara que agora alguém decida lançar um pacote.

Billy tinha 95 anos e era um poço de bom humor. Nasceu na Áustria e, pra fugir do nazismo, foi pros States em 1934, sem saber uma palavra de inglês. Isso não o impediu de virar roteirista (seus scripts eram traduzidos) ou de transformar-se num americano típico, desses que usam boné e gírias da moda e prestigiam jogos de beisebol. Mas, como proferiu um personagem de “Quanto Mais Quente Melhor”, um de seus clássicos absolutos, “ninguém é perfeito”.

E por falar nesses clássicos, vou comentar alguns apenas. É provável que o maior de todos seja “Crepúsculo dos Deuses” (1950), uma história ácida narrada por um cadáver – um roteirista bonitão que, sem querer, passa a fazer parte da vida de uma ex-estrela de cinema. Lá pelas tantas, ele diz a ela: “Você já foi grande”, no que ela rebate: “Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos”. Tragicômico e belo, “Crepúsculo” é a descrição mais apurada que Hollywood ousou fazer de si mesma. O chefão da MGM, Louis B. Mayer, odiou tanto a produção que xingou Billy a plenos pulmões: “Seu miserável, você desgraçou a indústria que te fez. Você deveria ser expulso daqui!”. Billy deu-lhe o troco sete anos depois, quando o funeral de Mayer atraiu uma multidão: “Isso comprova tudo: dê às pessoas o que elas querem ver, e elas comparecerão”. Mas só na mente pervertida de Billy é que se passava que o público queria ver corpos em decomposição. A primeira cena de seu “Crepúsculo” acontecia num necrotério. A reação da platéia de exibições-teste (sim, essa praga já existia naquela época) fez com que Billy mudasse o início pra cena do protagonista boiando na piscina.

Há quem prefira “Farrapo Humano” que, apesar de também transbordar com humor negro, é um retrato sério e fiel do alcoolismo. Em 1945, Billy transformou o galã Ray Milland em um escritor alcoólatra que esconde garrafas de bebida pelo apartamento e é capaz de trocar a máquina de escrever, seu instrumento de trabalho, por alguns goles. Ou melhor, ele tenta trocá-la, pois a história toda ocorre num final de semana (no título original, “O Fim-de-Semana Perdido”), bem no meio de um feriado judaico, e o pobre bebum vai de loja de penhores em loja e encontra tudo fechado, numa das seqüências mais célebres desta pérola.

Ou quem sabe você seja adepto do film-noir, e aqui Billy também deixou sua marca. “Pacto de Sangue” (1944) conta a trama de um corretor de seguros especializado em desvendar fraudes. Adivinha o que ele decide fazer logo após se envolver com a femme fatale Barbara Stanwyck? Ora, fraudar a apólice, claro. Barbara era uma estrela classuda, e Billy queria uma atriz caindo pelas tabelas. Assim, ele pôs nela uma peruca loura bem vagabunda, o que causou um produtor a reclamar: “Pô, a gente contrata a Barbara e recebe o George Washington?!”. Mas valeu a pena. O ótimo “Corpos Ardentes”, inclusive, se encarregou de homenagear “Pacto” décadas mais tarde.

Tudo bem, pode ser que o jornalismo seja mais sua praia. Neste caso, Billy inventou dois clássicos que deveriam constar da grade curricular de qualquer aspirante a repórter: “A Montanha dos Sete Abutres” e “A Primeira Página”. Ou de repente você gosta mais de comédias. Aí tem “Quanto Mais Quente Melhor”, considerada uma das melhores já feitas, e “Se Meu Apartamento Falasse”, que valeu a Billy seu segundo Oscar. Ah, e não esqueçamos aquela cena com o vestido da Marilyn levantado pelo ventinho que vem do metrô, aquela, que entrou no imaginário da cultura pop. Está em “O Pecado Mora ao Lado”. Sobre Marilyn, Billy declarou: “foi como ter trabalhado com Hitler”.

Então, estamos combinados. Se alguém souber de algum outro diretor cínico e mordaz que deixou uma legião tão vasta de filmaços, por favor, me avise, tá? E, nesses dias de sisudez absoluta, de total falta de senso de humor, vale lembrar uma das frases do genial Billy Wilder: “Se há uma coisa que detesto mais do que não ser levado a sério, é ser levado a sério demais”.

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