quarta-feira, 24 de julho de 2019

PROJETO SEVERINAS, O FEMINISMO NO SERTÃO CEARENSE

Meninas do Assentamento Recreio com o cartaz da exposição

Conheci Mayara Albuquerque em 2015, quando tive a honra de palestrar num congresso sobre gênero no sertão
Agora em fevereiro, pude fazer parte da sua banca de mestrado na UECE de Quixadá, em que esta jovem brilhante dissertou sobre como incluir o ensino de escritoras mulheres nas aulas de literatura nas escolas públicas de Quixeramobim, Ceará (leia sua dissertação inspiradora aqui).
Quixadá, 2015
Eu já conhecia seu lindo projeto, que ela compartilha aqui com todxs nós. Leia e apaixone-se pela iniciativa desta militante feminista e professora do ensino médio no sertão nordestino. E conheça o Projeto Severinas no Instagram.

Mayara em ação
Se alguém na próxima vez me perguntar o porquê do projeto vou lembrar do que um dia desses veio na cabeça e dizer: foi a forma de conhecer mulheres que sempre quis conhecer sem a timidez atrapalhar. 
A forma tímida na hora de conversar permanece e a câmera deveria atrapalhar no lugar de ajudar, mas é o meu pretexto, a minha grande carta na manga. Não poderia dizer para uma mulher que nunca vi na vida: “oi, saí de casa, rodei alguns quilômetros de moto, às vezes solitariamente, só para vir te conhecer e por aí eu te chamo carinhosamente de Severina”. Provavelmente ela me acharia  uma pessoa não muito boa das ideias e até mesmo perigosa. 
Convite da primeira exposição do ano
Para entrar labirinticamente nas veredas do Sertão com a minha moto pequena, sem bolsas de couro penduradas, resolvi escrever e concorrer a um edital. A felicidade é que ganhei, me tornei uma proponente e, assim, teria recurso público para espalhar a palavra do feminismo Sertão afora.
Oficina Vivência Feminina de Autoamor: Somos Todas Uma, com Ruanna Azevedo na Escola Humberto Bezerra, em Quixeramobim
O projeto é Severinas Mulheres do Sertão e eu sou a Mayara Albuquerque, ou uma jovem mulher, professora, leitora de mulheres, pesquisadora de gênero, lgbt e tudo mais que o atual governo adora, só que não. Escrevendo divago muito, já falando me perco nas palavras e até mesmo para explicar o projeto para as mulheres depois de bater em suas portas ansiando uma resposta ao meu “ôôô de casa” não é fácil. Eu digo que estou lá para conhecer a história delas e a maioria acha graça. 
Margarida e Raimunda são irmãs. Raimunda, que segura a foto da mãe, faleceu no começo do ano. Esta foto saiu da exposição direto para a parede da casa dela. Raimunda era cega
A minha relação com as mulheres do campo vem de alguns anos e posso dizer que a minha vida nunca mais foi a mesma. Tive a oportunidade de trabalhar em uma ONG como comunicadora popular e conheci mulheres que nunca mais esquecerei. Socorro, Didi do Sossego, Didi da Aroeiras, entre muitas outras que me mostraram como o “perigo da história única” a que se reflete a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é real.  
Essas mulheres são múltiplas, desdobráveis, como diria Adélia Prado. No entanto, a mídia vê mulheres rurais com enquadramentos tão limitados que quando não são “sofridas”, são muito “guerreiras” e até a seca não é páreo para elas. A relação desabrochou tanto que mesmo em sala de aula nunca deixei de pensar com carinho nessas mulheres e no que o contato com elas me fazia e pensei no projeto como uma forma de permanecermos próximas.
Momento de meditação guiada por Maria Oliveira com as mulheres do Assentamento Canaã
Com o Severinas desenvolvemos oficinas em escolas públicas da cidade e zona rural, realizamos rodas de conversa que chamamos carinhosamente de Ciranda das Mulheres Sábias, em referência ao livro da psicanalista e poeta Clarissa Pinkola Estés, com mulheres de assentamentos e comunidades, e também fazemos exposições fotográficas nas zonas rurais com as fotografias das mulheres que vivem lá. É como costumo falar quando estamos reunidas, o projeto não é nosso, é de vocês, das Severinas. Não faria sentido expor na cidade quando a maioria não poderia ver a sua foto e levá-la para casa. Um dia devemos ocupar espaços mais centralizados, mas por enquanto queremos descentralizar e estar com elas. 
Margarida ao lado da margarida que plantou no quintal
Escrevi um texto sobre o projeto que fica disponível em uma painel nas exposições que fazemos e gosto muito dele: 
Catálogo-zine para prestação
de contas com a Secult
"A exposição fotográfica Severinas -- Mulheres do Sertão não é só sobre mulheres que carregaram água na peneira a vida toda, que foram silenciadas ou excluídas, é sobre  força também. A força de ser mulher, de mover o mundo com o ventre e a dor, com o sexo e o desejo, com as mãos e os pés, cabelos longos ou não. Severinas é sobre mulheres que vivem no Sertão e os seus cotidianos e o que aprendemos quando temos a oportunidade de compartilhar a vida com elas.  
O que nos lança nessa 'retirância' é transformar registros de viagens pelo interior do Ceará em exposições por comunidades e assentamentos para que as mulheres possam se reconhecer de uma maneira digna: com amor próprio, orgulhosas de suas identidades e raízes, desconstruindo o perigo da história única para assim revelar narrativas múltiplas e quebrar o processo de invisibilidade que carregam ou carregaram ao longo de suas vidas". 
Maria Oliveira rodeada de meninas na Oficina Tecendo Novas Mulheres com a Literatura de Autoria Feminina na escola Liceu de Quixeramobim, na comunidade Uruquê
Os dias de exposição são de festa. Fotografamos o máximo que podemos, conhecemos as mulheres e vamos criando laços e nos relacionando com a comunidade, até o momento  em que temos um bom acervo e os convites estão prontos. No dia é muita foto para ver, amigas para rever, além  da mesa com toalha de chita e café com bolo. 
Última oficina em parceria com a Funarte na comunidade Fogareiro
Terminamos exaustas, porém muito felizes. Falo no plural porque ao meu lado caminha uma grande amiga e companheira de projetos e sonhos que é a Maria Oliveira, sem ela nada disso seria possível. Assim como as mulheres e as instituições que nos financiaram ou ainda estão nos financiando, mesmo assim Maria e eu já entramos em acordo que mesmo que passemos em algum momento por um período sem recursos financeiros faremos o que for possível para continuar com as atividades. 
Irismar e sua bicicleta no Assentamento Olho D'Água do Forno
O primeiro edital que ganhamos fortaleceu a nossa jornada e muito. Com o “X Edital  Ceará de Incentivo às Artes 2015” da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará – Secult começamos a viajar e nos empoderar. Desde as primeiras viagens percebi que o projeto não finalizaria com um relatório final, mas que seria uma das grandes alegrias da minha vida. O que ocuparia a minha mente e me faria crescer como ser humano, me daria um pouco de preocupação e ansiedade para no final ser mais um dia memorável, me daria experiências pelas quais sem elas eu seria um pouco menos eu.            
Segunda exposição com o apoio da Funarte, no salão comunitário do Assentamento Parelhas
Muito empoderadas e acreditando no que estávamos fazendo resolvi inscrever o Severinas para o  “Prêmio Funarte Artes Visuais – Periferias e Interiores” da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e quase não acreditei quando vi o resultado. Nós tiramos o primeiro lugar, o primeiro! Depois disso percebi, de uma vez por todas, a sua potencialidade e  importância e que temos muito o que conquistar pela frente. 
Sempre digo que não sou fotógrafa, Maria também não é curadora, e juntas não somos artistas. Isso não é modéstia nossa e quem sabe um dia possamos ser essas coisas e muito mais, mas o que queremos mesmo é viver em um estado menos machista e ver mulheres mais empoderadas e derrubando o patriarcado com frases muito simples como um dia vivenciamos: “sai pra lá um pouquinho que hoje elas vieram me fotografar”. Foi o que uma das mulheres fotografadas disse para o marido enquanto eu tentei fazer um registro seu segurando minhocas.
Estandarte do projeto produzido pela professora e bordadeira Neyliane Oliveira. "O presente mais bonito que recebemos", diz Mayara
Por fim, resolvi escrever para Lola e pedir o espaço no seu blog, que sabemos não ser qualquer diário virtual, não porque eu quero visibilidade, mas porque precisamos valorizar o trabalho de mulheres, precisamos valorizar o que fazemos, sobretudo ouvir mulheres que nunca foram ouvidas e que desconhecem suas próprias vozes, seu próprio poder.
Ciranda das Mulheres Sábias no Assentamento Olho D'Água do Forno

8 comentários:

Marina disse...

Projeto lindo, fotos lindas!Parabéns!!

Dacruz Neto disse...

Cara, que projeto extraordinário! todos sertanejos, assim como eu, que se não fosse o blog da lola, dificilmente teria conhecido. fiquei encantado com esse projeto. parabéns cearenses feministas, por quanta sensibilidade as "severinas" de todo nordeste brasileiro.

titia disse...

Tem coisa mais linda? Projeto incrível, cheio de gente maravilhosa, um carinhozinho na alma tão abatida de quem às vezes cansa de tanto lutar. Parabéns Severinas!

Anônimo disse...

a) Lindo projeto.

b) Lola eu gostaria de sugerir um post sobre a mulher que perdeu a guarda do filho para o pai que e militar foi acusado de violencia domestica mas o juiz tirou o filho da mae alegando que ela mora em uma favela preconceito social o menino de 9 anos vai ter que mudar de cidade

Mayara Albuquerque disse...

Não sei o que comentar de tanta alegria que agora é fazer parte da história de um dos blogs mais necessários do nosso país. Muitas mulheres se descobriram feministas graças ao trabalho da Lola. Seguimos juntas!

Ton amour, seu bem, ta femelle. disse...

Projeto belíssimo, nao podia ser diferente vindo de quem vem. Serei sempre eterna apaixonada por seus projetos e pela pessoa por trás dos projetos.

Raul Plassman disse...

Li e chorei bem aqui, muito orgulho desse trabalho lindo e NECESSÁRIO...Mayara e Maria são jóias raras.

Ezilda Melo disse...

Que projeto maravilhoso. Que as Severinas dos sertões se juntem mais e possam publicar muitas histórias esquecidas. Pela literatura e direitos das mulheres sertanejas.