Como boa parte do país e do mundo, estou desolada com a vitória de Bolsonaro. Até o último momento, eu achava que daria pra virar. Não deu.
Certamente a diferença diminuiu. No início do segundo turno, algumas pesquisas falavam de mais de 20 pontos de distância. O placar final acabou sendo 55% para Bolso contra 45% para Haddad, contando apenas os votos válidos. Um resultado parecido ao de Dilma contra Serra em 2010.
Já no Nordeste, segunda maior região, com 27% da população, Haddad ganhou fácil, com 70% dos votos válidos contra 30% de Bolso. O Estado que mais resistiu ao fascismo foi o Piauí, que deu a Bolso apenas 23% dos votos. Já Santa Catarina e Acre foram os Estados que mais votaram em Bolso: nada menos que 76%.
Fora do Nordeste, Haddad ganhou apenas no Pará e Tocantins, por uma margem estreita. No Amapá e Amazonas, houve praticamente um empate.
No total, Bolso teve quase 58 milhões de votos. Haddad, 47 milhões. A soma de brancos, nulos e abstenções foi de 42,5 milhões. Em outras palavras, quase 90 milhões de brasileiros não votaram em Bolso, o que indica que a oposição a ele continuará sendo gigantesca, sem lua de mel. Mas eleição é isso mesmo: ganha quem consegue mais votos válidos.
E como aconteceu esta catástrofe que fará o Brasil regredir vários anos (talvez uns 50, prometeu Bolso em campanha -- e o que li ontem define bem o que esperamos: Bolso é o único candidato que torcemos para que não cumpra suas promessas)? Ainda não sabemos.
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Um eleitor de Bolso se
manifesta nas redes sociais |
Eu passei um ano ou mais tentando tranquilizar o pessoal de que alguém com o perfil de Bolso nunca seria eleito, que a comparação com Trump não era correta, porque aqui temos segundo turno. Mas algo aconteceu pra Bolso deslanchar para além do seu nicho de eleitores fiéis, de extrema direita como ele, que votaram nele não apesar das barbaridades que ele disse nos últimos 28 anos, mas justamente por causa delas. Eu pensava que Bolso não iria sair dos 25%. E, de fato, ele se manteve abaixo dessa faixa durante muitos meses.
Mas aí aconteceu a facada, no dia 6 de setembro. Nos primeiros dias após o ataque, a intenção de voto a ele não subiu. Mas certamente estancou o crescimento do seu índice de rejeição que, segundo várias pesquisas, já rondava os 50%. E a facada fez com que seus adversários imediatamente parassem de criticá-lo. Foi nesse momento que ele ultrapassou o seu índice além do seu eleitorado fiel (e além disso o atentado lhe deu desculpas para nunca mais participar de um debate).
Claro que isso também mais ou menos coincidiu com a saída definitiva de Lula da corrida eleitoral. Fazia um ano e meio que Lula era o franco favorito à presidência. Talvez, se permitissem que fosse candidato, seria eleito no primeiro turno (ele tinha 40% nas pesquisas, o dobro do segundo colocado, que era Bolso). Mas todo mundo sabia, e obviamente o PT sabia também, que tudo seria feito para que Lula não pudesse concorrer.
Eu fui muito crítica à demora do PT em definir a candidatura de Haddad, que só foi lançada faltando menos de um mês para o primeiro turno. É difícil analisar o que poderia acontecer se Haddad tivesse sido definido candidato antes. A tão esperada transferência de votos de Lula para Haddad não veio. Quero dizer, veio, mas não como se esperava. Afinal, se Lula tinha 40% dos votos nas pesquisas, e Haddad terminou com 29% no primeiro turno (contra 46% de Bolso), é prova de que muitos votos não foram transferidos. É de supor, inclusive, que várias pessoas que queriam votar em Lula acabaram votando em Bolso (o que é muito difícil de entender, pra mim, mas mostra que Lula seguia sendo maior que o PT). Ou talvez quem queria votar em Lula e não pôde acabou desistindo de votar.
Porém, a "onda Bolsonaro", o maior crescimento na campanha do candidato de extrema direita, se deu na última semana antes do primeiro turno. E esse motivo ainda carece de maiores explicações. Foi no momento que Edir Macedo (e, de bônus, toda sua emissora de TV, a Record) passou a fazer campanha para Bolso. Teve muita gente que culpou o lindo movimento Ele Não, organizado por feministas, que levou às ruas centenas de milhares de mulheres no dia 29 de setembro.
Obviamente é ridículo culpar o Ele Não pelo crescimento de Bolso na última semana do primeiro turno. Hoje sabemos melhor o que aconteceu: milhões de disparos de mensagens contra Haddad e outros adversários pelo WhatsApp, como revelado pela reportagem da Folha. Essas mensagens foram muito eficazes em divulgar todo tipo de fake news, inclusive mentindo adoidado sobre o que foi o protesto Ele Não (as fake news de Bolso usaram imagens de outros protestos, de outros países, como se fossem do Ele Não, e investiram pesado na narrativa de "mulheres bonitas e limpas da direita" contra "mulheres moral e fisicamente sujas, feias e peludas da esquerda").
Nós falhamos porque não conseguimos responder com sucesso a essa narrativa mentirosa, que não é de hoje. E falhamos porque, mesmo não sendo responsáveis pelo crescimento de Bolso, não fomos capazes de aumentar a sua taxa de rejeição. Era esse o propósito de um movimento chamado Ele Não: muito mais do que catapultar qualquer outro candidato, mostrar qualquer um, menos ele, era aceitável.
A pergunta que fica, pra mim, é: tem como vencer fake news no WhatsApp, num cenário em que a maior parte das pessoas usa a rede social como maior fonte de informações? Há que se reconhecer que a extrema direita (não só no Brasil, mas no mundo) foi muito mais hábil em usar esta ferramenta que a esquerda. E lógico que os experimentos não começaram agora, mas anos atrás.
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Um eleitor de Bolso foi votar vestido
de robô ontem. E as definições de
vergonha alheia foram atualizadas
com sucesso |
Hoje vejo que aquele fenômeno que chamamos de "comentarista de portal de notícias" (ou seja, pode ter certeza que as opiniões mais preconceituosas e repulsivas sobre um determinado assunto virão nos comentários das notícias online) faz parte desse experimento. Eu pensava que eram grupos orquestrados que se organizavam para escrever as piores atrocidades, mas fui ingênua. Grupos organizados eles são, óbvio, mas não são rapazes frustrados que redigem (porcamente) a maior parte daqueles comentários. São robôs. Assim como, no Twitter, a campanha de Bolso se deu quase que exclusivamente através de bolsobots (na reta final, 5 em cada 7 tuítes pró-Bolso eram feitos por máquinas, não por pessoas).
Seja lá o que eles fizeram, certamente foi eficaz, pois Bolso não ganhou no primeiro turno por muito pouco (menos de 4% dos votos). E não só isso: as milhões de mensagens bancadas com o Caixa 2 de empresários (que provavelmente nunca será investigado, e muito menos punido, pelo Tribunal Superior Eleitoral -- a piada do dia foi a declaração da ministra Rosa Weber de que o TSE "se saiu vitorioso" no combate às fake news) não só impulsionaram Bolso,
como elegeram a segunda maior bancada de deputados federais e deram todo um gás pra candidatos a governador e senador que apareciam em quarto lugar nas pesquisas.