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Aconteceu naquele século: raros filmes com protagonistas mulheresUma leitora avisou sobre este vídeo muito bom que analisa os filmes que ganharam o Oscar nos últimos 50 anos. Só quatro desses 50, ou 8%, têm uma protagonista mulher, ou apresentam uma perspectiva feminina. Isso por que vivemos numa sociedade em que histórias de e sobre homens valem mais que de mulheres. Co
mo só 7% das diretoras são mulheres, e há tão poucas produtoras e roteiristas, e quem é visto como público-alvo são os homens (na realidade, meninos), os filmes são pra eles. Na realidade, há dois erros graves na análise – tanto Silêncio dos Inocentes quanto Titanic são contados por mulheres, então o número subiria para 6 dos 50. Em Titanic o casal Rose e Jack talvez seja igualmente importante, mas é Rose que sobrevive e quem narra a história em flashback. De Silêncio falarei num outro post, que este já tá longo demais. Claro que um filme centrado numa mulher não faz dele bom e nem ao menos feminista (ver comédias românticas, tipo: todas). Um filme centrado num homem não faz
dele ruim ou machista. Masmo que um filme seja machista (como Era uma Vez na América, só pra citar o primeiro que me vem à mente) isso não significa que seja ruim, certo? Lawrence da Arábia é uma obra-prima, apesar de não ter uma só personagem feminina com falas. Mas é muito estranho que tão poucos filmes tragam uma perspectiva feminina. Dos dez filmes que concorreram ao Oscar este ano, seis têm uma perspectiva masculina (Discurso do Rei, Rede Social, A Origem, 127 Horas, Toy Story 3, O Vencedor), um tem perspectivas múltiplas, de família (Minhas Mães e Meu Pai), e três têm perspectiva feminina: Cisne Negro, Inverno da Alma e Bravura Indômita. Sobre os dois primeiros não resta dúvida, certo? Cisne e Inverno trazem protagonistas mulheres, e a história flui pelo ponto de vista delas (aliás, morri de rir esses dias quando vi um blog masculinista tratar de Cisne como se fosse um documentário da perversa e psicótica me
nte feminina!). Bravura é um pouco mais discutível, mas a personagem da Hailee é quem impulsiona a trama, quem a conta, e quem aparece na maior parte das cenas. Pra mim, ela é a protagonista (e por isso achei tão condenável que sua intérprete tenha sido indicada pra categoria de coadjuvante). Perguntas que a autora do vídeo sugere para perceber se o filme é o ponto de vista de um homem ou de uma mulher: quem tem mais tempo na tela? De quem é a perspectiva da cena que vemos? A história se centra em qual personagem? Quem nós vemos tomar decisões? Com quem mais nos identificamos? Essa última pergunta eu acho um pouco mais complicada, porque isso é recepção. Eu posso me identificar com, sei lá, o cozinheiro de O Iluminado, e nem por isso ele vira o protagonista da trama, né?
Há uma estatística que eu considero de grande relevância e nunca me canso de repeti-la: são apenas três os filmes na história do Oscar que ganharam as cinco principais categorias (melhor filme, diretor, roteiro, ator e atriz). Silêncio dos Inocentes foi o mais recente, em 1991. Os outros foram Aconteceu Naquela Noite (1934) e Um Estranho no Ninho (1975). Em Aconteceu realmente há um equilíbrio entre os personagens de Claudette Colbert e o de Clark Gable. Mas em Estranho o filme é inteirinho do Jack Nicholson, e a terrível enfermeira-chefe (Louise Fletcher) aparece pouc
o. Ela se destaca por ser uma vilã memorável, apesar de ser praticamente uma coadjuvante (e Louise teve a sorte de concorrer num ano fraquérrimo na categoria de melhor atriz, em que você olha a lista e quase pergunta: quem são essas pessoas?). Mas e aí, por que é tão raro um filme conquistar os cinco grandes prêmios do Oscar? Obviamente que é por causa da ausência de papéis femininos marcantes. Uma produção ganhar melhor filme, diretor, roteiro e ator não é tão incomum - taí O Discurso do Rei pra não me deixar mentir. Não que seja fácil levar esses quatro prêmios principais: Ben-Hur ganhou 11 Oscars, mas perdeu o de roteiro; Titanic levou quase tudo em 97, mas Kate Winslet perdeu, e Leonardo Di Caprio sequer foi indicado. No entanto, Sindicato de Ladrões (54), Gandhi (82), Amadeus (84), e Forrest Gump (94) são alguns exemplos de filmes que ganh
aram filme, diretor, roteiro e ator. Nenhum deles têm um papel feminino à altura do protagonista homem. A situação não parece estar melhorando. Vamos fazer uma comparação com a década de 80. Em 81 (cito o ano em que o filme concorreu ao Oscar, não em que ele foi lançado) ganhou Gente como a Gente, que talvez tenha uma perspectiva das três pessoas da família (embora eu nunca entendi por que o Timothy Hutton, que é quem aparece mais, levou o Oscar de coadjuvante). Em 82, Carruagens de Fogo. 83, Gandhi. Ambos têm perspectivas masculinas. Em 84, Laços de Ternura, que têm não uma, mas duas protagonistas mulheres (e eu precisaria forçar a memória pra me lembrar se algum outro filme em 84 anos de Academia repetiu essa façanha. Claro, temos filmes com duas protagonistas mulheres - Thelma e Louise, por exemplo. Eles só não ganham Oscar). Em 85, Amadeus. Em 86, Entre Dois A
mores, que só vi uma vez e não me lembro nada, mas a perspectiva é feminina. Em 87, Platoon. Filme de guerra, já viu, né? Só homem (por isso Bastardos Inglórios é tão inovador). Em 88, O Último Imperador. Em 89, Rain Man (com dois protagonistas homens). Em 90, Conduzindo Miss Daisy, que tem a perspectiva de um homem e uma mulher. Ou seja, balanço da década de 80: seis filmes com perspectiva masculina, dois com feminina, e dois mais variados.
Na década de 90 tivemos Dança com Lobos, bem masculino (apesar de uma personagem feminina ser forte e importante). Em 92, Silêncio. Pra mim, totalmente feminino, como explicarei num outro post. Em 93, Imperdoáveis. Em 94, Lista de Schindler. Em 95, Forest Gump. Em 96, Coração Valente. Em 97, O Paciente Inglês (que deve ser o filme que menos me lembro das últimas três décadas). Todos trazem perspectivas masculinas.
Em 98, Titanic, que é feminino. Em 99, Shakespeare Apaixonado, em que o foco tá no grande dramaturgo, não na sua musa. E em 2000, Beleza Americana, que, embora traga excelentes interpretações de todo mundo, principalmente da Annette Bening, é conduzido por Lester Burnham (Kevin Spacey). Já falei que o nome é um anagrama de Humbert (protagonista de Lolita) Learns? Ok, dos dez premiados na década de 90, nada menos que oito são sobre homens. E na primeira década do século 21? Começamos com Gladiador, vamos pra Uma Mente Brilhante. Chicago (03) é sobre mulheres, Senhor dos Anéis sobre elfos. Em 05, Menina de Ouro tem a perspectiva do Clint Eastwood e da Hillary Swank. Crash, no ano seguinte, tem um montão de personagens. E os cinco últimos filmes têm poucos papéis femininos: Infiltrados, Onde os Fracos Não Têm Vez, Quem Quer Ser um Milionário, e Guerra ao Terror (Discurso do Rei já entra numa nova década). Ou seja, estamos próximos à década de 90: dos dez, sete são masculinos. E a gente pode continua
r por outras décadas, desde o início do Oscar, em 1927, que não muda nada. Nem numa década de liberação sexual como a dos 70 foi diferente. E claro que se a gente pegar os filmes de outros países, os resultados serão parecidíssimos. Já passamos do primeiro século da invenção do cinema, e a sétima arte (alguém ainda fala assim?) continua sendo predominantemente masculina. E, lógico, e hétero. E branca.
"Ontem um amigo me disse que as mulheres gostam mesmo é de um homem que as abuse. E
que prova disso são essas mulheres que apanham e são maltratadas pelo marido/namorado mas não largam deles, e continuam amando-os. Eu não sei mto bem como argumentar. Embora eu saiba que tem algo mto errado nessa forma de pensar, eu não consigo colocar meu dedo exatamente no ponto que deveria. Eu mesma já estive numa situação desse tipo, da qual não conseguia me desvencilhar. Ao mesmo tempo que eu sei o que me segurava ali, eu não sei até onde isso pode justificar todos os casos, e não sei exatamente qual a raiz exata desse comportamento. É uma situação mto difícil, q até hoje não me sinto com liberdade para expor aos outros, pq me sinto culpada e responsável, no final das contas, por me deixar cair numa armadilha tão absurda”.Talvez sua dificuldade em entender por que mulheres são abusadas com seus companheiros e continuam com eles, Carol, venha de uma vontade de querer encontrar uma explicação exata para todos os casos, quando ― arrisco dizer
sem ser psicóloga ― isso não existe. A própria Carol deixou um link para um ótimo post da Eliane Brum em que ela trata da autobiografia de Natascha Kampusch, a menina austríaca que foi sequestrada e viveu num cativeiro dos 10 aos 18 anos, até que, num momento de distração de seu algoz, e de coragem descomunal da parte dela, correu para a rua. O rapaz se matou, e a moça, passada a comoção geral, virou persona non grata por insistir em não se comportar como vítima tradicional. Acho que vários trechos do livro de Natascha são completamente pertinentes pra pensar a questão de por que tantas mulheres que apanham não fogem, não denunciam, e, em muitos casos, até perdoam e voltam para seus carrascos: "Se eu tivesse apenas o odiado, esse ódio teria me consumido e me tirado a força de que eu precisava para sobreviver. Como naquele momento pude captar um lampejo do ser humano pequeno, de
sorientado e fraco por trás da máscara do sequestrador, pude me aproximar dele. Então, olhei em seus olhos e disse: – Eu perdoo você, porque todo mundo erra às vezes. Foi um passo que pode parecer estranho e doentio para muitas pessoas. Afinal de contas, o ‘erro’ dele custara minha liberdade. Mas era a única coisa a fazer. Eu tinha de conseguir conviver com aquele homem, caso contrário não sobreviveria.”"[...]percebi que, em certa medida, também idealizei a sociedade. Vivemos em um mundo em que as mulheres apanham e são incapazes de abandonar o homem que bate nelas, embora, em tese, a porta esteja aberta. Uma em cada quatro mulheres é vítima de violência extrema. Uma em cada duas mulheres sofre assédio sexual durante a vida. Esses crimes estão em toda parte e podem ocorrer atrás de qualquer porta do país, em qualquer dia, e talvez só provoquem um dar de ombros ou uma indignação superficial. Nossa sociedade precisa de criminosos como Wolfgang Priklopil para dar um rosto ao mal e afastá-lo dela mesma. É pr
eciso ver imagens desses porões para que não se vejam os muitos lares em que a violência ergue sua face burguesa e conformista. A sociedade usa as vítimas desses casos sensacionalistas, como o meu, para se despir da responsabilidade pelas muitas vítimas sem nome dos crimes praticados diariamente, vítimas que não recebem ajuda ― mesmo quando pedem.”Incrivelmente lúcidas as declarações de Natascha, que merece toda nossa solidariedade e respeito, assim como todas as mulheres (e as muitas crianças, e os poucos homens) que sofrem abuso das mãos de seus companheiros, ou de pessoas que dizem (e talvez até acreditem) que as amam. Saiu agora uma pesquisa dizendo que, a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas no Brasil. Ou seja, não é um problema individual, do tipo que não devemos nos intrometer, já que é nóia daquele casalzinho específico ali. É uma chaga de tod
a a sociedade. Por isso, precisamos urgentemente de uma campanha contra o machismo, como a que o Equador fez e continua fazendo.Eu penso sempre na Ana, uma menina de 18 anos que publicou um guest post terrível aqui no blog, em junho. Por coincidência, na mesma manhã que saiu o relato dela, eu e minha turma de Inglês Técnico falamos de violência doméstica e assassinatos de mulheres pelos parceiros (um texto que líamos era sobre um marido absolvido por matar a esposa durante o sono). E muitos alunos se mostravam indignados com as mulheres que aceitam tudo caladas, sem procurar ajuda, voltand
o pros agressores, revoltando-se contra quem tenta auxiliá-las. O depoimento da Ana proporciona pistas valiosas sobre por que isso acontece.Ana tinha 13 anos quando seu namorado de 21 bateu nela pela primeira vez — um tapa no meio da rua. Uma senhora veio ajudá-la e olhou feio pro rapaz, e Ana sentiu raiva... da senhora que quis ajudá-la. Por quê? Por vergonha, por medo. Ela diz: “O jeito que ele me bateu enfiou na minha cabeça que ele tinha total domínio sobre mim e que eu seria a pior pessoa do mundo se não o obedecesse”.A menina de 13 anos continuou apanhando quase diariamente durante quatro m
eses, sem contar a ninguém, nem a seus pais, que a amavam tanto. Em suas palavras: “Acho que o pior era isso, a repressão; eu achava que não havia outra saída, eu só podia me conformar, era a minha sina. [...] Eu desejava que ele morresse e me culpava por isso, e cheguei a achar que merecia apanhar por desejar uma coisa tão horrenda. Eu aprendi a apanhar em silêncio porque ele se empolgava se eu começava a chorar...”Um dia o namorado a chutou forte na bexiga, o que fez com que ela urinasse, e ele riu. Aquilo foi demais: “eu percebi, ainda que por um momento, que ele que era o bosta da história, ele que era um lixo. E no dia seguinte ele passou na minha casa e eu não desci”. Como aponta Eliane, perdoar seu agressor não é um ato passivo. Não descer, como decidiu fazer Ana, também
foi um ato ativo. Agora imagina só, tudo que Natascha tinha que fazer era andar alguns passos e sair correndo pelo portão. Assim como tudo que Ana tinha que fazer era não descer do apê dos seus pais quando o namorado aparecia lá embaixo. Parece tão pouco, né? E mesmo assim as amarras psicológicas são gigantescas. E as duas, apesar de crianças, não tinham dependentes. O que faz uma mulher com filhos numa situação de violência doméstica? Imagina uma mulher economicamente dependente do marido pra viver. Uma mulher que não tenha pra onde ir. Que talvez tenha passado a vida toda acreditando que casamento é a maior realização feminina e que é algo sagrado, para sempre.
Não podemos perder o foco, nunca. A culpa não é de quem apanha, a culpa é de quem bate. A culpa também é de quem ouve tudo e pensa que é briguinha de marido e mulher e por isso não deve meter a colher. A culpa é de quem acha que casos assim não existam, e de quem acha que mulher gosta de apanhar. A culpa é de uma sociedade repressora que ensina aos homens que devem resolver os conflitos através da violência, e que ensina as mulheres a não reagir jamais. A culpa é de um Estado que não garante proteção e assistência àquelas que precisam. Mas claro que é mais f
ácil culpar a vítima ou os pais e simplesmente chamar o agressor de monstro do que discutir o que leva alguém a agir dessa forma. Porque não é um ou outro homem que trata a mulher como posse, são muitos. Não é um ou outro que bate na mulher. Não é um ou outro que não aceita terminar o relacionamento, e mata a mulher para se vingar, ou para ela não ser de mais ninguém. São muitos. São dez mulheres mortas por dia no Brasil, todo dia. E se mesmo nós que somos mulheres feministas, cientes que essas atrocidades acontecem, respondemos passivamente a tantas agressões, se não conseguimos denunciar noss
o estuprador, se nos sentimos culpadas de algum modo pelo abuso que sofremos, como podemos não compreender as mulheres que apanham caladas de seus companheiros?Pois é. Espero, Carol querida, ter te ajudado a entender um pouco melhor a resposta.
Minha vida tá uma correria daquelas. Ontem (ou ainda é hoje?) participei do começo de uma reunião com meu querido Daniel, pra gente tratar do Encontro Regional de Blogueiros Progressistas, que deve acontecer em Fortaleza nos dias 28 e 29 de maio. O pessoal tá cheio de excelentes ideias, viu? Uma delas é organizar uma série de palestras sobre o marco regulatório da mídia. Já dá pra fazer sua pré-inscrição.Infelizmente não pude participar da reunião inteira porque, em cima da hora, fui convidada pra um debate ao vivo sobre preconceito nas redes sociais. Como sou nova no nordeste e mal assisto TV, não conhecia o programa Grande Debate da TV O Povo, canal 48 na TV aberta, e 23 e 11 na a cabo. Mas olha, não é porque fui convidada não, mas dá gosto quando um veículo popular como a televisão abre espaço para discutir preconceitos. Gostei muito mesmo. Ao contrário da minha última experiência televisiva, aquela que foi uma perda de tempo com um “moderad
or” que não parava de falar besteira, esta com o jornalista Ruy Lima foi ótima. Ele é visivelmente aberto ao diálogo e não se interessa em se autopromover. Quer mais é puxar assunto pra discutir, e vem bem preparado. E ainda tive o prazer de conhecer uma importante militante feminista daqui, a Ticiana. É, um debate com duas feministas e uns três simpatizantes não deve ser muito comum na TV, né? Valeu mesmo!O programa foi ao vivo, já passou, mas acho que tem reprise hoje, à meia noite, e talvez amanhã, às 13 ou 14 horas, não sei ao certo. Se alguém assistir, diga o que achou.
Acho que já deixei claro em alguns posts que não gosto de carros, que precisamos encontrar outras alternativas de transporte, e que automóvel é apenas um veículo, não um sinal de status. Mas o carro em si é só um carro, um objeto inanimado. É preciso de um motorista pra que ele an
de. E é preciso um motorista para cometer barbeiragens, desrespeitar leis de trânsito, e se por acima da vida dos demais. O que aconteceu sexta em Porto Alegre revoltou todo mundo. Eu já tinha pedido faz tempo pra um leitor, o Thiago (Nefelibata), escrever um guest post sobre essa cultura de idolatria ao automóvel, e como ela funciona como fator de opressão social. Ele, que acabou de se formar em Direito, me enviou um texto fascinante, mas longo. Pretendo publicar outras partes depos. Esta é a mais urgente:Sempre fui muito crítico ao uso indiscriminado de automóveis, e, naturalmente, sempre fui muito repreendido e ridicularizado por isso. Dessa forma, acho triste ter que acontecer algo como o bárbaro atropelamento ocorrido em Porto Alegre na sexta-feira última para que as pessoas no geral parem para pelo menos tentar refletir sobre o papel do carro na sociedade. No dia 25 de fevereiro, cerca de uma centena de ciclista
s estavam a passeio nas ruas, num movimento chamado de Massa Crítica. Havia adultos com crianças na garupa, idosos, até mesmo um cachorro numa cestinha. Então, um carro com motorista impaciente resolve literalmente passar por cima. Toma distância, acelera e faz igual àqueles jogos de videogame estilo Carmageddon e Grand Theft Auto; simplesmente atropelando quem quer que estivesse na sua frente. Felizmente, a maioria escapou do atropelamento ao ouvir o ruído, mas dez foram feridos e, ainda de acordo com a notícia do Terra, cinco foram hospitalizados (a Folha fala depois em dezesseis atropelados e oito hospitalizados).
Casos de ciclistas atropelados por motoristas no mínimo irresponsáveis são motiv
o de luta para grupos de bike Brasil afora (neste link o exemplo de ciclistas mortos no trânsito e homenageados com ghost bikes; a foto ao lado e a acima, do "devagar vidas", são de autoria de Willian Cruz e foram retiradas daqui). Embora não vejamos com frequência um carro sozinho atropelando uma massa de ciclistas, é fato que essas pessoas são agredidas todos os dias nas ruas, seja moralmente, psicologicamente ou fisicamente. O que houve em Porto Alegre simplesmente ilustra e resume tragicamente a realidade cotidiana. E o que está por trás disso é um elemento cultural específico, que cresce descontroladamente e nos brutaliza, e que é preciso combater. Podemos ver esse elemento claramente, por exemplo, nos comentários de notícias sobre esse caso, muitos dos quais dão razão ao motorista ou no mínimo dizem que os ciclistas “procuraram”
por isso, tendendo a aliviar ou mesmo eximir a culpa do atropelador. Tudo bem que comentários de notícias na Internet geralmente são uma ótima vitrine para muito do que há de pior na humanidade, mas o que pensar quando a autoridade pública se manifesta no mesmo sentido? Pois foi assim com o delegado Gilberto Almeida Montenegro, responsável pelo inquérito do caso:"O primeiro erro crucial foi esse evento ciclístico. Esse grupo cometeu um erro grave, qualquer evento desse porte se avisa a Brigada Militar (BM), a EPTC (Empresa Pública de Transporte e Circulação), a Secretaria de Segurança, para se formar um aparato para evitar situações desse tipo"."Aqui não é a Líbia. Aqui tem toda a liberdade para fazer manifestação, desde que avisem as autoridades. Faz a tua manifestação, mas não impede o fluxo de automóveis. Se tu impedes, dá confusão, dá baderna, dá acidente. Fica o alerta".O que o delegado disse é um absurdo (nem quero tentar descobrir o que
ele pensa sobre a Líbia). Por que deveria avisar? Como bem disse o Bicicreteiro, todos os dias milhões de automóveis travam o fluxo de tudo que há nas pistas, em manifestações barulhentas, cheias de buzinas, e não avisam ninguém. As bicicletas em Porto Alegre andavam em velocidade até maior que os carros nesses eventos. Como uma pessoa da lei, o delegado Montenegro deveria saber que o Código de Trânsito Brasileiro entende bicicletas como veículos, tal como carros (Lei 9.503, artigo 96, inciso II, alínea a). Então, por que diabos uma centena de ciclistas não podem sair nas ruas sem avisar as autoridades e milhões de carro podem? Por que o carro merece tratamento privilegiado? Pela fala do delegado, inclusive, até as manifestações são um detalhe perto do fluxo de carros. Não interessam os valores humanos pleiteados nas manifestações; o
s automóveis são mais importantes. E ele não entende que se tem uma manifestação popular, é porque essas pessoas estão insatisfeitas com algo e lutam por um direito que acreditam possuir. Mas na sociedade individualista de hoje, a maioria da população não liga para nada que acontece para fora da porta de casa ou do carro. Então, o sentido de qualquer protesto é justamente atrapalhar os outros um pouco, para que possam parar e perceber que existe algo de muito errado acontecendo. Exatamente por isso, o panfleto distribuído até pelo menos antes do atropelamento diz: “Olá, amigo motorista, tudo bem? Desculpa por hoje estarmos atrapalhando um pouco mais o trânsito de vocês, mas normalmente é o contrário”.Quando o panfleto pede para que os motoristas respeitem os ciclistas, diz que “tudo isso é lei; mas não é por ser lei, é para não nos assustar, ou pior, não nos machucar ou até matar. É, acima de tudo, para mostrar que você é um cidadão”. É precioso o que diz, para não respeitar o ciclista só porque é lei. É importante dizer isso, que a lei não é um fi
m em si, que não é só porque algo está na lei que é absolutamente correto. Lembremos que muitas lutas sociais visavam exatamente à revogação de leis opressoras. Escravidão já foi legalizada, adultério já foi delito, o casamento homossexual ainda é ilegal, o aborto ainda é crime, por exemplo. Por isso, não podemos admitir que se dê alguma razão ou atenuante ao criminoso de Porto Alegre quando nos vierem com essa do Código de Trânsito:Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores.“Bordos da pista de rolamento” significa a faixa mais à direita. Ou seja, o ciclista deve, por lei, deixar a faixa da esquerda livre (quando houver duas faixas). No caso de Porto Alegre, não havia ciclovia
/ciclofaixa, não havia acostamento, havia mais de uma faixa e os ciclistas estavam usando todas elas. Errado? Não, porque era um protesto. “Ah, então os ciclistas não estavam saindo normalmente de casa como os motoristas do cotidiano! Nesse caso deveriam ter chamado a polícia!”. Não de novo, porque o sentido do protesto é justamente o de ocupar as ruas inteiras, sem escolta policial, tal como ocorre com carros nas ruas todos os dias. Assim, talvez mais pessoas consigam ver que “existe uma alternativa muito divertida, não poluente, silenciosa e saudável para o transporte”.Contudo, o pior é que o absurdo dito pelo delegado Montenegro é coerente. A fala dele é porta-voz da cultura de idolatria do automóvel e de violência do motorista, e essa cultura se traduz na realidade como uma verdadeira forma de opressão social. No seio da humanidade esses fenômenos são, infelizmente, múltiplos e variados; machismo, racism
o, elitismo, homofobia, xenofobia, etc. E dentre eles, há também essa opressão do motorista de carro não apenas contra ciclistas, mas também pedestres e até mesmo os famigerados motoqueiros. A denúncia dessa forma de opressão é algo relativamente recente, e talvez isso ajude a explicar porque até mesmo gente da esquerda ou “progressista” não a perceba, ou, na pior das hipóteses, negue-a como qualquer conservador faria.Afinal de contas, como toda forma social de opressão, ela não é apenas sustentada pelo Estado e pela política; é também respaldada por parte da população. E no caso particular da opressão pelo automóvel, há aquele detalhe que dificulta o combate: é razoavelmente fácil “escalar a pirâmide” social e passar de oprimido a opressor. No Brasil economicamente ascendente de hoje, basta a simples tarefa de financiar um carro. E então, com essa possibilidade sempre em vista, e com uma enorme massa popular potencialmente motoris
ta de carro, ocorre a internalização do opressor no oprimido; não se busca acabar com o conflito, mas entrar no lado de quem está ganhando e, assim, reproduzir a desgraça – que só será desgraça para os outros a partir de então. Por isso não é difícil ver alguém que pega transporte coletivo todo dia achar normal os excessos dos motoristas. Essa pessoa deseja que um dia ela mesma possa cometê-los logo que puder usar um carro. Prefere, dessa forma, tal como um capitão-do-mato, “trair a sua classe”, indo contra seus próprios interesses na condição de não-motorista, em nome da opressão da qual um dia espera fruir. Assim se perdoam barbaridades do opressor-condutor; elas não são mais vistas como injustiças, mas sim como caprichos, luxos, privilégios, direito! Se alguém tem culpa, é quem se opõe: o não-mot
orista. Aplica-se desse jeito uma espécie de vingança, tal como ocorre em trotes: toda a violência recebida terá que ser devolvida com os juros da espera.O sórdido detalhe desse tipo de internalização do opressor e vingança social é que o oprimido traidor de sua classe não devolve a truculência acumulada em si contra as pessoas que lhe agrediram inicialmente. A vingança não pode ser contra eles porque a partir do momento em que o oprimido troca de lado e sai de baixo para cima, ele vai querer reconhecimento de seus novos pares, e não conflito pessoal com eles – o que poria a perder o mundo que quer ganhar. Quem sobra então são aqueles que permaneceram embaixo, e serão eles efetivamente o alvo da vingança. Essa retribuição de males cumpre muitas funções: faz com que os já presentes no topo da pirâmide reconheçam o recém-chegado como um de seus iguais, faz com que o antigo oprimido assassine seu passado, exorcizando o fato de
que ele mesmo já foi um dia um daqueles miseráveis que não valem mais nada, e, por fim, proporciona a sensação imediata e direta do poder.Dessa forma, como toda forma social de opressão, a violência do automóvel também se baseia na agressão do forte contra o fraco. Assim como um homem abusa da mulher por meio de sua força física normalmente superior, um motorista de carro abusa de todos na rua porque está protegido por uma arma de vários cavalos de potência e uma armadura de mais de uma tonelada. Em uma palavra: covardia.
Mas essa é somente a forma direta de opressão, a forma imediata. Há também a forma indireta, mediata: como toda forma social de opressão, o motorista também é protegido pela organização dessa mesma sociedade em detrimento de suas vítimas. Assim com
o a proteção institucional explícita ou sutil que homens têm em crimes contra mulheres (chegando mesmo ao ponto de alguns juízes negarem-se a aplicar a Lei Maria da Penha – cujo um dos objetivos é justamente combater esse acobertamento), que ricos têm em crimes contra pobres, motoristas também recebem a forma mais desprezível do benefício da dúvida; no caso em Porto Alegre, já tem gente dizendo que os ciclistas é que começaram a bater no vidro do carro e a fechar o motorista, como se isso o exculpasse do crime que cometeu. E até agora há quem insista em chamar o ocorrido de “acidente”, “erro do motorista”. Para mim, erro é quando a gente não consegue fazer o que quer. Por exemplo, quero acertar uma questão, respondo e não está certo: errei. Quero atingir um alvo, tento, e não consigo: errei. Um dos ciclistas filmava o local na hora do “acidente”. Isso parece um erro para quem? Se existe algum erro do c
riminoso, é que ele não conseguiu acertar tantos ciclistas quanto pretendia. Isso é tentativa de assassinato, contra várias vítimas de uma vez só. E ainda fugiu sem chamar as autoridades, o que constitui infração gravíssima no Código de Trânsito (artigo 176) e crime (Código Penal, artigo 135 – omissão de socorro). Dizer que é “acidente”, e de novo concordo com o Bicicretero, é entender que o motorista é sempre o “coitadinho” da história, que é sempre um outro maluco que se joga na frente do carro, que no noticiário, antes de sabermos o estado da vítima de atropelamento, somos informados da extensão do congestionamento que ela, a vítima, provocou. Sabe aquela história da mocinha ser a culpada pelo estupro porque estava de minissaia? Pois é.
O resultado de todo esse arranjo de violência e proteção dos violadores é, como também ocorre em toda forma social de opressão, o medo. Dou aqui exemplo vivid
o pessoalmente: meu pai era ciclista assíduo e abandonou a bicicleta porque ficou com medo de morrer após algumas situações de perigo. Deu todas as três bikes que tínhamos em casa e encrenca comigo sempre que menciono voltar a pedalar. Isso significa que, nele, os motoristas conseguiram o que queriam: mostrar quem manda na rua. Mostrar quem é o dono da rua. Impuseram nele não apenas o medo, mas o sentimento de submissão, de subjugação.
Vamos escolher qual comentário deixado em apenas um post (sobre aquela moléstia curável chamada masculinismo) foi o mais bizarro, divertido e sem noção? (Entendo perfeitamente que seja difícil escolher apenas um, mas copiei aqui os mais chamativos, deixando-os exatamente como foram escritos). Infelizmente o
vencedor não poderá ser premiado com uma passagem de ida (e só de ida) ao Mausoléu Reagan, em Washington, porque todos os comentários foram feitos somente por anônimos. Uma pena mesmo, porque o vencedor seria contemplado com uma viagem de ida com direito a acompanhante. E quem eles iriam levar? A única mulher que presta no mundo: sua santa mãe (não a sua, leitora, contenha-se! A dele. Aquela que todas nós adoraríamos ter como sogra). Parabéns pelos belos exemplos de “lógica linear”, mascus (posso chamá-los assim?).
1) Respeitem se querem ser respeitadas, preconceito religioso é crime. Podemos tomar atitudes legais contra as senhoras que recusaran a Nosso Senhor. Cordeiro Do Senhor [
Nota da editora: Esse eu leio, releio, rolo de rir, mas continuo achando fake. Aguardo processo]
2) Dou graças a Deus por ter dinheiro suficiente para gastar na zona toda se
mana com as melhores prostitutas da minha cidade,não tendo a dor de cabeça e os problemas que meus amigos têm com essas raparigas atuais [
Nota da editora: Pelo linguajar é um raparigo de Portugal. Quem diria, o masculinismo é um movimento internacional!]
3) O feminismo é a maior conquista do machismo, porque tudo ficou muito mais fácil para o homem: sexo mais fácil, ele não precisa mais sustentar a casa nem assumir os filhos [
Nota da editora: É verdade. O cidadão do comentário acima, por exemplo, consegue fazer sexo só pagando uma prostituta]
4) A mulher fo
i a grande traidora.Está na Bíblia,muitos serão atirados no inferno porque o diabo usa as mulheres para os homens cometerem adultério. [
Nota da editora: De fato, uma lógica irretocável]
5) Hoje em dia graças ao fim da família tradicional e ao fato das mulheres preferirem trabalhar e ir para a gandaia a criar seus filhos uma geração inteira está sendo criada jogada nas ruas a merce da coaptação do trafico de drogas. [
Nota da editora: Pois é, e o pai das crianças fica no escri até altas horas da noite, ao invés de botar ordem nessa bagunça]
6) Mulheres são seres amorais e sem caráter,incapazes de tomar decisões por conta
própria.A unica época em que existiram mulheres decentes, boas mães e esposas foi quando estava vigente o patriarcado [Nota da editora: Patriarcado? O que é isso? Era aquilo que existia na época da bíblia?]
7) Vc deve ser esse tipo de cara esquerdista-liberal que em nome do desejo da namoradinha aceita até tomar consolo no rabo. [
Nota da editora: Tudo em nome do desejo sexual feminino!]
8) Eu sou gay e me senti ofendido.Estamos aqui para derrotar o feminazismo, mas sem preconceitos mano. [
Nota da editora: É isso aí! Pô, nada de baixar o nível! Preconceito só contra o feminazismo, mano!]
9) Quando a mulher deixou de ocupar a nobre função de ser mãe e educadora, passou a ser uma si
mples paridora. Os lares deixaram de ter amor!Então concluo: As mulheres ficaram burras! Perderam muito com o feminismo! [
Nota da editora: Eu mesma não tô encontrando as chaves do carro]
10) Sejam mulheres doces e amorosas e terão tudo o que quiserem de um homem.Pra que brigar assim? Mulher é assim, homem é assado, é a ordem natural da vida. [
Nota da editora: E taí a psicologia evolucionista que não o deixa mentir]
11) Hoje quando olho pra dentro de mim, tenho um profundo sentimento de gratidão a essa [minha] mãe. Ela me ensinou o amor e respeito ao próximo. [
Nota da edi
tora: Creio que todos os trolls que comentaram aqui podem dizer o mesmo]
12) As mulheres daqui são a maior prova de como o feminismo emburreceu a mulher moderna. Nenhuma trás argumentos lógicos para defender suas questões e curiosamente as melhores defesas feministas vêm de alguns otários que desonram as bolas. [
Nota da editora: a primeira parte do comentário tava repetitiva, mas o final foi arrebatador. Deveriam adotá-lo como slogan: Mascus, machos que não desonram as bolas]
13) Se tiveram acesso ao estudo foi por NOSSA CAUSA, usando o NOSSO DINHEIRO. [
Nota da editora: Ao
mestre, com carrinho]
14) Não se enganem, mulheres quando vão a delegacias são muito bem tratadas, até por conta do instinto protetor que nós homens temos em relação a vocês. [
Nota da editora: Exato. Delegacia da Mulher pra quê, né? Aliás, pra quê mulher vai à delegacia, se os homens as tratam com tanto instinto protetor? Deve ser pra paquerar policial]
15) Antes do maldito feminismo, homens e mulheres se ajudavam, o mundo era bem melhor e hoje com o feminismo um quer competir com o outro, o feminismo provocou a discórdia na sociedade. [
Nota da editora: Vivíamos num paraíso até 1968. Aí as minorias começaram a reclamar e estragaram tudo. Bom, um pouco antes teve esse lance do Éden também...]
16) Ai rapaziada, vocês são doidos por ficarem perdendo tempo discutindo lógica linear com essas mulheres (do século XXI) e esses manginas... [
Nota de editora: Tem razão. Esses argumentos cheios de lógica linear são praticamente irrefutáveis. E homens que sabem usar números romanos são tão sexy]
17) Ok,quero ver se as irmãs hereges irão gargalhar no fim dos tempos.Que Jesus tenha misericórdia de suas almas. Cordeiro Do Senhor [
Nota da editora: É fake! É fake! Só pode]
18) Charlie Sheen não é representante da causa masculinista coisa alguma. Icones da causa masculinista são homen
s de bem como Jair Bolsonaro e Ronald Reagan verdadeiros exemplos de érica e integridade. [Nota da editora: ética parece ser uma palavra que realmente não consta do vocabulário deles. Mas quem é essa tal de Érica? Ela é feminista?]
[
Uma coisa ficou clara depois de todos esses comentários: os mascus merecem respeito. Ovelha da Senhora]