A jornalista Patrícia García ainda vai falar mais das eleições uruguaias que aconteceram anteontem
(haverá segundo turno e a direita tem chance de voltar ao poder, o que seria desastroso para o país).
Porém, é importante entender que, junto com as eleições, houve um plebiscito sobre segurança que monopolizou o debate, e ajudou a direita a chegar ao segundo turno. E esse debate, baseado no medo, tem muito a ver conosco. Leia o texto perfeito da Patrícia a seguir.
Poucos temas conseguem efervescer mais um povo do que a segurança. Caminhar nas ruas sem medo, a qualquer horário, não ter que correr por alguns becos, nem sentir-se hesitante ao pegar um táxi, uber ou ônibus é um desejo de qualquer pessoa no mundo e algo pelo que lutamos a cada dia. Exatamente por ser um assunto de tamanho apelo, também é fácil entender o impacto que ele tem na sociedade e como pode ser usado politicamente para conduzir uma situação favorável a um partido ou candidato.
Se a segurança já é um tópico presente em qualquer pleito mundo afora, na América Latina, com seus conflitos e instabilidades, é praticamente impossível fugir dessa constante discussão. O bombardeamento de crimes hediondos pela mídia mainstream e a sensação de medo e caos que são pintados em momentos em que a população precisa se manifestar é uma arma muito valiosa. No Brasil, acompanhamos essa tática do terror ser usada incessantemente pelo PSL para justificar certos discursos e atrair uma parcela da população horrorizada com as notícias e encantada com a ideia de “fazer justiça com as próprias mãos”.
Essa receita de alimentar o medo e oferecer uma solução que em outros momentos não seria nem discutida é antiga e acontece no mundo todo. Claro que, mesmo sendo um país muito progressista e historicamente consciente, o Uruguai não escaparia de algo do tipo. Como a discussão e o acompanhamento político fazem parte do cotidiano do povo, é natural que as pessoas debatam propostas de lei à exaustão e tentem encontrar soluções novas para problemas antigos. E é dentro deste contexto que, no último domingo, 27 de outubro, os uruguaios foram às urnas para eleger seu próximo presidente e demais representantes, e também para votar uma controversa reforma constitucional.
O projeto de lei “Vivir sin miedo” (Viver sem medo) foi proposto em fevereiro deste ano pelo senador e, até então, pré-candidato à presidência Jorge Larrañaga (Partido Nacional). Após recolher 400 mil assinaturas para que houvesse uma discussão sobre segurança nacional, o senador apresentou ao congresso seu projeto e pediu um plebiscito. Depois de muitas discussões, o Partido Nacional, Partido Colorado e Cabildo Abierto (todos de direita e extrema-direita), conseguiram encaixar o plebiscito dentro das eleições deste ano.
A proposta, altamente polêmica, prevê quatro pontos fundamentais: prisão perpétua para crimes hediondos; busca e apreensão em período noturno; eliminação do direito de redução de pena; e criação de uma Guarda Nacional (espécie de PM). Se os três primeiros pontos já são passíveis de discussão acalorada, o último mexeu com o povo uruguaio. O Uruguai já teve uma experiência de Guarda Nacional e ela foi particularmente ativa durante a ditadura. Para um povo que cultiva tanto a própria história, ter militares nas ruas nunca é um bom sinal. Especialmente quando eles olham para o lado e veem o espaço que os militares tomaram no Brasil, por exemplo.
No entanto, essa discussão chega em um momento crítico para o país. Em meio às eleições mais disputadas dos últimos tempos, conflitos regionais na América Latina, onda conservadora e direitista, e pânico insuflado pela mídia e pelos candidatos, o projeto de lei virou protagonista do debate político. Todos os partidos de direita bateram quase que exclusivamente nesta tecla, seja em suas propagandas, seja nos debates. Com tamanha mudança sendo discutida, principalmente uma reforma que envolve também o sentimento histórico do povo, as outras propostas e assuntos foram deixados um pouco de lado. Claro que esta discussão é imprescindível, mas o momento favoreceu muito a direita e dividiu o país.
Após a apuração de anteontem, onde 54% dos eleitores foram contra a reforma, pouco temos para comemorar. Quase metade do país disse às urnas que não veria problema em conviver com militares nas ruas, que uma solução extrema valeria para uma situação que não é extrema. No final das contas, a vitória do "NO" não foi uma grande vitória. Através deste plebiscito pudemos ver o medo do povo estampado em uma papeleta. E, além do Partido Nacional, que em meio a toda a confusão cravou um segundo turno, o grande vencedor da noite foi o Medo. E este nunca é um bom conselheiro.
6 comentários:
A tendencia, segundo especialistas, é que Lacalle Pou seja eleito em 24 de novembro próximo, pois os demais candidatos (mais à direita) vão apoia-lo.
Teremos no Uruguai o mesmo fenômeno no Brasil? Aqui as fake news deram vitória ao Coiso, lá será o medo?
Aguardemos dia 24 próximo.....
Muito esclarecedor o texto, muito obrigada por compartilhar o que acontece lá com a gente e realmente tem tudo a ver conosco. Parabéns Patrícia ❤️
O aumento da criminalidade no Uruguai, paradoxalmente, é fruto da sua economia aquecida. Economia aquecida atrai imigrantes. E imigrantes, cedo ou tarde, acabam causando problemas.É fato.
Muito obrigado pelo texto: explicativo e contextualizado.
Nos mantenha informados.
Me pergunto algumas vezes como é possível a não violência, diante do caos social? Pq é tão difícil para os que estão no poder entender que precisamos de política de inclusão, precisamos buscar o desenvolvimento
E a evidente e elevada queda da criminalidade no Brasil este ano? Você atribui a quê?
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