terça-feira, 15 de outubro de 2019

VITÓRIAS RECENTES DO ATIVISMO AUTISTA MOSTRAM QUE VALE A PENA SEGUIR LUTANDO

Publico aqui o texto do escritor e ativista aspie Robson Fernando de Souza.

Desde a primeira semana de setembro, o ativismo autista brasileiro tem obtido vitórias de grande importância. Mais precisamente na denúncia de matérias e artigos com linguajar capacitista, publicados em portais de notícias, e na pressão para que a redação desses sites corrija esses textos ou, nos casos mais graves, retire-os do ar.
De lá para cá, já foram seis revigorantes êxitos, sendo um artigo e uma reportagem removidas, três matérias corrigidas e uma totalmente reescrita. Foram conquistas que, apesar de parecerem ter pequenas proporções, deixam claro que os autistas também resistem e lutam contra a opressão e que, mesmo em tempos em que Jair Bolsonaro e seus ministros cometem abusos diariamente no Poder Executivo federal, continua valendo muito a pena lutar, por mais difíceis que as vitórias eventualmente sejam.
Essa atual campanha contra o capacitismo jornalístico começou no dia 30 de agosto. Naquele dia, uma jornalista e crítica de arte postava, em seu blog da seção Cultura do Estadão, um artigo intitulado "As trancinhas teleguiadas do ‘produto’ Greta Thunberg".
Carregado de um atroz preconceito contra aspies (pessoas que têm a Síndrome de Asperger, uma forma “leve” de autismo), o texto disparava ataques pessoais à ambientalista sueca Greta Thunberg, de 16 anos, em função de seu Asperger. Até mesmo das características autísticas da feição facial de Greta a então blogueira zombava.
Não bastasse isso, logo depois de disparar seus preconceitos contra a jovem ativista, o artigo trazia todo um libelo sobre como crianças e adolescentes aspies em geral seriam pessoas “sempre frágeis” e “manipuláveis”. Dizia que, por serem “menores doentes” (segundo a versão original do texto) e terem “psicopatia autista” (de acordo com a sua segunda edição), deveriam ser criados com “cuidados especiais”.
Argumentava também que aspies menores de idade “não podem ser expostos, mesmo se assim quiserem”, “não têm que querer” e deveriam ter sua condição -- e, por tabela, suas necessidades e demandas sociais -- escondida da sociedade por seus pais sob pena de sanções criminais tal como alguns médicos franceses capacitistas defendem.
Em outras palavras, defendia abertamente a discriminação contra crianças e adolescentes autistas, com a negação de diversos direitos constitucionais a eles. Rasgava no mínimo três leis federais: a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei nº 12.764/2012), a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em poucas horas de publicação, a partir de denúncias que fiz no Twitter e na página do blog Consciência Autista no Facebook, o artigo despertou uma crescente revolta entre a comunidade autista. No intervalo de alguns dias, ele foi denunciado ao Ministério Público, à editoria do Estadão, ao Fórum de Leitores do mesmo portal, ao Reclame Aqui, em diversas páginas de autistas ativistas e familiares, entre outros lugares da internet. 
Diversos textos, como o artigo "Greta Thunberg: das vozes e dos silêncios", assinado por uma equipe de professoras e profissionais de saúde mental e publicado no El País em 2 de setembro, a minha matéria publicada no Observatório da Imprensa no dia seguinte, o artigo de Victor Mendonça e Selma Sueli Silva no Mundo Asperger e uma matéria do site interseccional Modefica, reforçaram o poder do ativismo neurodiverso e aliado contra aquele conteúdo tão preconceituoso.
A indignação fortaleceu as chamas do movimento brasileiro defensor da neurodiversidade e da aceitação do autismo, o qual atua pelo menos desde a década de 2000 e já havia conquistado, alguns anos antes, vitórias como a derrubada do infame quadro “Casa dos Autistas”, no programa Comédia MTV da extinta MTV Brasil.
A luta se consagrou vitoriosa quando, em 6 de setembro, o Estadão retirou do ar o artigo das “trancinhas teleguiadas”, deu um silencioso fim ao blog de sua veterana autora e a desligou do quadro de colaboradores do Grupo Estado.
A luta seguinte aconteceu três dias depois dessa vitória. Na ocasião, o portal paranaense RIC Mais havia postado uma reportagem sobre o autismo, chamando-o de “doença” repetidas vezes -- até mesmo na URL do post -- e trazendo informações falsas como a de que a condição teria como uma de suas causas a criança viver numa família desestruturada -- basicamente a refutada teoria da “mãe geladeira”, resumida em outras palavras.
Graças às denúncias que também tiveram como epicentro um post da página do blog Consciência Autista, no Facebook, e um comentário meu feito à tal matéria, ela foi retirada do ar poucas horas depois da sua publicação.
A terceira batalha ocorreu no dia 20. Um dia antes, o site da Revista Galileu havia publicado uma matéria sobre a atitude de uma estadunidense de processar empresas de reprodução assistida, porque o DNA do doador do sêmen que seria fecundado para conceber os dois meninos fez seus dois filhos nascerem autistas, por conter genes associados ao espectro e possivelmente a algumas condições coexistentes.
A notícia originalmente parecia dar razão a essa mãe e deixava a entender que realmente era um “absurdo” um homem provavelmente autista doar seus genes sem informar suas deficiências àquelas empresas e aos compradores do seu sêmen. Não revelava que o caso tinha todo um aspecto de ativismo pró-eugenia por parte dela, já que a (ainda mais absurda) matéria-fonte, do Washington Post, evidenciava com mais nitidez que ela não queria crianças com deficiência, não se conformava com a “impureza genética” dos filhos autistas e, para piorar, achava que os genes do doador do esperma eram “perfeitos” porque, entre outros motivos, ele é branco, loiro e tem olhos azuis.
A indignação entre os autistas também se espalhou rapidamente, cerca de um dia depois da publicação da matéria. Diante dos protestos, na mesma manhã a Galileu retirou a notícia do ar, e republicou-a no começo da noite daquele dia completamente reescrita, sem a naturalização do comportamento eugenista da tal mãe, com seu título modificado e com uma errata de nove linhas no final.
As vitórias seguintes foram correções em matérias do site Sempre Família, numa reportagem sobre um projeto do Rio Grande do Sul que permite a pessoas com deficiência andar de bicicleta, na qual o autismo era mencionado como uma “doença” e posto lado a lado com o câncer e a esclerose múltipla; do Jornal Hoje em Dia, numa reportagem sobre Greta Thunberg em que a Síndrome de Asperger era chamada de “doença” e “mal”
e numa notícia do Mídia Bahia sobre os potenciais benefícios do canabidiol para pessoas com autismo e/ou transtornos mentais, que também chamava a condição de doença e a colocava no mesmo grupo de câncer, Doença de Alzheimer, glaucoma, AIDS e doenças neurodegenerativas. Nos três casos, as redações desses portais entraram em contato comigo (e talvez outras pessoas também indignadas) pedindo desculpas e anunciando as devidas correções.
Esses seis êxitos, dentro de um intervalo de menos de três semanas, foram seis passos para a frente que o jornalismo brasileiro deu rumo a um futuro sem capacitismo. Por outro lado, sabemos que ainda temos um caminho muito longo diante de nós. Afinal, o preconceito contra autistas hoje ainda não tem a mesma visibilidade que o racismo, o machismo, a LGBTfobia e diversas outras formas de opressão e preconceito, e a imprensa está muito acostumada a abordar o espectro autista de maneira patologizante, baseada no modelo médico (ou paradigma da patologia) do autismo.
Mas o fato de termos conseguido seis vitórias contra o capacitismo da imprensa brasileira traz uma bonita luz para quem perdeu as esperanças e a motivação de continuar lutando. Mesmo numa época em que estamos sob o (des)governo de uma extrema-direita cheia de ódio, cujo projeto político é unicamente de manipular e fanatizar uma parte da população, roubar os direitos dos cidadãos e destruir o país em prol de interesses privados, as lutas continuam acontecendo. E muitas delas, como a nossa pela aceitação do autismo e pelo fim do preconceito contra nós autistas, têm obtido fantásticos êxitos!
Penso que, quanto mais vitórias os movimentos sociais obtiverem, ainda que em meio a eventuais fracassos em outras frentes de luta, mais pessoas voltarão a ter esperança de lutar contra a política da destruição e a cultura da intolerância. É por isso que eu trago este relato -- para você, caso sinta apatia política e desesperança por ver os retrocessos se sucedendo uns aos outros, voltar a acreditar fielmente que o Brasil e a humanidade como um todo têm solução.
Não desista de lutar. Junte-se aos movimentos sociais que representam as minorias políticas de que você faz parte. Busque apoio psicoterapêutico, se precisar. E batalhe, ainda que recomeçando por meio de pautas aparentemente pequenas.
Nossas vitórias, das mais localizadas às de alcance mais nacional ou global, vão pouco a pouco resgatar os sonhos de um futuro melhor, os quais, até alguns anos atrás, tínhamos com uma força muito maior do que hoje. E cedo ou tarde, derrotaremos o fascismo, o autoritarismo, as violações de Direitos Humanos e as mais diversas formas de opressão.

9 comentários:

Anônimo disse...

a) Parabebs pelo seu dia querida professora.

b) Amei o texto admiro os pais de criancas autistas compreendo a luta

Anônimo disse...

Não vai falar sobre as ameaças a UniCarioca, Lola?

Patrícia Lourenço Marttins disse...

Lola, agradeço muitíssimo à você por ter publicado aqui o texto do Robson, texto necessário, diga-se de passagem. Já disse aqui outras vezes que estou no espectro autista mas não recebi o diagnóstico a tempo de me poupar de algumas dores. Nasci aqui no Brasil, em 1969, e numa família com parcos recursos financeiros. Só percebia que eu era, desde SEMPRE, extremamente diferente das outras crianças. Mesmo o diagnóstico do Pedro, considerando que nasceu em 1998, teve seu diagnóstico, a meu ver, tardio. Morávamos em Brasília com o pai dele (que ainda mora lá, é servidor público concursado desde 1992, antes mesmo de se formar em Direito), e o primeiro diagnóstico que o Pedrão recebeu foi o da síndrome de Silver e Russell (diagnóstico correto mas inconclusivo à época), por uma equipe genética do Sarah, em 2000 (ele tinha 2 anos e 9 meses); mas seu comportamento me mostrava: autista, autista, autista o tempo todo, e olha que eu sabia bem pouco de autismo. Mesmo assim, encorajada (ninguém na família sequer aceitava a ideia) por uma neuropsicóloga do Sarah, matriculei o Pedro no Centro de Ensino Especial de Brasília (fica na L2 Sul; um centro de capacitação para deficientes visuais ocupa (ou ocupava) o mesmo terreno) e foi ÓTIMO, porque lá eu tive a confirmação das minhas suspeitas. Quando vi um mural com a orientação ilustrada de como identificar uma pessoa com TEA (transtorno do espectro autista), mostrando 11 comportamentos (com bonequinhos em preto e branco), incluindo estereotipia, ecolalia (o Pedro nunca teve, ele nem fala, é não verbal), choro e/ou riso sem motivo aparente, não fazer contato visual (hoje ele faz), aparentar ser surdo, não ter consciência de perigo (ex atravessar uma rua movimentada); enfim, dos 11 o Pedro apresentava 9. E mesmo assim eu tive que ralar pra conseguir incluir autismo no diagnóstico dele. Na época era só autismo mesmo que se falava, TEA veio bem depois. Outra coisa, falava-se em autismo do tipo Kanner (mais severo, caso do Pedro) e autismo do tipo Asperger, esse não precisa explicar. Também tomei conhecimento da horripilante teoria da psicogênese e assiti o documentário Refrigerators mothers. Me espanta ver que isso ainda tem relevo. O Pedro tem conduta auto e hetero agressiva, mas está muito bem medicado hoje, graças a Deus. Mas já tentei de tudo, e muitas vezes uma medicação que funciona hoje não funcionou no passado, por exemplo, haloperidol, que agora tá servindo à perfeição. Já tentei Cannabis artesanal, não funcionou pra ele. Pedro já fez todas as terapias comportamentais conhecidas (incluindo ABA, teacch, EQUOTERAPIA, MUSICOTERAPIA, o desnecessário e maluco SonRise (desculpem-me os que aprovam). Há muita discriminação, Lola, mesmo no meio. Parece até uma espécie de competição entre algumas mães. Enquanto eu ia lendo os livros (todos!) da Temple Grandin, Daniel Tammet, Oliver Sacks, (a própria autobiografia do Nicola Tesla mostra um Asperger altamente sensível) eu fui percebendo a mim mesma no espectro. Hoje o Pedro frequenta uma Escola Estadual Especial aqui em Uberlândia, que tem uma MEGA DIVERSIDADE. Algumas pessoas não sabem, mas é possível uma pessoa ter, por exemplo DI (deficiência intelectual), transtornos motores e ter orientação sexual homo.Ainda não vi a série Special, cujo protagonista se enquadra no que eu disse, mas pretendo ver. Vou parar por aqui por que já ficou um texto muito longo. Obrigada pela atenção!
(Quis comentar naquele post seu sobre MMS, mas não o fiz porque traria à tona a experiência BAD que eu tive com o Pedro, ainda bem que não levei adiante, foram dois 2 dias só de "tratamento". E para os engraçadinhos que porventura quiserem me criticar por eu ter optado pela maternidade estando eu no espectro eu só digo um FDS bem grande, eu não sabia que era, só recebi meu diagnóstico aos 45 anos. E também, só quero que ele tenha suas necessidades atendidas, que se sinta amado, respeitado e feliz, o resto são só CIDs)

Anônimo disse...

Autismo é doença mental por definição.

Robson Fernando de Souza disse...

Anônimo(a) de 15/10/2019 16:46, o artigo fala da luta dos próprios autistas. Mães e pais de autistas também participaram dos esforços que o artigo descreve, mas quem protagonizou mesmo foram os próprios neurodiversos.

Marina disse...

Patrícia, vc pode explicar melhor essa frase do seu comentário?: "mas é possível uma pessoa ter, por exemplo DI (deficiência intelectual), transtornos motores e ter orientação sexual homo". O q tem a ver a orientação sexual com o resto?Não entendi...

Felipe Roberto Martins disse...

Agradeço por compartilhar o texto conosco Lola!

Patrícia Lourenço Marttins disse...

Oi, Marina, pergunta muito pertinente! Muitas pessoas partem do pressuposto que o deficiente cognitivo e ou motor seja SEMPRE hétero, e isso nem sempre acontece. Tem uma outra instituição que meu filho frequenta semanalmente onde frequenta também um garoto down e homossexual. Na escola que ele frequenta diariamente, até o ano passado tinha uma moça (saiu da escola por ter conseguido uma vaga no mercado de trabalho, pelo auxílio da assistência social dessa mesma escola. O horário de trabalho era inconciliável com a frequência na escola, e ela optou pelo trabalho) com DI e transgênero. Tem um vídeo da Lorelay (canal Para tudo) que ela aborda isso e, com a licença da Lola, vou colocar o link para o vídeo aqui embaixo.
Lembrando ao Robson que EU TAMBÉM sou uma pessoa autista, só que muito tardiamente diagnosticada. Como sou muito falante e tenho uma certa fluência verbal e facilidade para abordar pessoas, ninguém me leva a sério quando digo isso. Mas tenho uma dificuldade INCRÍVEL de formar vínculos, embora seja profundamente afetuosa. Vivo esse drama, mas não me sinto mal por estar no espectro e com relação ao Pedro a única coisa que me "incomoda" (na vedade DÓI) é quando ele se auto agride. Felizmente isso diminuiu drasticamente, agora ele está com quase 22 anos. As pessoas com quem eu tenho um link real mesmo são o Pedro e o pai dele, que mora fora, em Brasília. Então, a minha "luta" é dupla. a pouco começou-se a falar de maneira menos rasa sobre autismo e as confusões são muitas, muitas mesmo.

O vídeo da Lore

https://www.youtube.com/watch?v=tMe1m6QxQRU&t=105s

Se não linkar é só entrar no canal dela e procurar pelo título: DEFICIENTE e GAY: SPECIAL - Lorelay Fox

Ainda sobre o tema: no excelente (e necessário) livro do espetacular Andrew Solomon "Longe da árvore" (indico fortemente) ele toca nesse ponto em praticamente todas as 10 identidades horizontais* que ele "disseca" no seu premiado livro. (*é assim que ele nomeia os personagens (reais) de cada um dos dez capítulos: down, autista, anão (me impactou DEMAIS), transgênero, prodígios, surdos, deficiência múltipla, esquizofrenia, pessoas que nasceram a partir de violência sexual.É um livro sobre minorias e sobre pessoas diferentes e sobre como a família e a sociedade interage com essas minorias, com essas "diferenças", singularidades, idiossincrasias, talvez, não encontro o adjetivo perfeito.

Mais uma vez pedindo licença a Lola, link para um vídeo excelente sobre este livro, do canal Mão no livro

https://www.youtube.com/watch?v=7S1N9yy20Tg&t=3s

E para o texto abaixo, muito importante, também

"A reabilitação do afeto por Andrew Solomon" (Lolinha, se você ainda não, por favor, leia o livro!)

https://www.revistaamalgama.com.br/10/2013/longe-arvore-andrew-solomon/]

abraço meu e do Pedro pra você, Marina! (Pedrão é tão (ou mais) afetuoso quanto eu!

Marina disse...

Obrigada pela resposta Patrícia!É todo um universo q eu não tenho familiaridade nenhuma!
Vou procurar as indicações!
Abraço pra vc e para o Pedro! S2