quinta-feira, 31 de outubro de 2019

ELEIÇÕES URUGUAIAS E O DESAFIO DA ESQUERDA CELESTE

Publico aqui a análise inspirada que Patrícia García escreveu sobre as eleições uruguaias para o blog. Jornalista e tradutora, ela escolheu Montevidéu como lar e a América Latina como bandeira. Anteontem publiquei um ótimo texto dela sobre o plebiscito. 

Talvez você não conheça muito sobre o Uruguai, mas provavelmente já ouviu falar de um de seus maiores filhos, o escritor e poeta Eduardo Galeano. Dentro da obra de Galeano está o livro As veias abertas da América Latina, leitura imprescindível para compreendermos a construção deste nosso cantinho no mundo. É de Galeano também a frase: "Somente os tontos acreditam que o silêncio é um vazio”. E é através dela que vamos entender um pouco do que está acontecendo no pleito deste ano, tendo seu primeiro turno no último domingo, 27.
O Uruguai já é uma exceção muito curiosa em diversos aspectos: com 3,5 milhões de habitantes, em uma região marcada por conflitos ideológicos e influências externas que trazem instabilidade, o “paisito” consegue manter uma democracia sólida e estável, admirada ao redor do mundo. É um país pioneiro em direitos sociais, com uma sociedade com grande conhecimento histórico, memória vívida e acolhimento a diferenças e liberdades individuais. É o segundo país do mundo com tempo recorde sem recessão (15 anos sem crise, só perdendo para a Austrália, que carrega a marca de 17 anos). Por que, então, deveríamos nos preocupar com uma onda conservadora em um país tão avançado socialmente? 
Porque ela é silenciosa. Porque, muito parecido com o que o Brasil vivenciou nas eleições de 2018, o conservadorismo brota em discursos confusos e arrebanha aqueles que experienciam a vida através da tela da TV. Aqui, onde as eleições acontecem a cada 5 anos e o sistema de votação é um pouco diferente daquele do Brasil, a esquerda vem sustentando os pilares sociais e econômicos já há 3 mandatos. Nestes 15 anos, o Uruguai se recuperou de sua pior crise econômica, diversificou parceiros comerciais, fugindo da dependência de Brasil e Argentina, criou a Ley Trans, para a proteção de transgêneros, leis contra feminicídio, legalizou o aborto e levou ensino digital ao interior do país, entre muitas outras coisas. O Uruguai viveu o sonho progressista até ser contaminado pelo discurso liberal imperativo que tomou conta da América do Sul.
Sendo um povo que naturalmente discute muito a respeito de temas políticos nacionais e internacionais, e também uma sociedade que tem por característica a melhoria contínua, o uruguaio raramente está plenamente satisfeito. Sempre falta algo a se fazer. Diante disso, o principal argumento da direita para entrar nas casas charrúas não foi inicialmente a crítica aos feitos do governo da Frente Ampla (FA), mas sim aquilo que poderia ter sido feito. Esse movimento, que vem acontecendo há alguns anos, plantou no uruguaio a semente de uma urgência por mudanças, o que não é condenável, mas que pode ser usada por mentes mal-intencionadas. 
Especialmente se tais mudanças não são claras para quem as pede, nem para quem as oferece. Esse incômodo crescente do povo juntou-se às fake news, aos ataques digitais (inclusive políticos atacando os próprios companheiros de partido) e à falta de uma liderança expressiva da esquerda (como Pepe Mujica, que naquele momento havia se aposentado). 
Diante deste cenário, que possui algumas semelhanças com o que tivemos no Brasil nas últimas eleições, conseguimos entender um pouco essa guinada do povo uruguaio. Além disso, a crise militar de novembro de 2018 e a atitude tomada pelo presidente Tabaré Vasquez de certa maneira dividiu a opinião popular e trouxe para a discussão o papel e o espaço que os militares deveriam ter na política.
Essa crise, que culminou no afastamento e prisão do então comandante do Exército, General Guido Manini Rios, e mais 3 servidores por ocultação de crimes de ditadura, gerou uma grande polêmica entre os cidadãos. Dotado de um discurso atrativo, Manini Ríos criou seu próprio partido, o Cabildo Abierto, assim que saiu da prisão. Semelhante a seu par ideológico, Edgardo Novick, autodenominado “bolsonarista”, e que concorreu nestas eleições pelo Partido de La Gente, Manini apostou bastante no discurso de segurança. 
O levantamento de homicídios do país informou que havia um aumento no número deste tipo de crimes mas que este aumento era devido a guerra de gangues em áreas de fronteira. Trabalhando apenas com a primeira parte da informação, os partidos com espectro direitista decidiram investir no tema e fazer uma jogada estratégica: votar um plebiscito de segurança no mesmo dia das eleições.
Com o tema da polêmica reforma, que previa, entre outras coisas, a criação de uma Polícia Militar, os partidos de direita e centro-direita (Nacional e Colorado) e os partidos de extrema-direita (como o Partido de La Gente e o Cabildo Abierto) tomaram este assunto como foco de seus discursos, desviando as discussões sobre outros tópicos. O debate eleitoral se deu ao redor de dois temas apenas: segurança e crescimento econômico, este último trazido pelos neoliberais Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional e Ernesto Talvi, do Partido Colorado, um típico Chicago Boy que ganhou apelo especialmente entre os jovens. Além disso, as disputadas primárias do Frente Amplio, os desacordos entre as comissões e alguns conflitos internos que aconteceram durante e após as primárias, prejudicaram o foco do partido na candidatura de Daniel Martinez. 
Martinez, que foi prefeito de Montevideo e apenas deixou o cargo para concorrer à presidência, escolheu Graciela Villar, uma sindicalista pouco conhecida, como sua vice, deixando de lado aquela que parecia a escolha natural do partido, a ministra Carolina Cosse. Isso gerou um desconforto aparente no partido. Cosse é muito conhecida e respeitada até por aqueles que não são frenteamplistas e poderia ter uma força que era necessária para a FA neste momento. A dificuldade de transferência e resgate de votos fizeram até mesmo com que Pepe suspendesse sua aposentadoria e pleiteasse uma volta ao senado.
O primeiro turno que tivemos domingo não deixou ninguém tranquilo. Não se pode garantir que tenhamos uma continuidade da esquerda no Uruguai e infelizmente, no caso de uma possível coalizão da direita, esse sonho está cada vez mais distante. A grande disputa do segundo turno será entre o modelo social-econômico oferecido por Martinez e o modelo neoliberal oferecido por Lacalle Pou, um tipo semelhante ao Dória e que possui grande capital político herdado da sua família. Com pai ex-presidente e bisavô líder político, Lacalle possui uma extensa rede política e midiática que o tem ajudado a ganhar espaço com os uruguaios. 
No domingo, os 30% alcançados por Lacalle neste primeiro turno foram, em termos políticos, maiores que os 40% de Martinez. Eles mostram que há uma perda grande de força da Frente, maior do que o imaginado em um primeiro momento, e que há um apelo sedutor no neoliberalismo proposto por um partido que em sua história recente tem beneficiado as camadas mais ricas. Como disse Pepe Mujica, em um momento de autocrítica: “Nosso erro (como esquerda, na América Latina) foi transformar o cidadão em consumidor”. Infelizmente, essa mudança silenciosa hoje grita nas urnas.

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