segunda-feira, 1 de julho de 2019

GRÁVIDA PERDE O FILHO E É ACUSADA DE ASSASSINATO

Queridas e queridos, vou falar de um caso que pra algumas pessoas é polêmico, mas pra quem é feminista ou minimamente sensato é simplesmente incrivelmente mega baita super duper ultra absurdo. 
Aconteceu no Alabama, sul dos Estados Unidos. Uma mulher grávida brigou com outra, a outra atirou nela, a grávida perdeu o bebê, e ELA foi acusada de assassinato. Chocante, né? Fica comigo, que só ficar pior.
Nesta quarta-feira, 26 de junho, Marshae Jones, 27 anos, foi presa por um crime que aconteceu em dezembro em Birmingham, Alabama, no estacionamento de uma loja, à luz do dia. Marshae, que estava grávida de 5 meses, começou uma briga com outra mulher negra, Ebony Jemison, de 23 anos. O motivo da discussão foi por um homem, o pai do feto. Ebony atirou na barriga de Marshae e ela perdeu o bebê. 
Inicialmente, a polícia indiciou Ebony pelo crime. Mas um júri decidiu não levar a acusação contra Ebony adiante e no seu lugar indiciou Marshae, dizendo que Marshae começou a briga e que Ebony agiu em legítima defesa ao atirar.
Um policial local disse: "Não vamos esquecer que o bebê não nascido é a vítima aqui. Ela não teve escolha em ser posta desnecessariamente numa briga em que ela dependia da sua mãe para sua proteção". Uma promotora disse: “Temos simpatia pelas  famílias envolvidas, incluindo Ms. Jones, que perdeu seu bebê não nascido. O fato de que esta tragédia era 100% evitável faz do caso ainda mais triste”. 
Um pouquinho de contexto aqui. O Alabama é um estado racista. Um caso que ficou famoso aconteceu no ano passado, quando uma mulher negra foi acusada de assassinato por matar o marido abusivo em legítima defesa. A polícia local queria indiciar a mulher por não ter buscado medidas protetivas contra o marido. Graças à pressão popular no resto do país, um júri resolveu não indiciar a mulher. Isso daí dá uma boa ideia do que poderia acontecer aqui no Brasil se as mulheres tivessem arma em casa. Claro que se tivesse arma em casa a mulher seria morta, é o que todas as estatísticas mostram. Mas não é esse o ponto.
Tem um artigo de 2012 da revista do New York Times que fala da criminalização de "mães más", que se refere à Justiça punir mulheres por aborto espontâneo se elas usaram drogas, ou pela morte de seus filhos já nascidos por negligência em acidentes. Tipo: em 2011, uma mulher negra foi condenada por homicídio quando seu filho de 4 anos foi atropelado por um caminhão enquanto ela cruzava a rua. O júri a culpou pela morte porque a mãe não usou a faixa de pedestres. 
Se alguém atira numa mulher grávida e ela e o bebê morrem, por exemplo, o acusado responderá a dois crimes. Mas imagina que absurdo seria se uma mulher grávida tentasse se suicidar, sobrevivesse, mas perdesse o bebê, e fosse acusada de assassinato? Acho que isso ainda não aconteceu. Mas 38 estados dos EUA têm leis que reconhecem o feto como possível vítima de um crime. Um embrião ou feto em qualquer estágio de desenvolvimento é considerado uma pessoa no Alabama. 
Faz um mês, o governador republicano do Alabama assinou a lei mais restritiva contra aborto no país. Bane praticamente todos os casos de aborto, incluindo em caso de incesto e estupro. Só libera se a gestante correr risco sério de morrer. Mesmo que a lei só entre em vigor em novembro, ativistas em direitos reprodutivos avisam que o caso de Marshae Jones mostra o que pode acontecer com as mulheres do Alabama assim que a lei começar a valer. 
É o retrato de um país cada vez mais conservador, indo pro caminho do Conto da Aia. Nos anos 1990, havia cerca de 20 clínicas no Alabama que realizavam abortos. Em 2017 eram só 5. Agora há 3. Com a nova lei, um médico que realizar um aborto pode pegar entre 10 e 99 anos de prisão. 
Isso está acontecendo em várias partes dos EUA. As ONGs contestam a banição nas cortes, e o que os grupos pró-vida querem é que chegue à Suprema Corte, para que ela derrube o marco jurídico de 1973, Roe vs Wade, que legalizou o aborto em todo o país. 
Marshae Jones durante sua
primeira gravidez
Vamos lembrar que aqui no Brasil o projeto dos fundamentalistas cristãos é proibir o aborto em todos os casos. Enquanto essa lei absurda não entra em vigor no Alabama e outros estados, vão punindo as mulheres. Pra mim parece meio óbvio que, neste caso específico, se a mulher grávida não fosse negra e pobre ela não seria acusada de um crime. Prova como a vida do feto é vista em lugares racistas e misóginos como mais importante que a vida de uma mulher adulta. 
Ebony Jemison
Mas vamos voltar ao caso. De acordo com Ebony, ela, Marshae e o pai do bebê trabalhavam juntos num depósito. Marshae tinha ciúmes e foi confrontá-la. Ebony e três amigos estavam num carro na frente de uma loja durante o intervalo pro almoço quando Marshae e quatro amigos chegaram. Uma discussão começou. Ebony diz que Marshae puxou seu cabelo, e que ela, Ebony, atirou para o chão como advertência, e que nem sabia que o tiro tinha atingido Marshae. 
Marshae com sua filha de 6 anos
Já a polícia diz que Ebony atirou na barriga de Marshae. Li em outro lugar que Ebony entrou no seu carro durante a briga para pegar a arma, atirou e foi embora. A avó de Marshae conta que ela parou de brigar e estava indo embora quando Ebony atirou. Há várias versões. O que sabemos é que Marshae começou a discussão, estava desarmada, Ebony tinha uma arma e atirou, Marshae foi atingida na barriga e perdeu seu bebê de 5 meses. E agora, se julgada e condenada, Marshae pode pegar 20 anos de prisão. Ela já tem uma filha de 6 anos, o que leva a gente a pensar se alguém sai ganhando se Marshae for presa.
É tanto absurdo, né? Vamos imaginar que eu começo uma briga, desarmada, e a pessoa com quem eu comecei a briga tem uma arma e atira em mim em legítima defesa. Eu devo ser indiciada? Ou a pessoa que atirou em mim? E se a pessoa armada atira pro chão ou pro alto pra me advertir e o tiro atinge uma criança que tá lá perto. Eu cometi o assassinato por ter começado a briga ou a pessoa que atirou? O que me leva a outro ponto: pro pessoal que adora dizer "armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas", num caso como esse, em que duas mulheres brigam, se uma delas não tivesse uma arma, alguém teria morrido? A socos? 
Local do crime: estacionamento em Birmingham, Alabama
Quando me mandaram a notícia no Twitter, eu divulguei, indignada. Um rapaz que eu nunca tinha ouvido falar respondeu ao meu tuíte: "Acho que os argumentos da justiça daquele estado estão corretos. Foi a mãe que colocou o bebê em risco, a outra mulher reagiu em legítima defesa. Não há o que se argumentar. E sem sombra de dúvidas a vida do feto é mais importante por estar indefeso".  
Eu disse pra ele: "Não me siga, por favor. Não quero q alguém q ache a vida de um feto mais importante do q a de uma mulher me siga. Obrigada." Ele ainda insistiu, com um argumento que diz tudo: "Imagina eu, um espírito, esperando na fila minha vez de nascer. Fernandinha estava louca para dar pro Ricardinho, não se aguentou e deu pra ele sem camisinha. Depois de 1 mês Fernandinha descobre que engravidou, quer abortar pois tem a vida toda pela frente. Mas e eu na fila?" Cara, quem é você na fila do pão? Dane-se vc. A discussão não é sobre vc. É sobre uma mulher que foi baleada na barriga. Tá vendo como você não dá a mínima pro corpo da mulher? Se a Fernandinha tivesse te abortado, vc não estaria aqui neste momento escrevendo besteira. 
Bom, diante da repercussão nacional e internacional, a promotoria do Alabama disse que ainda vai avaliar o caso e ver se é de homicídio, se vai reduzi-lo a outro crime, ou se não vai indiciar ninguém.
Um grupo que ajuda a financiar abortos para mulheres pobres no Alabama disse que iria pagar a fiança de 50 mil dólares para que Marshae deixasse a cadeia, e que também pagaria uma representação legal. Uma federação nacional pró-aborto disse num tuíte: "É assim que as pessoas -- principalmente as mulheres negras -- já estão sendo punidas e tendo sua gravidez criminalizada". Também estão divulgando alguns tuítes em inglês com a tag "Perder uma gravidez não é crime".
Uma diretora do Fundo pró-aborto disse que "o Alabama provou mais uma vez que no momento que uma pessoa engravida sua única responsabilidade é produzir um bebê vivo e saudável, e que o Estado considera qualquer ação realizada pela pessoa grávida um ato criminoso". 
"Não respire"
E só pra vocês saberem: no Alabama, o sexto estado mais pobre dos EUA, mulheres negras têm 3 vezes mais chances de morrer durante ou depois do parto do que mulheres brancas. Lá menos da metade das cidades têm hospitais que oferecem serviços obstétricos. O Alabama também é líder nos EUA em acusar mulheres grávidas por "crimes contra a gravidez". Então, qualquer coisa que puder ser considerada contra a gravidez pode levar uma gestante à cadeia: se ela bebe álcool, se ela usa drogas, se ela não faz o pré-natal, se ela engorda demais durante a gravidez, se ela faz caminhadas para não engordar demais, se ela anda de bicicleta e cai, se ela lê um post feminista meu e fica revoltada e isso altera sua pressão e ela perde o bebê. Qualquer coisa! 
Ou seja, olha a hipocrisia: se um feto ou uma mulher grávida morre, não é culpa do estado e seu atendimento falho, mas da mulher. Ao mesmo tempo, uma mulher não pode realizar um aborto legal, mas pode morrer à vontade ou ver seu bebê morrer em decorrência de um estado que não lhe dá nenhum direito, só a criminaliza.

10 comentários:

Marina disse...

Você não pode fazer QUALQUER coisa pra se defender, tem um pessoal aí que tá precisando estudar excesso em legítima defesa.

titia disse...

É por coisas assim que eu insisto que as mulheres devem abandonar os homens e deixar de ter filhos. Arranjar macho e moleque, nesse mundo em que vivemos, é apenas passar a corda em torno do próprio pescoço enquanto se está cercada por bostas loucos pra chutar o banquinho.

Anônimo disse...

tenho 31 anos, casada, e estou quase decidida a não ter filhos.
Infelizmente é a única medida que posso tomar num mundo que reotrage desta forma.
Uma sociedade que mais parece uma distopia.
Bem, eu sei, talvez eu esteja errada, talvez, devamos colocar no mundo e educar pessoas
para lutar contra isso. Mas não sei se tenho forças.
Sandra

Anônimo disse...

Ué... Cadê a galera da Teoria Queer para dizer que ser mulher é um ''sentimento/identidade" e que mulheres não são oprimidas com base no sexo biológico? Perguntinha básica, Quem os conservadores querem controlar com essas leis anti-aborto: 1) O corpo feminino 2) A suposta ''identidade feminina''?

Anônimo disse...

Medidas judiciárias absurdas e grandes retrocessos, supremacistas brancos, entre outros acontecimentos, fatos tem como palco o sul estado unidense e o Alabama é um dos nichos da "southern hospitalaty" e a tendência com o Trump é disso para pior. O vale do silício está muito bem, obrigada, enquanto aumenta o número de moradores de rua. Isso retrocessos serão bem vindos em nome de uma revolução tecnológica benéfica para poucos e raros.

Denise disse...

Que coincidência, eu estava discutindo EXATAMENTE esse assunto com meu marido ontem, de criminalização das mulheres negras. Acabei de ler um livro chamado “Small Great Things”, da Jodi Picouli (não sei se foi lançado no Brasil) que fala justamente disso, do racismo enraizado na sociedade. O livro é um tapa na cara de pessoas brancas, como eu, ao dizer que racismo não é só sobre preconceito e ódio, mas sim sobre privilegio. Que mesmo as pessoas brancas que não se acham preconceituosas são no fundo racistas por usufruírem do privilegio que a sua cor lhe traz. E o mesmo raciocínio se aplica ao machismo.

Certeza que nesse caso que vc narrou, Lola, essa pobre mulher que perdeu o bebe apenas está sendo indiciada por ser negra e mulher. No meu debate com o marido ontem eu disse justamente isso: nossa, se eu já sofro opressão por ser mulher, imagina aquelas que além de mulher são negras e pobres.

Esse mundo é podre!

Cão do Mato disse...

Mas a ironia disso tudo é que elas brigaram justamente por causa de macho...

Anônimo disse...

a) Lola amei o texto

b) E muito triste que a humanidade esteja caminhando para a idade media.

c) Lola vc poderia tb fazer um post sobre a mulher que foi violentada por policiais em Sao Paulo e o caso do PM que pediu o namorado em casamento e agora esta sendo ofendido

mh disse...

Gentes, tem que ficar muito atentas.
O Fernandinho Holiday tem um projeto mais do que sinistro para as mulheres.
Por favor, leiam a reportagem no El País:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/26/politica/1561577998_364180.html

Anônimo disse...

A foto da mulher negra com a mensagem na boca não seria "can't breathe", ao invés de "don't breathe" (não respire), usada pelo Black Lives Matter depois que um jovem foi estrangulado pela polícia em uma abordagem?