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sexta-feira, 3 de setembro de 2021

A HERANÇA ESCRAVAGISTA FAZ MAIS UMA VÍTIMA

Essa história me enche de raiva.

Eu já tinha lido a matéria sobre Raiana, uma babá de 25 anos que pulou do terceiro andar de um prédio em Salvador para fugir das agressões da patroa. Raiana teve várias escoriações pelo corpo e fraturou os dois pés. 

Mas eu ainda não tinha visto as imagens das agressões, obtidas por uma câmera de segurança. São terríveis, de uma covardia inominável. Raiana está sentada num sofá com uma bebê, uma das trigêmeas de quem tomava conta. Era nova no emprego, só estava lá havia uma semana. Melina, a patroa, começa a gritar com a babá e agredi-la do nada. São vários socos, tapas, puxões de cabelo, chutes, xingamentos. Ela ainda diz: "Você só sai daqui num caixão".

Em cárcere privado, Raiana chegou enviar uma mensagem aos familiares, pedindo ajuda. Eles viajaram do interior à capital, mas, ao chegar ao prédio, não conseguiam localizar o apartamento onde a babá trabalhava. Depois, a patroa a obrigou a mandar mensagem dizendo que estava bem. Raiana ainda tentou se socorrer com uma vizinha, mas Melina a arrastou para dentro.

Felizmente, Raiana sobreviveu, está bem, e o caso veio à tona. Outras onze ex-funcionárias de Melina surgiram para denunciá-la. Ela não as pagava direito, confiscava celulares, xingava, ameaçava, e partia pra agressão física. Pelo menos duas delas registraram boletim de ocorrência, em 2018 e 2020. E nada aconteceu. As denúncias não foram investigadas, um incentivo para Melina continuar destratando trabalhadoras. 

Num depoimento de 6 horas na delegacia, Melina alegou que também foi agredida e que revidou. Certamente não é o que as câmeras dizem. 

A elite brasileira é repulsiva. Saudosista do seu passado escravagista, insiste em tratar com violência suas empregadas domésticas. 

Paga mal, quando paga (uma boa parte das domésticas ganha menos de um salário mínimo), e insiste em heranças de uma era que deveria causar vergonha, como quarto de empregada e elevador de serviço. 

Aliás, não é só a elite brasileira. Nunca vou me esquecer dos maus tratos sofridos por Rigoberta quando trabalhava em casas de família. Ela narra isso em Meu Nome é Rigoberta Menchú: e assim nasceu minha Consciência. Décadas mais tarde, em 1992, ganhou o Nobel da Paz por sua lutas pelos indígenas. Mas o dia a dia contado por Rigoberta como empregada na Guatemala é muito parecido ao das domésticas daqui: uma rotina de exploração, humilhações, condições análogas à escravidão e, em muitos casos, agressões físicas.
 
Até quando?

Toda minha sororidade a Raiana e às outras funcionárias espancadas pela patroa. E nenhuma a Melina, que precisa ser punida e indenizar todas que agrediu impunemente.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O SONHO ROUBADO POR SER MULHER

Hoje publico este ótimo post da Chrislly Catta Preta Fulgoni, servidora pública federal, sobre algo que não acontece com os homens.

Deveria começar escrevendo que sempre fui uma mulher empoderada e determinada. Estaria mentindo. Quando mais jovem, era apenas uma menina insegura quanto ao sucesso que poderia ter, tanto na vida pessoal como na profissional. Todas as experiências que me forjaram ao longo dos anos tornaram-me mais forte, reservada e confortável com quem sou e com quem desejo ser no futuro. As reflexões sobre o que é ser mulher se intensificaram após o nascimento da minha filha, em 2017.

Conheci aquele que mudaria muito de mim em 2006: meu marido. Um entusiasta do serviço público que me ajudaria incessantemente a estudar para que eu alcançasse aquilo que passara a ser um sonho: ser aprovada em um concurso público. Foram anos de preparação divididos com faculdade e trabalho, anos de reprovações, anos de “fiquei por um ponto”. Muitas e muitas lágrimas. Finalmente, no dia 20/06/2016, meu nome estava no Diário Oficial: APROVADA no tão sonhado concurso público.

Não há como colocar em palavras a sensação que tive. Não era apenas uma alegria pela conquista profissional. Era como um bálsamo de alívio. Finalmente eu provava a mim mesma e para todos -- família, amigos, colegas de trabalho -- que eu também era inteligente como meu tão bem sucedido marido. Finalmente tinha conquistado algo.

Deixo claro que essa sensação de estar sendo julgada não decorre de atos explícitos. Na maioria das vezes vem dos que mais amamos. Lembro bem de um episódio peculiar que demonstra bem o julgamento do outro sobre nossa vida. Ainda na faculdade em que eu e meu marido (então namorado) cursávamos Direito, ouvi de um colega de classe em tom jocoso que eu era uma “Maria Concurseira”, porque tinha escolhido namorar o rapaz mais inteligente da sala, servidor público desde os dezoito anos. Esse comentário era tão absurdo e ofensivo que não tive reação. Ouvi calada. Cheia de raiva, mas calada. Estudávamos os três na mesma sala, minhas notas sempre foram excelentes, eu tinha desenvoltura nos trabalhos, mas, mesmo assim, um homem achava que era engraçado reduzir-me e reduzir meu relacionamento a um alpinismo ou oportunismo. As mulheres dividimos os mesmos espaços que os homens, mas é como se fosse um favor permitirem que estejamos lá.

Enquanto esperava minha nomeação, resolvi engravidar. Acreditava ser o momento certo, pois finalmente não estava sob o estresse da preparação para um concurso público e o decorrente desgaste físico e emocional. Engravidei. Nos nove meses de gestação ouvi coisas assim: “Não entendi por que você fez concurso. Você engravidou, vai trabalhar depois que ela nascer?” -- dita por uma jovem de 20 anos. “Esse salário aí que você vai ganhar é um bom salário para uma mulher!” -- dita por um tio amado.

O tempo passou e há dez dias da data prevista para o parto da minha primeira e única filha, recebi um telefonema de Brasília. Uma pessoa do recursos humanos me ligava para avisar que minha nomeação seria publicada e que eu deveria me antecipar e realizar os exames admissionais. A nomeação foi publicada numa quarta-feira e na quinta-feira, dia 01/07/2017, eu saía de casa para tomar posse no tão sonhado concurso público. Após muito sofrimento, a nomeação estava ao meu alcance. Como num conto de fadas eu estaria empossada no meu cargo e, em seis dias, nasceria minha filha. Como em um roteiro clichê, tudo daria certo.

No entanto, a perita recusou-se a declarar-me apta para o cargo sem um exame ginecológico chamado colposcopia, mesmo com uma declaração da minha obstetra informando que se tratava de  exame invasivo demais para ser realizado no nono mês de gestação. Saí aos prantos do prédio. Meu sonho estava escapando de minhas mãos. Liguei para meu marido. Na minha mente ele estaria mais lúcido e conseguiria me ajudar a resolver aquela situação. Ele e minha grande amiga Ludimila Poirier (advogada também) saíram da cidade vizinha onde ambos trabalhavam e vieram ao meu encontro, para me consolar e pensar no que faríamos. A decisão foi recorrer ao judiciário. Ingressamos com um pedido de tutela antecipada antecedente a fim de afastar a exigibilidade do exame. O juiz negou. Um juiz homem e jovem. Deferiu apenas a reserva da vaga para quando meu exame pudesse ser feito (segundo a obstetra, seis meses após o parto).

Com a negativa, voltei à esfera administrativa. Falei com o gerente executivo, com o chefe do RH local e com o chefe do RH em Brasília. Todos eram unânimes em afirmar que o que tinha acontecido era absurdo, mas que nada poderia ser feito, pois a perita tinha autonomia para decidir. Por fim, procurei a chefe do departamento de perícias. Ouvi da médica chefe: “Não sei por que você está com tanta pressa, você deu sorte de ser nomeada.”

“Sorte”. Após todo sacrifício da aprovação, após toda aquela situação no fim da gravidez, todo o estado emocional envolvido, tive de ouvir que não tive mérito algum. Foi “sorte”. 

Sem nada mais a ser feito e temendo perder a vaga, decidi conversar com minha obstetra sobre o que tinha acontecido. Aos prantos, contei toda a história. Ela deu a solução: “Consigo fazer esse exame em você com um pequeno risco de sangramento, o que é normal, mas sem risco para a bebê. No entanto, será um exame sem efetividade. É um útero todo alterado e ferido pela gestação avançada. Mas, se é um laudo que eles querem, um laudo eles terão.”

Terça-feira, dia 06/06/2017, um dia antes do parto, eu estava com todos os exames exigidos em mãos. Voltei à perita e fui recebida com a frase: “Hoje não posso. Vou ao dentista, volte depois de amanhã.” Indignada, respondi: “Não, doutora. Meu parto é amanhã. Vou sentar aqui e espero quantas horas for preciso.” E esperei. Depois que ela voltou, o exame foi feito. Durou cerca de dez minutos. Ela olhou os exames e disse: “Você fez a colposcopia? Deveria ter esperado.” Fiquei em silêncio, pensando como uma mulher, médica, podia ser tão desumana assim.
Tomei posse na véspera do parto e entrei de licença imediatamente. Não queria encontrar nenhum deles pelos próximos seis meses. Isso faz quase quatro anos e ainda hoje sinto muita tristeza e raiva dessa história. É como se tivessem roubado algo que não pode ser repetido. A experiência da conquista do primeiro concurso após tanto sacrifício. Mesmo vencendo outros, esse, o primeiro, roubaram. 

Quando finalmente comecei a trabalhar, após a licença maternidade, outra pergunta era constante, já que eu estava trabalhando na mesma entidade federal em que meu marido havia trabalhado. Era “óbvio” para as pessoas que nos conheciam que eu “só” estava lá, porque “ele” tinha “arranjado” para mim. “O Ricardo arrumou para você essa vaga?” No começo eu tentava explicar que concurso público não funcionava daquela maneira, que ele tinha me ajudado muito a estudar, mas eu tinha feito prova e conseguido a aprovação por meus méritos. Mas depois de algum tempo desisti e passei a responder: “Sim, foi ele mesmo que arrumou. Você acredita que eu sento até na mesma cadeira?” E a vida seguia.

A filha crescia e os objetivos da nossa família se tornavam maiores. Quando meu marido decidiu estudar para a magistratura eu sabia que exigiria um esforço coletivo ainda maior do que os anteriores, vivenciados em outros concursos. E tem sido assim por quase dois anos. Agora, novamente, a condição de mulher, esposa, profissional e mãe virou questão de debates. A eterna opressão para que eu, mulher, esteja em um cargo melhor, com mais títulos, para que eu permaneça interessante para ele e não seja trocada. O olhar da sociedade para a mulher é eternamente julgador e sem empatia. Novas perguntas surgem: “O marido vai ser juiz, você não vai fazer outro concurso? Vai ficar para trás?” Como se eu e ele estivéssemos numa eterna competição e precisássemos provar que merecemos o amor do outro pelo que conquistamos e não pelo que somos.

É cansativo ser mulher. Mas eu não desisto. Há um mundo a preparar para minha filha. Ela está crescendo, conhecendo esse mundo aos poucos. Precisamos lutar. A luta feminista não é por privilégio. É por igualdade. É por equilibrar a balança entre os ônus e os bônus femininos. O mundo que minha filha vai viver será melhor? Não sei. Mas farei tudo para construí-lo. Utópico? Talvez. Mas como meu marido gosta de dizer, é a utopia que nos faz caminhar. Caminhemos, pois! Lutemos! A mulher pode ser o que ela quiser.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O PROFESSOR UNIVERSITÁRIO QUE ESCRAVIZAVA MADALENA

Ontem o Fantástico fez uma reportagem triste e revoltante sobre uma realidade muito atual: a de meninas que crescem escravizadas como empregadas domésticas em casas de família.

Foi o que aconteceu com Madalena Gordiano, hoje com 46 anos. Quando ela tinha 8, foi pedir um pão na porta de uma casa em Patos de Minas (MG). A dona da casa, a professora Maria das Graças Milagres Rigueira, respondeu: "Não vou te dar não. Você vai morar comigo". Maria falou com a mãe de Madalena, que tinha outros oito filhos, e que concordou que a menina fosse adotada.

A adoção nunca foi formalizada. Em vez disso, Madalena foi tirada da terceira série da escola e passou a ser empregada na casa, sem salário, sem registro, sem qualquer direito trabalhista, como folga e férias. Viveu 38 anos de sua vida assim, em situação análoga à escravidão. 

Quando o marido de Maria começou a brigar com Madalena, a professora decidiu passá-la --como se fosse um objeto, um animal, uma posse -- para o filho, Dalton Cesar Milagres Rigueira, professor universitário. Lá ela continuou sendo escrava. A família a casou com um tio, um militar que morreu logo depois, para poder ficar com duas pensões de 4 mil reais cada. Dalton ia ao banco com Madalena para que ela retirasse o dinheiro, e lhe dava R$ 200 ou 300.

A situação só mudou quando Madalena passou a deixar bilhetes para vizinhos pedindo dinheiro emprestado para comprar, por exemplo, sabonete. Desconfiados, algum deles chamou a polícia. Madalena foi resgatada no final de novembro. Que todas as Madalenas sejam libertas!

A história toda causa enorme indignação, apesar de não ser incomum. Quanto mais pobre um país, mais crianças serão exploradas, escravizadas. Esse tipo de escravidão era bastante frequente até 20, 40 anos atrás. Temo que a volta estrondosa da miséria no Brasil (segmentada com o golpe de 2016) faça novas vítimas. 

Talvez o que tenha me chocado mais na história foi Dalton, um professor universitário, dizer que não motivava Madalena a retornar à escola porque ele não "acredita que ela se beneficiaria de receber educação".

Dalton tem graduação em zootecnia, é mestre e doutor, e dá aula na faculdade particular e filantrópica Centro Universitário de Patos de Minas. O @castilhoalceu escreveu e compartilhou este texto num grupo de Whatss, que reproduzo aqui:


Estava lendo sobre Dalton, o professor de Zootecnia que manteve durante décadas Madalena Gordiano (em um quarto pequeno em Patos de Minas) como trabalhadora doméstica, em condições análogas à escravidão. Ela foi libertada no fim de novembro.

O Fantástico contou essa história na noite de ontem. Mostrou Madalena finalmente andando em um parque. Falando do dinheiro (dela) que agora ela poderá administrar. Pois antes o professor — segundo o Ministério Público do Trabalho — o confiscava.

Bem. Dalton Cesar Milagres Rigueira, professor universitário em Patos de Minas, formou-se em Viçosa (MG). Não é de família rica, pelo que pude apurar. Pai e mãe (que adotou ilegalmente Madalena quando ela tinha 8 anos) são sócios numa auto elétrica.

O que mais me chamou a atenção foram as dedicatórias em sua tese de doutorado, defendida em 2014 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

Os agradecimentos começam com as seguintes palavras: "A Deus, por me guiar nesta caminhada". (Mais à frente ele insere uma epígrafe atribuída a Chico Xavier: "O que a gente não pode mesmo, nunca, de jeito nenhum... é amar mais ou menos".)

Depois ele agradece à UFMG. À empresa do agronegócio que permitiu a realização do experimento — algo sobre plano de nutrição para leitões desmamados.

Em seguida ele agradece ao seu orientador e a outro professor. Ato contínuo, à esposa Valdirene — igualmente investigada, como ele, por diversos crimes relacionados à exploração de Madalena.

As filhas, os pais e irmãos também são lembrados. Muito justo.

Como era de se esperar, Madalena, definida pela defesa do professor como "praticamente alguém da família", não aparece entre os homenageados. É ela a grande ausente.

Dalton agradece ainda a uma mulher que o hospedou em Belo Horizonte. A dois professores "pelas caronas". A todos os funcionários da granja que o ajudou na pesquisa. Menciona dois amigos.

Por fim, encerra os agradecimentos com as seguintes palavras:

"Aos suínos, meu eterno respeito".

terça-feira, 30 de junho de 2020

PARA APOIAR O BREQUE DOS APPS, NÃO PEÇA ENTREGAS AMANHÃ

Amanhã, dia 1o de julho, haverá uma greve dos entregadores de aplicativos. Já tem uma tag bombando no Twitter: 
#AmanhaTemBrequeDosApps. O jeito de apoiar é não pedir nenhuma entrega amanhã!
Reproduzo aqui a entrevista que o coletivo Juntos! fez com a entregadora antifascista Eduarda Alberto. Uma entrevista importante para entendermos os perigos e desafios desta profissão altamente precarizada

1. Como você se tornou entregadora de aplicativo? Tinha outra profissão antes?
Eu não sou entregadora de aplicativo, eu entrego para micro-empreendedoras e outros serviços freelancer que surgem. Porque eu não sou entregadora de aplicativo: o meu namorado até pouco tempo entregava por aplicativo e alguns companheiros nossos e amigos próximos também, e a questão da precarização do trabalho no aplicativo já era muito clara pra mim. Inclusive eles também pararam de entregar por aplicativo, então quando comecei a entregar, eu já tentei criar meios pra não depender de aplicativo, pra ter um trabalho mais autônomo mesmo. Eu tinha outra profissão antes sim, na realidade eu estudo arquitetura e todo o meu trampo é pra conseguir me manter estudando. Manter meu aluguel, comida e principalmente estudando. Eu tava trabalhando nos últimos tempos como bartender, e quando Crivella decretou a quarentena e os bares tiveram que fechar, na semana seguinte eu já tava fazendo entrega, porque eu precisava de uma fonte de renda. Então eu me tornei entregadora justamente por conta da pandemia. Então não fiquei de quarentena nenhuma semana sequer.

2. Como você vê essa ideia de empreendedorismo para aqueles que trabalham por conta própria?
Essa ideia de empreendedorismo pra quem trabalha por conta própria é uma mentira né, quando é contada pra pessoas que são prestadoras de serviço. Entregadores são prestadores de serviço, não têm um plano de negócio, não tem uma projeção de enriquecimento, até porque o que você ganha não consegue nem dar conta de todas as suas contas às vezes. Então isso é uma mentira que eu percebo que ela é contada pra você se sujeitar àquele trabalho mesmo, porque se você pensa, quem se sujeita a pedalar 6 km pra ganhar 3 reais, né? 
Você tem que estar acreditando numa mentira, então acredito que essa ideia do empreendedorismo é uma estratégia manipuladora mesmo, pra gente que entrega. Vende uma ideia de certa emancipação, de certo emponderamento, mas na verdade você não define se você quer as taxas que você vai receber, você não define absolutamente nada, você é um prestador de serviço e ponto. Você recebe uma demanda e aquilo é imperativo, você não decide nada sobre ela, você só pode cumprir.

3. Quais são as principais revindicações dessa paralisação?
Antes de tudo, acho importante deixar claro que eu faço parte do movimento dos entregadores antifascistas e essa paralisação que se tornou um chamado pra greve, não foi puxada por nós, mas a gente apoia. Nós fomos um movimento que surgiu inclusive no meio de todo esse processo de organização pra essa greve, mas não fomos nós que puxamos, apesar de apoiar 100%.
Mas vamos lá para as reivindicações dessa paralisação: está sendo reivindicado um aumento no valor das corridas e pacotes; aumento do valor mínimo por entrega; seguro de roubo, acidente e vida; bizarro até ter que reivindicar isso, porque não é garantido. Se você morre no meio da estrada, você vai estar morto com a logomarca do aplicativo do seu lado, fazendo propaganda, mas eles não vão ali te socorrer não. 
Então tem também o fim dos bloqueios e desligamentos indevidos. Por que isso tá entrando? É muito bloqueio indevido mesmo, tem gente que nem rodou no dia anterior, acorda pra poder rodar naquele dia e tá bloqueado porque supostamente fez uma entrega errada que a pessoa nem trabalhou. Só um exemplo da surrealidade. 
Tem também o fim do sistema de pontuação, esse sistema de pontuação, é muito injusto também porque às vezes quando a pessoa pede um lanche no aplicativo e dá uma nota baixa pra aquele pedido, isso pode bloquear um trabalhador que não vai ter como levar dinheiro pra botar comida em casa. E às vezes a responsabilidade é mais dos restaurantes do que dos entregadores. Além disso, tem também o auxílio pandemia que tá sendo reivindicado nessa greve: EPIs, porque os aplicativos não fornecem material de segurança, e licença também pros entregadores que pegarem coronavírus agora na pandemia.

4. Você vê uma relação entre essa mobilização e outras que tem acontecido nacionalmente, como os atos antifascistas e antirracistas?
Eu percebo sim uma relação porque está se criando um terreno de revolta. Esse terreno de mobilização já é um terreno de revolta, que tá acontecendo. Os atos antifascistas e antirracistas e antirracistas inclusive, foram o berço do nascimento dos entregadores antifascistas. Então pra além do nosso grupo de entregadores antifascistas, de qualquer forma tá sendo um momento no mundo todo de muita revolta. Em pontos chaves de disposição do mundo. E o próprio movimento nasceu no ato pela democracia, por isso é interessante também o termo antifascista no nosso movimento, até porque a gente percebe que se não tiver num regime político que você tenha a possibilidade de fala, de ter voz, de se organizar com seus comuns, não tem como tocar nenhuma luta.

5. Outras paralisações internacionais, como a de uberes que aconteceu ano passado, influenciaram vocês de alguma forma?
Nas discussões que eu vejo de motoboys e entregadores em geral, a maior referência tá sendo da greve dos caminhoneiros, que tá sendo citada de forma recorrente entre os motoboys. Talvez eles se percebam mais como entregadores também né, como pessoas que transportam mercadorias pelo território.

6. Como vocês tem se organizado a nível local e nacional?
De maneira geral os motoboys e entregadores têm se organizado por whatsapp. O whatsapp tem sido a maior ferramenta de troca de ideia, troca de informação. O movimento de entregadores antifascistas especificamente também se organiza bastante pelo whatsapp, mas a gente tem reuniões periódicas de todos os estados pra poder definir e alinhar nossos planos para o movimento. E o boca a boca, que é o mais utilizado de fato. Quando você tá com o aplicativo ligado, você pode ficar por 12h com ele ligado que não necessariamente você vai pegar vários pedidos. Tem várias pessoas que ficam com o aplicativo ligado e conseguem pegar 3 pedidos. Então esse momento de aguardo nos pontos que saem pedido é um momento potente pra troca de ideia e pra nossa organização.

7. Por que você acha que entregadores de aplicativo são principalmente homens?
Muito interessante essa questão, porque ela vai além dos entregadores de aplicativo. Eu acho que qualquer profissão que você tenha que vivenciar a cidade, as mulheres são menor quantidade no grupo de trabalhadores. Porque de maneira geral as mulheres são socializadas pra escala doméstica, a gente é criada pra ter medo da rua e a rua é realmente perigosa pra gente. Então é uma série de fatores que coloca os homens pro mundo e as mulheres pra escala doméstica, seja a socialização ou seja realmente os riscos que a rua oferece. 
Eu por exemplo, não rodo à noite, não posso rodar à noite. Porque eu percebo que eu ali, com uma bag nas costas, mexendo no celular o tempo inteiro, eu tô ali vulnerável. E alguns lugares eu não tenho total conhecimento, né? Então eu acho que essa questão do ambiente da cidade ser hostil pras mulheres de maneira geral, reflete nessa questão de ter mais entregadores homens, como em todas as outras profissões que são mais na rua.

8. Como as pessoas podem apoiar a mobilização de amanhã, dia 1?
Principalmente não pedindo no aplicativo. Não pedir no aplicativo é uma forma muito relevante de ajudar nesse dia. Mostrar realmente o impacto econômico que nós somos. Nós produzimos dinheiro pras empresas, né? 
Quem tá movimentando o dinheiro das empresas não são os acionistas, é quem faz o dinheiro pra eles que é quem tá na rua se expondo pra trabalhar. Então a gente consegue mostrar a nossa força com esse apoio, ninguém pedindo no dia 1°. E se der pra não pedir nos dias seguintes, ótimo também. Porque a gente tá querendo conseguir movimentar uma greve, então pra além de um dia.
E de maneira geral, eu tenho dito pras pessoas, quando for pedir um lanche por aplicativo que vier a pessoa entregar, pergunta pra ela se ela faz entrega por fora do aplicativo, aproveita pra pegar o contato dessa pessoa. Tem forma de apoiar por fora dos aplicativos e a ideia é fortalecer isso cada vez mais. E é isso, muito obrigada pelo interesse de ouvir sobre o movimento, de ouvir sobre nossa organização e pelo apoio. Também pelas perguntas muito boas, que foi uma delícia aqui de estar respondendo. Muito obrigada!
UPDATE: Veja aqui o sucesso que foi o #BrequeDosApps, o levante contra a precarização. Imagens de protestos por todo o país! (na foto acima, Fortaleza).