Hoje publico este ótimo post da Chrislly Catta Preta Fulgoni, servidora pública federal, sobre algo que não acontece com os homens.
Deveria começar escrevendo que sempre fui uma mulher empoderada e determinada. Estaria mentindo. Quando mais jovem, era apenas uma menina insegura quanto ao sucesso que poderia ter, tanto na vida pessoal como na profissional. Todas as experiências que me forjaram ao longo dos anos tornaram-me mais forte, reservada e confortável com quem sou e com quem desejo ser no futuro. As reflexões sobre o que é ser mulher se intensificaram após o nascimento da minha filha, em 2017.
Conheci aquele que mudaria muito de mim em 2006: meu marido. Um entusiasta do serviço público que me ajudaria incessantemente a estudar para que eu alcançasse aquilo que passara a ser um sonho: ser aprovada em um concurso público. Foram anos de preparação divididos com faculdade e trabalho, anos de reprovações, anos de “fiquei por um ponto”. Muitas e muitas lágrimas. Finalmente, no dia 20/06/2016, meu nome estava no Diário Oficial: APROVADA no tão sonhado concurso público.
Não há como colocar em palavras a sensação que tive. Não era apenas uma alegria pela conquista profissional. Era como um bálsamo de alívio. Finalmente eu provava a mim mesma e para todos -- família, amigos, colegas de trabalho -- que eu também era inteligente como meu tão bem sucedido marido. Finalmente tinha conquistado algo.

Deixo claro que essa sensação de estar sendo julgada não decorre de atos explícitos. Na maioria das vezes vem dos que mais amamos. Lembro bem de um episódio peculiar que demonstra bem o julgamento do outro sobre nossa vida. Ainda na faculdade em que eu e meu marido (então namorado) cursávamos Direito, ouvi de um colega de classe em tom jocoso que eu era uma “Maria Concurseira”, porque tinha escolhido namorar o rapaz mais inteligente da sala, servidor público desde os dezoito anos. Esse comentário era tão absurdo e ofensivo que não tive reação. Ouvi calada. Cheia de raiva, mas calada. Estudávamos os três na mesma sala, minhas notas sempre foram excelentes, eu tinha desenvoltura nos trabalhos, mas, mesmo assim, um homem achava que era engraçado reduzir-me e reduzir meu relacionamento a um alpinismo ou oportunismo. As mulheres dividimos os mesmos espaços que os homens, mas é como se fosse um favor permitirem que estejamos lá.

Enquanto esperava minha nomeação, resolvi engravidar. Acreditava ser o momento certo, pois finalmente não estava sob o estresse da preparação para um concurso público e o decorrente desgaste físico e emocional. Engravidei. Nos nove meses de gestação ouvi coisas assim: “Não entendi por que você fez concurso. Você engravidou, vai trabalhar depois que ela nascer?” -- dita por uma jovem de 20 anos. “Esse salário aí que você vai ganhar é um bom salário para uma mulher!” -- dita por um tio amado.

O tempo passou e há dez dias da data prevista para o parto da minha primeira e única filha, recebi um telefonema de Brasília. Uma pessoa do recursos humanos me ligava para avisar que minha nomeação seria publicada e que eu deveria me antecipar e realizar os exames admissionais. A nomeação foi publicada numa quarta-feira e na quinta-feira, dia 01/07/2017, eu saía de casa para tomar posse no tão sonhado concurso público. Após muito sofrimento, a nomeação estava ao meu alcance. Como num conto de fadas eu estaria empossada no meu cargo e, em seis dias, nasceria minha filha. Como em um roteiro clichê, tudo daria certo.

No entanto, a perita recusou-se a declarar-me apta para o cargo sem um exame ginecológico chamado colposcopia, mesmo com uma declaração da minha obstetra informando que se tratava de exame invasivo demais para ser realizado no nono mês de gestação. Saí aos prantos do prédio. Meu sonho estava escapando de minhas mãos. Liguei para meu marido. Na minha mente ele estaria mais lúcido e conseguiria me ajudar a resolver aquela situação. Ele e minha grande amiga Ludimila Poirier (advogada também) saíram da cidade vizinha onde ambos trabalhavam e vieram ao meu encontro, para me consolar e pensar no que faríamos. A decisão foi recorrer ao judiciário. Ingressamos com um pedido de tutela antecipada antecedente a fim de afastar a exigibilidade do exame. O juiz negou. Um juiz homem e jovem. Deferiu apenas a reserva da vaga para quando meu exame pudesse ser feito (segundo a obstetra, seis meses após o parto).

Com a negativa, voltei à esfera administrativa. Falei com o gerente executivo, com o chefe do RH local e com o chefe do RH em Brasília. Todos eram unânimes em afirmar que o que tinha acontecido era absurdo, mas que nada poderia ser feito, pois a perita tinha autonomia para decidir. Por fim, procurei a chefe do departamento de perícias. Ouvi da médica chefe: “Não sei por que você está com tanta pressa, você deu sorte de ser nomeada.”
“Sorte”. Após todo sacrifício da aprovação, após toda aquela situação no fim da gravidez, todo o estado emocional envolvido, tive de ouvir que não tive mérito algum. Foi “sorte”.
Sem nada mais a ser feito e temendo perder a vaga, decidi conversar com minha obstetra sobre o que tinha acontecido. Aos prantos, contei toda a história. Ela deu a solução: “Consigo fazer esse exame em você com um pequeno risco de sangramento, o que é normal, mas sem risco para a bebê. No entanto, será um exame sem efetividade. É um útero todo alterado e ferido pela gestação avançada. Mas, se é um laudo que eles querem, um laudo eles terão.”
Terça-feira, dia 06/06/2017, um dia antes do parto, eu estava com todos os exames exigidos em mãos. Voltei à perita e fui recebida com a frase: “Hoje não posso. Vou ao dentista, volte depois de amanhã.” Indignada, respondi: “Não, doutora. Meu parto é amanhã. Vou sentar aqui e espero quantas horas for preciso.” E esperei. Depois que ela voltou, o exame foi feito. Durou cerca de dez minutos. Ela olhou os exames e disse: “Você fez a colposcopia? Deveria ter esperado.” Fiquei em silêncio, pensando como uma mulher, médica, podia ser tão desumana assim.
Tomei posse na véspera do parto e entrei de licença imediatamente. Não queria encontrar nenhum deles pelos próximos seis meses. Isso faz quase quatro anos e ainda hoje sinto muita tristeza e raiva dessa história. É como se tivessem roubado algo que não pode ser repetido. A experiência da conquista do primeiro concurso após tanto sacrifício. Mesmo vencendo outros, esse, o primeiro, roubaram.

Quando finalmente comecei a trabalhar, após a licença maternidade, outra pergunta era constante, já que eu estava trabalhando na mesma entidade federal em que meu marido havia trabalhado. Era “óbvio” para as pessoas que nos conheciam que eu “só” estava lá, porque “ele” tinha “arranjado” para mim. “O Ricardo arrumou para você essa vaga?” No começo eu tentava explicar que concurso público não funcionava daquela maneira, que ele tinha me ajudado muito a estudar, mas eu tinha feito prova e conseguido a aprovação por meus méritos. Mas depois de algum tempo desisti e passei a responder: “Sim, foi ele mesmo que arrumou. Você acredita que eu sento até na mesma cadeira?” E a vida seguia.

A filha crescia e os objetivos da nossa família se tornavam maiores. Quando meu marido decidiu estudar para a magistratura eu sabia que exigiria um esforço coletivo ainda maior do que os anteriores, vivenciados em outros concursos. E tem sido assim por quase dois anos. Agora, novamente, a condição de mulher, esposa, profissional e mãe virou questão de debates. A eterna opressão para que eu, mulher, esteja em um cargo melhor, com mais títulos, para que eu permaneça interessante para ele e não seja trocada. O olhar da sociedade para a mulher é eternamente julgador e sem empatia. Novas perguntas surgem: “O marido vai ser juiz, você não vai fazer outro concurso? Vai ficar para trás?” Como se eu e ele estivéssemos numa eterna competição e precisássemos provar que merecemos o amor do outro pelo que conquistamos e não pelo que somos.

É cansativo ser mulher. Mas eu não desisto. Há um mundo a preparar para minha filha. Ela está crescendo, conhecendo esse mundo aos poucos. Precisamos lutar. A luta feminista não é por privilégio. É por igualdade. É por equilibrar a balança entre os ônus e os bônus femininos. O mundo que minha filha vai viver será melhor? Não sei. Mas farei tudo para construí-lo. Utópico? Talvez. Mas como meu marido gosta de dizer, é a utopia que nos faz caminhar. Caminhemos, pois! Lutemos! A mulher pode ser o que ela quiser.