quarta-feira, 9 de março de 2011

SILÊNCIO DOS INOCENTES É INTEIRINHO SOBRE CLARICE

Hannibal é apenas uma sombra

Sabe o vídeo que fala que apenas seis dos últimos 50 vencedores do Oscar de Melhor Filme são sobre mulheres? Pois é, embora a ideia seja inatacável — cinema é sim algo feito por, para, e sobre homens — há dois erros de análise ao considerar “sobre homens” filmes com perspectiva feminina, como Titanic e Silêncio dos Inocentes. Discordo totalmente que Silêncio tenha uma perspectiva masculina, ou que o personagem central seja Hannibal Lecter. Não é mesmo! O vídeo do Feminist Frequency diz que as pessoas descrevem o filme como sendo dele, só que isso é recepção (e, se fossemos falar em recepção, as inscrições de mulheres para o FBI triplicaram após o feliz modelo de Clarice).Por todos os critérios possíveis, o filme é inteirinho da Clarice Starling. É a Jodie Foster que tem top billing (o nome dela aparece antes do do Antony Hopkins), é ela quem ilustra o poster, o próprio título refere-se a uma experiência dela, não dele, o filme abre com ela, ela tem muito mais tempo de tela que o Hannibal (dizem que ele tem apenas 15 minutos), e o filme é simplesmente guiado pelo seu ponto de vista.Por exemplo, quem é importante o suficiente pra merecer dois flashbacks? Clarice. Qual o único personagem de quem se discute a infância? A própria. Hannibal tem apenas cinco cenas sem ela no filme (quando ele é cooptado pelo diretor do instituto a cooperar, quando ele vai pra Memphis falar com a senadora, quando ele ataca seus guardas, quando ele foge, na fantástica cena da ambulância, e no final, já nos créditos, quando ele, ligando pra Clarice, diz a clássica fala “I'm having a friend for dinner” (“Vou ter um amigo pra jantar”, o que adquire um novo sentido se você for um canibal), e aí desliga e vai atrás do diretor que o atormentava. Todas suas outras cenas (que não são muitas, só mais quatro) são com Clarice.Até mesmo o serial killer Buffalo Bill tem mais cenas “independentes” (ou seja, que não dependem da perspectiva de Clarice) do que Hannibal — principalmente a polêmica (e desnecessária) cena dele nu diante do espelho, que tanto revoltou a comunidade GLBT na época (com razão). A vítima de Buffalo também tem algumas cenas. Crawford, por sinal, chefe de Clarice, tem apenas uma cena sem Clarice (na excepcional montagem da equipe do FBI/Swat invadindo uma casa vazia, enquanto Clarice dá de cara com o assassino. Tirando essas pouquíssimas cenas, todas as outras no filme são com Clarice. E esse é um dos motivos que fazem de Silêncio uma produção tão original: é raríssimo o ponto de vista de uma mulher guiar um filme, ainda mais do gênero policial (se bem que concordo com quem classifica Silêncio como terror; como muitos elementos desse gênero estão presentes, não vejo problema em dizer que Silêncio é o único filme de terror a ganhar um Oscar de Melhor Filme na história). Pensei bastante se daria pra trocar Clarice por um estagiário homem do FBI, se a história ficaria igual ou minimamente parecida. Pior é que não dá. É importantíssimo que Clarice seja mulher, porque um dos temas do filme é o papel da mulher na sociedade. Um monte de homens no filme dão em cima dela — o PhD (vesgo) em insetos, Dr. Chilton, o próprio Hannibal (“as pessoas vão achar que estamos apaixonados”). Hannibal pergunta pra ela se ela pensa que Crawford tem fantasias sexuais com ela, e ela responde que esse tipo de coisa não lhe interessa.Clarice não tem vida sexual. Não sabemos da sua orientação sexual (ela tem como melhor e única amiga uma outra estagiária do FBI, mas não há nada sexual entre elas, e as “suspeitas”, por assim dizer, ficam só por conta da persona de Jodie fora das telas. Mas é complicado falar de persona da Jodie, pois ela sempre foi super discreta na sua vida pessoal, e só se assumiu lésbica uns 17 anos depois de Silêncio). Seria Clarice uma personagem mais completa se ela tivesse interesses românticos? Não creio. O filme mostra apenas sua caçada a um serial killer, e ela está completamente obcecada pelo caso. Clarice é uma workaholic. E ambiciosa, como bem diagnostica Hannibal.Clarice vive só num mundo de homens, e o filme deixa isso claro diversas vezes. No FBI se veem poucos rostos femininos (nenhum num posto de comando). É emblemática a cena em que ela entra num elevador cheio de recrutas. Todos olham pra ela. Essa cena é repetida quando Clarice e Crawford vão para esqueci qual lugar pra fazer os exames de um novo cadáver que foi descoberto num rio. A casa onde está ocorrendo o velório está cheia de policiais locais, todos homens. Crawford ainda pede pra falar com o xerife a sós, insinuando que não pode dizer certas coisas em frente de uma mulher, e a deixa na sala, com todos o policiais olhando pra ela de cima pra baixo, com um misto de ar de superioridade (porque eles estão julgando sua aparência) e “o que ela está fazendo aqui?”. Essa cena não teria razão de ser se Clarice fosse um estagiário homem do FBI, certo?Um pouco mais pra frente, ela pede pra que todos aqueles policiais se retirem, e o olhar pra ela é um “Quem ela pensa que é? Ela é uma mulher dando ordens em homens?!” E o contraste entre o tamanho de Clarice e dos homens que dividem qualquer sala com ela é sempre lembrado. Clarice é baixinha, pequena, aparentemente frágil. Mas vai ser ela, através de sua inteligência e dedicação, que chegará ao serial killer, e depois o matará em legítima defesa. E no escuro.
Pra mim, o filme todo pertence a Clarice, e Clarice pertence inteira a Jodie Foster (o que só aumenta o ultraje que foi que os produtores a tenham trocado por outra atriz no filme seguinte, o lamentável Hannibal, só pra não pagar o cachê que Jodie pedia).
Silêncio está completando duas décadas de vida este ano. Aliás, 1991 foi um ano interessante pro poder das mulheres no cinema. Além de Silêncio, tivemos Thelma e Louise (do qual falarei na sexta), Tomates Verdes Fritos, O Príncipe das Marés (eu não gosto muito, mas é o último power trip da Barbra Streisand), A Bela e a Fera, As Noites de Rose, Para Eles, com Muito Amor, Exterminador do Futuro 2 (que traz Linda Hamilton hiper musculosa e decidida), e talvez Bugsy (que tem uma personagem feminina forte).

18 comentários:

Jac - Flexões Lésbicas disse...

Concordo que a Clarice é a protagonista de Silencio, mas é bem verdade o que se diz no vídeo do começo do post.

A maioria das pessoas descreve o filme como "o filme do Hannibal". Mas será que se fosse uma mulher a "vilã" canibal as pessoas iam continuar achando esse papel o mais relevante? Creio que não.

E não considero "Bela e a Fera" como um filme "bom para mulheres". Mesmo quando eu era criança eu conseguia perceber toda o machismo contido na historia ("A beleza física não conta. A não ser que você seja a mulher.")

Anônimo disse...

Jac-Flexões Lésbicas,

É claro que se uma mulher fosse a vilã canibal esse papel seria considerado relevante.Não sacou,a vilã(mulher é sempre destrutiva e venenosa).Além de que não se trata somente de colocar mais representantes femininas nos filmes.O petardo não é somente o secundarismo.O estereótipo moldado a nós também deve mudar.Do contrário,de que adianta colocar mais mulheres se seus papéis continuam sendo o da santa virginal e a puta,a traiçoeira,a falsa,a vilã?Seria bom?
Ao contrário,isto nos encaixaria ainda mais em estereotipações limitadas e discriminatórias.Seria muito pior.

aiaiai disse...

Lolinha,

fiquei até com vontade de rever esse filme!

agora uma má notícia para quem é feminista. Os canalhas do texas não têm limites: nova lei exige q mulheres façam ultrasom antes de fazer aborto (q lá só é liberado em casos de estupro/doença)

via @politikaetc

em inglês

http://bit.ly/f23Ljl

Anônimo disse...

A personagem central até pode ser a Clarice, mas.........


quem rouba a cena é o Hannibal. Conviva com isso.

Elaine Cris disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Elaine Cris disse...

Acho estranho considerarem o Hanibal o protagonista. Não li o livro, mas pelo menos no filme parece que ele é um coadjuvante que chama a atenção quando aparece.
O primeiro filme em que vi a Julianne More foi no que ela faz a Clarice e na época peguei antipatia da atriz por causa disso, rs.
Adoro o Silêncio dos Inocentes mas odeio essa cena em que o chefe deixa ela de fora por ser mulher.
Aliás, adoro Jodie Foster e é mesmo uma atriz discreta, nem fazia idéia que ela era lésbica.

Let disse...

Adoro Silêncio dos Inocentes, acho um filme excelente. E a atuação da Jodie é apaixonante. Seria legal ver aqui no blog a crítica de Tomates Verdes Fritos também! É um dos meus filmes favoritos e o livro também é bem interessante. Gostaria de saber sua visão sobre ele, Lola! Principalmente considerando que as atrizes queriam incluir cenas mais explícitas do romance entre as duas e o diretor optou por não incluí-las. Uma pena, pois o relacionamento poderia ter sido melhor explorado.

Jac - Flexões Lésbicas disse...

Anônimo

O que eu quis dizer é que se fosse uma mulher a 'vilã' do filme, se as PESSOAS DE FORMA GERAL iriam considerar um papel tão relevante a ponto de chamarem de protagonista do filme.

Por mais que Hollywood reforce a imagem de mulher vilã (oi, eu sou lésbica, estou acostumada a me ver representada como a vilã psicótica louca pela mocinha hetero), poucas são lembradas e reverenciadas como Hannibal é (digo por pessoas comuns, não-ligadas-a-questão-de-genero e não-cinéfilas).

Marilia disse...

Olha, a pessoa que comentou aí em cima que o Hannibal rouba a cena só se esqueceu de dizer que coadjuvantes precisam ser bons atores também! Nem haveria categoria de melhor ator/atriz coadjuvante se eles não fossem bons! =P

Mas roubar a cena é pesado demais. Jodie como Clarice é ótima! E a cena em que ela relembra a infância, cena que dá nome original ao filme, é espetacular!

Adrina disse...

Eu adoro esse filme. Vi a primeira vez com 12 anos, então imaginem o turbilhão de pensamentos que provocou em mim. Foi decisivo, inclusive, para que eu optasse pela carreira jurídica na minha vida. Bem, eu sempre achei que a personagem principal do filme é a Clarice Starling. A história gira em torno dela, não há dúvida. Beijos grandes!

Ághata disse...

Assisti este filme há tanto tempo atrás que não lembro dele direito, vou assistir de novo.
Só lembro que era pesado.

Anônimo disse...

Eu concordo completamente.
Mas reparei que no 2o já não foi assim.
Vai ver que por isso perdeu em qualidade, é até bonzinho, mas daí não passa.

Osz. disse...

Na verdade o diretor Jonathan Demme fez uma grande sacanagem: sabendo que a maioria do público seria de homens ele posicionou sua câmera de modo a ter a Jodie Foster sempre em primeiro plano e em close-up. Essa é a grande sacanagem: a câmera (e nós) temos o ponto de vista do maníaco que persegue sua vítima, nós passamos a ficar obsecados em relação á Jodie. A cena final em que o maníaco segue Clarice no escuro é o resumo de todo o filme. Nós somos o maníaco e sentimos seu frenesi de perseguição e quando ele é alvejado (achando-se protegido no escuro) somos nós no escuro do cinema que voltamos á realidade e percebemos como é fácil nos perdermos.
A maioria de minhas amigas que assistiram ao filme reclamaram da atuação de Jodie e do fato de ela estar sempre á vista, suas feições sem emoção, e talvez isso seja porque, além o ponto de vista da câmera, a atuação da atriz visa sua objetificação, ela deixa de ser um ser humano para se tornar um objeto colecionável. E por isso nós adoramos o Hanibal: nós somos ele e ele é nosso lado racional e civilizado com um monstro se escondendo em seu interior. Desculpem-me pela eventual falta de nexo mas estou meio apressado...

Claudia disse...

O Silencio dos Inocentes eh sem duvida um dos melhores filmes feitos. Jodie Foster esta otima.
@ Jac: tambem nao acho a Bela e a Fera um bom filme na perspectiva feminista. Deem um olhada neste video: http://www.youtube.com/watch?v=Uuk-h2ZYNJU

Priscila disse...

Lola, vc tem toda razão. Recentemente eu escrevi sobre o Silêncio dos Inocentes, por causa do Lecter mesmo, porque sempre me falam que ele é o melhor vilão de todos e tal. Mas eu me surpreendi como o filme fala do poder das mulheres. Não só porque as mulheres eram vítimas do Buffalo Bill e como ele queria ser uma mulher vestindo a pele delas, mas também porque o papel de maior poder do filme é de umA senadorA. Mas claro que Clarice personifica esse poder. Eu gosto especialmente da maneira como ela responde verbalmente de forma diferente em diversas situações. Com o Lecter, ela tenta várias abordagens (elogio, pedido, até a tal falta de educação que ele se revolta tanto). Com o Dr. Chilton ela diz que quer falar sozinha com o Lecter e ele diz que perdeu tempo levando ela até lá e ela diz "mas eu nao teria o prazer da sua companhia" - manipulação verbal, igualzinho o Lecter. Enfim, eu acho que a Clarice é tão inteligente quanto o Lecter em termos de lidar com pessoas, mas ela usa isso com objetivos claros enquanto o Lecter se diverte com isso a ponto de torturar. Quando eu vi o Hannibal, achei que ele foi feito pra saciar os fãs. Porque ele deixa claro que o Lecter gostava da Clarice, como se fosse apaixonado por ela, coisa que o primeiro filme não faz, parece muito mais um relacionamento de respeito por Clarice ser tão boa quanto ele.

Lilian disse...

Oi Lola, já que o pessoal tá pedindo pra comentar, você comentaria o filme do Scola, " Feios , sujos e malvados"?
Eu senti um super mal estar vendo esse filme, achei ele machista...tem um ensaiozinho do que eu senti aqui(http://chaiverde.blogspot.com/), mas não tenho os mesmos elementos pra destrinchar o filme...e estou curiosa!
Beijos e obrigada!

Tom! disse...

Lola, amei essa sua crítica. Amo esse filme também e concordo com tudo que disse. Beijão, adorei o dia de hoje, Tom :)

F.S.L. disse...

Para mim, o "maior casamento", conexão entre atores! Não se percebe em momento algum o ator. Apenas personagem.
O filme agrada a ambos os lados!
Tatnto com quem fica facinado com controle de Lecter, quanto a força viceral, de Clarice. A atração de gato e rato.
Um ciclo de "caçadas".
Ambos são caças, ambos são caçadores! Nem um, nem outro, se contenta com a inércia!

Não há o que trocar! E o que foi trocado nos filmes, perdeu grande parte do interesse.
Não há Hanibal sem Hopkins, não há Clarice sem Foster.