terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

A INJUSTIÇA DE SORTE

Você talvez conheça essa história: em 1981, na Universidade de Syracuse, no estado de Nova York, uma aluna de 18 anos passava por um parque à noite para voltar ao seu dormitório quando foi violentamente estuprada e espancada. Ela sobreviveu, prestou queixa, e alguns meses depois o estuprador (um jovem negro) foi preso e condenado. 

A vítima era Alice Sebold, que virou escritora bestseller com Uma Vida Interrompida e ficou muito famosa quando seu livro foi adaptado para o cinema (Um Olhar do Paraíso), em 2009. Mas o livro que a lançou foi publicado em 1999: Sorte (Lucky), onde ela narra o terrível estupro que sofreu em 1981 e o inferno que virou sua vida. Eu li esse livro uns treze anos atrás por recomendação de uma leitora. Voltei a lê-lo agora por causa dos novos desdobramentos.

E quais são esses novos desdobramentos? No início de 2020, estavam adaptando Sorte para a TV. Timothy Mucciante, um dos produtores executivos, percebeu discrepâncias entre o livro de memórias de Sebold e o roteiro. Ele teve dúvidas -- não sobre o estupro que Sebold sofreu (sobre isso não resta qualquer dúvida), mas sobre o julgamento. Por isso, abandonou a produção em junho, mas contratou um detetive particular para investigar as evidências contra o condenado por estupro Antony Broadwater, e se convenceu da inocência dele. Broadwater contratou um advogado, que revisou a investigação. 

Por conta da sua condenação, Broadwater passou 16 anos na prisão. Foi solto em 1998 (antes de Sebold publicar Sorte). Em 1981, quando Sebold o viu na rua e achou que era ele o estuprador, ele tinha 20 anos e havia acabado de voltar pra Syracuse para ver seu pai doente. Em Sorte (que tem esse nome irônico porque um policial disse a Sebold que ela teve sorte de não ter sido morta, já que uma menina havia sido assassinada no mesmo local do estupro), Sebold conta: "Fiz um retrato falado a partir de microfilmes com feições raciais. Fiz isso junto com um policial e fiquei frustrada porque nenhuma das feições do meu estuprador parecia estar entre os cinquenta e poucos narizes, olhos e lábios. [...] O retrato falado divulgado naquela noite pouco se parecia com ele" (36). 

Uma semana depois de escrever um poema chamado "Se eles te pegassem" para um workshop de poesia, descrevendo o que ela gostaria de fazer com seu estuprador, Sebold esbarrou com ele -- ou com quem pensou que fosse ele -- numa rua perto da faculdade. "Eu só conseguia ver o cara negro de costas, mas estava prestando muita atenção. Repassei minha lista: altura certa, corpulência certa, alguma coisa em sua postura". E ele, ao ver que estava sendo encarado, disse a ela, "Ei, menina, eu não conheço você de algum lugar?" Ela teve certeza que era ele e que ele se lembrava e estava zombando dela.

Antony Broadwater hoje, na mesma rua em que Alice Sebold o reconheceu 40 anos antes

Ela então fez um outro retrato, chamou a polícia, descreveu as roupas dele. E o rapaz, que já tinha ficha criminal -- ou pelo menos foi isso que um policial contou a ela --, foi detido. Mas, na hora de identificá-lo num alinhamento de suspeitos (line-up), ela apontou para outro cara que, segundo ela, era praticamente irmão gêmeo. Mesmo assim, a polícia conseguiu que o suspeito (Broadwater) tivesse alguns de seus pêlos púbicos arrancados, e eles batiam com aquele que foi encontrado na vítima.

Essa forma de análise de pêlos não é mais confiável. Em 2015, o FBI e o Departamento de Justiça reconheceram que esse método forense, que serviu durante três décadas para condenar muita gente  -- 14 dessas pessoas morreram ou foram executadas na prisão --, não prestava (será que todos os programas da série CSI vão pro lixo junto?).

Outro problema, ainda mais evidente, é que pessoas brancas costumam se confundir ao identificar pessoas não brancas. Há vários estudos que mostram que pessoas de uma raça (qualquer uma) confundem pessoas de outras raças (sabe como muitos de nós costumamos achar que chineses são todos iguais? Eles acham o mesmo da gente). 

Ano passado, quando Broadwater contratou novos advogados para reverter sua condenação, eles alegaram que ela se baseou apenas na identificação de Sebold (na corte, durante o julgamento; Broadwater se lembra bem desse momento em que Sebold apontou pra ele na corte. Ele era o único negro no local) e na análise microscópica dos pêlos, algo que hoje é visto como junk science. Em 1981, a promotora mentiu pra Sebold, dizendo que dois dos suspeitos na identificação eram amigos muito parecidos, que apareciam juntos nos line-ups. Quando eu li isso em Sorte, fiquei chocada: um suspeito pode fazer isso? Não, não pode. Era mentira. Sem falar que Broadwater nunca tinha sido acusado de nada antes. Aquele foi seu único line-up.

Em novembro do ano passado, Anthony Broadwater, 61 anos, foi exonerado da condenação. Isso é importante porque assim ele deixa de ser classificado como um "agressor sexual". Ele sempre insistiu que era inocente. Inclusive, não conseguiu sair antes da prisão em liberdade condicional porque, nas audiências, não admitia sua culpa. 

Broadwater parece ser uma pessoa boa. Tudo que li sobre o caso indica isso. Em 1998, um ano depois de sair da prisão, por exemplo, ele conheceu Elizabeth. No primeiro encontro, deu a ela uma pasta com tudo sobre seu passado, e disse a ela: "Se você vai entrar num relacionamento comigo, isso é pelo que vou lutar pelo resto da minha vida". Ela acreditou na sua inocência e se casaram. Mas nunca tiveram filhos porque ele não queria trazer uma criança para essa luta. Ele tentou provar sua inocência a todo custo. Passou em dois polígrafos. Tentou contratar o advogado que ajudou a absolver O. J. Simpson. Teve que se contentar com os piores empregos, já que, mesmo depois de ter cumprido sua sentença, era um agressor sexual registrado. 

É interessante que, ao contrário de Broadwater, que é inocente, o produtor executivo Mucciante não é. Ele foi condenado duas vezes e cumpriu pena por fraude. E vê sua jornada para tentar ajudar Broadwater como uma tentativa de redenção (outros dizem que na realidade Mucciante deu calote na produção do filme e está tentando ganhar dinheiro com um documentário sobre Broadwater).

Muita gente culpou Sebold por mandar um inocente pra prisão, mas uma vítima não é responsável por investigar ou condenar alguém. Ela precisava, até para se sentir mais segura, que seu estuprador fosse encontrado e condenado (nunca foi). Só que, quase vinte anos depois do estupro, Sebold foi atrás da documentação do caso para escrever seu livro (Broadwater já tinha cumprido sua pena e saído da prisão; em Sorte, ela troca os nomes). Será que ela, nessa investigação, não notou as inconsistências que o detetive particular encontrou? (claro que em 1999 o método de análise de pêlos ainda era usado e amplamente aceito). Tipo aquela mentira da promotora?

Uma semana depois da absolvição de Broadwater, Sebold pediu desculpas a ele, contando que, como uma jovem vítima traumatizada de estupro, ela confiou no sistema legal americano. Ela publicou um texto no Medium (e o compartilhou com Broadwater antes de publicá-lo): "Fico grata que finalmente foi feita a justiça ao Sr. Broadwater.  Meu objetivo em 1982 era justiça, não perpetuar injustiça. E certamente não era alterar irreparavelmente, e para sempre, a vida de um jovem pelo mesmo crime que alterou a minha. [...] Mas o fato é que 40 anos atrás, ele foi outro jovem negro brutalizado pelo nosso sistema legal com tantos erros. Sempre estarei triste pelo que foi feito a ele. [...] Hoje, a sociedade americana está começando a reconhecer os temas sistêmicos no nosso sistema judicial que muitas vezes fazem com que a justiça para alguns venha a custo de outros. Infelizmente, isso não era um debate, nem uma conversa, nem mesmo um sussurro, quando eu denunciei meu estupro em 1981". 

Ela ainda escreveu: "Vou continuar me debatendo com o papel que eu desempenhei sem querer num sistema que mandou um homem inocente para a prisão". Broadwater declarou que esse reconhecimento de inocência, ainda que tão tardio, foi importante pra ele: "O pedido de desculpas vem sinceramente do coração dela. Ela admite o que aconteceu. Foi um grande alívio. Fazer esse pedido requere coragem. Aceito suas desculpas. Ela é uma vítima e eu sou uma vítima". 

Ano passado Sorte, que já vendeu mais de um milhão de cópias, foi retirado de circulação em todos os formatos. Até que a editora e a autora decidam como serão as revisões, Sorte não será atualizado nem terá novas impressões. A adaptação do livro para a TV foi cancelada. E um documentário chamado Unlucky (Sem Sorte, Azarado) já está sendo produzido -- este sobre a vida de Broadwater, que evidentemente pedirá indenização ao Estado. Espero que receba, e que seu caso ajude a revisar e evitar outras condenações injustas.

3 comentários:

Anônimo disse...

a) Ótimo texto Lola sinto pelos 2.

b) Hje Maria da Penha faz 77 anos outra mulher guerreira.

c) Vc viu o caso de uma mulher escravizada pela família de um pastor ? Onde vamos parar ?

William Pinheiro disse...

Segurando as lágrimas, é um absurdo como as polícias se apropriam da dor da vítima pra perpetrar um monte de racismo.

Anônimo disse...

Um olhar do paraíso eu assisti, o filme é perturbador, horrendo, todas aquelas meninas mortas por um serial killer, sonhos interrompidos, achei impossível conter as lágrimas.


Quanto ao jovem negro acusado de estupro injustamente, nem sei oq pensar, acabaram com a vida dele, hoje um sexagenário, passou por traumas e dores que ser humano algum deveria passar.