segunda-feira, 3 de agosto de 2020

GUEST POST: APENAS MAIS UM CASO REAL

Publico hoje um belo relato do poeta e historiador Adriano Viaro. Ele postou no Twitter e eu pedi pra que ele ampliasse e transformasse em guest post. Obrigada, Viaro!

Certa vez conheci um jovem de 16 anos, office-boy na capital gaúcha, que entrava todos os dias em uma loja de departamentos, antes das 9h00, e roubava dois bombons. Saía pela mesma porta que entrava e ia comer, trêmulo, no banco da praça do centro da cidade. Era sua primeira e, por vezes, única injeção de glicose no dia, pois dava o talão de vale-refeição para sua mãe comprar comida para a janta e preparar seu sanduíche do almoço. 
Depois de co
mer os doces, ia para a lida diária nos bancos e órgãos públicos da capital para retornar ao escritório somente no final do dia, onde prestava as contas e apresentava recibos. Na sequência, ia pegar seu ônibus para, antes de chegar a sua casa, ainda ter que frequentar, até as 22h00, o último ano do então “segundo grau” no único colégio estadual de seu bairro periférico. 
Depois de encerrado o turno de estudos, voltava para casa por ruas escuras num percurso não maior do que sete ou oito quadras, enquanto a mãe rezava para que tudo ocorresse bem. Tratava-se, na verdade, de uma realidade nua e crua, porém de
 praxe nas comunidades da periferia dos anos 1990. Este jovem, filho de família pobre -- outrora abaixo da pobreza --, não tinha grandes referenciais de conduta paterna e buscava no seu primeiro emprego formal a possibilidade de apoio ao lar, além de parcos recursos (que sobravam) para a manutenção de algo bem abaixo do que se pode chamar de dignidade. 
Enfim, o “costume” do
 furto de bombons tornou-se rotina para quem efetivamente precisava comer algo. Não se tratava, em hipótese alguma, de furto como forma de troféu (algo que não raro acontecia, protagonizado por jovens em melhor condição, ou até mesmo abastados, que tinham no gesto uma diversão). Não, estamos falando de um jovem com necessidade alimentar. 
Mas como nem tudo são flores teve um dia em que esse jovem foi pego pelo segurança, levado para um quarto escuro, onde, amedrontado e com mãos frias e de acelerada sudorese, ouviu ofensas, batidas de portas e de mesas e pragas rogadas quanto ao seu futuro incerto e condenatório. Logo após o “rompante de lei fardada” por parte do segurança (que certamente vinha de comunidades semelhantes a sua), foi dispensado. Correndo, saiu chorando ouvindo o segurança dizer "esse é mais um vagabundo que vai acabar com a boca cheia de formiga". 
Os anos passaram com dificuldades oscilantes, ora de nível médio, ora de recrudescimento da crueza do passado, mas sempre com o tal registro em memória. Grosso modo, aquele jovem nunca esqueceu tais palavras, mas aprendeu, com as dificuldades e exemplos da vida, que a máxima "bandido bom é bandido morto" lhe soava absolutamente falsa, pois o que lhe faltava (e seguiu faltando por boa parte de sua vida adulta) eram apenas oportunidades. 
Pois elas vieram no manquitolar do século 21, junto de políticas públicas e afirmativas, além da ironia do destino que colocou em suas mãos pequenos recursos herdados de seu inepto pai, que morto não pode usufruí-los, e que fizeram com que ele, pobre -- apesar de pertencente a um grupo dotado de certos privilégios (homem, branco e heterossexual) -- pudesse almejar algo para além do trauma do então distante roubo de bombons. 
Esse jovem nunca mais roubou. Esse jovem nunca mais furtou. Esse jovem nunca mais saiu dos ditames éticos e morais de sua sociedade. Esse jovem fez faculdade, especializações e chegou ao inesperado, impossível e inédito (em sua família) mestrado. Esse jovem nunca mais roubou, até por que... esse jovem era eu. Eu roubava bombons porque tinha fome. 

8 comentários:

Anônimo disse...

Já li imaginando o final. Ótimo texto. Ótima lição. Às vezes, querem nos dizer quem somos, mas só sabem repetir o que a sociedade de privilégios e desigualdades dita. Infelizmente, é preciso olhar mais longe e mais fundo se se quer tirar o preconceito da vista

Anônimo disse...

Realidade de muitos garotos,e eu como mãe solteira de 2 meninos me mato em 2 empregos para meus filhos não precise fazer isso. Mas nunca se sabe

avasconsil disse...

Esse texto me fez lembrar dos concursos públicos, principalmente os pra as carreiras de membro do ministério público ou da magistratura. São concursos muito concorridos e que demoram mais de um ano, pois são seleções com várias fases. A maioria dos que passam são os filhos e filhas das classes médias, principalmente os estratos mais altos. São rapazes e moças bancados por seus pais durante anos pra ficarem em regime de dedicação exclusiva aos estudos, 8-12 horas por dia ou até mais. Viajam o Brasil inteiro pra participar dos concursos, às custas dos pais. Alugam uma cabine de estudos pra fazerem do estudo profissão (se não me engano foi aqui em Fortaleza que surgiu esse tipo de negócio, a locação de cabines de estudos pra concurseiros). Pagam "coaches", alguém que tem o trabalho de estudar as provas do cargo desejado pra olhar a frequência com que cada banca cobra esse ou aquele assunto, pra direcionar o estudo da pessoa, que, seguindo um método, é otimizado e se torna mais eficaz na conquista de pontuações. Tem gente que também faz psicoterapia motivacional e tem nutricionista que monta um cardápio otimizante dos estudos. Tem também os que tomam remédios pra concentração, como ritalina, pra déficit de atenção (muita gente toma mesmo sem ter transtorno de déficit de atenção). Enfim, muitos deles contam com uma equipe multidisciplinar durante todo o percurso de estudos, até serem aprovados. São verdadeiros atletas dos concursos. Claro, contar com todo esse suporte é pra poucos, mas em número suficiente pra conquistarem a maioria das vagas. E tanto profissionalismo rende notas altíssimas nas provas. As notas dos concursos jurídicos são muito altas não porque os candidatos são mais inteligentes do que o de outras áreas. Mas porque há todo esse suporte aos estudos, bancado pelas famílias mais privilegiadas financeiramente. E elas odeiam cotas raciais ou sociais. Dizem que não são meritocráticas (se eu estivesse escrevendo no Whatsapp, seria o momento de colocar aquele imoji dos olhos virados pra cima). Ser aprovado num concurso desses obviamente exige esforço. Porém, na receita de boa parte das aprovações, há um ingrediente que é pra poucos, que é o dinheiro que bancou todo esse suporte, com livros ou fotocópias de livros (na cidade tem muitos lugares que vendem cópias de livros pra concurseiros, livros de edições novas), cabine de estudos, inscrições em concursos no Brasil todo, passagens de avião, hospedagem em hotel ou outro tipo de acomodação, deslocamento, alimentação, coaches, psicólogos motivacionais, nutricionistas, tudo isso às vezes durante alguns anos (conheço casos de cinco anos ou até um pouco mais). Já de toga, imagina a sentença em casos de pequenos furtos como os dos bombons? Infelizmente a maioria deles não consegue enxergar quanto privilégio havia misturada à meritocracia que os levou aos cargos que estão hoje. Como o Brasil não tem uma tradição de serviço voluntário, muitos não têm a menor noção das dificuldades por que passam as pessoas mais pobres. Não é de espantar que muitos leiam um texto como esse e digam pra si mesmos "quanto mimimi. Quanta vitimização".

titia disse...

Digo por experiência própria que é muito fácil encher a boca pra falar "Bandido bom é bandido morto" quando teve papai e mamãe pra pagar todas as contas, botar comida quentinha na mesa, pagar escola, roupa e lazer pro rabudinho mimado. Digo isso porque eu já fui a privilegiada que repetiu esse dito fascista, e se hoje tenho consciência de que as coisas não são assim, é só porque tive o privilégio de conhecer pessoas maravilhosas como a Lola e o autor do texto, que me ensinaram sobre a vida real. Obrigada, Lola, por nos dar esse espaço para aprender e crescer. E obrigada, autor, por esse relato que nos ajuda a desfazer nossos preconceitos.

Anônimo disse...

Digo o mesmo, titia. Já fui assim, já fui "pobre de direita" há até pouco tempo atrás. Quantas vezes acreditei, e vivia repetindo para os outros o papo brabo de meritocracia, "força de vontade", "foco, força e fé", vivia ressentida. Essa merda quase foi o meu fim.

titia disse...

11:25 essa merda ferra muita gente mesmo. Ainda bem que pudemos sair dessa.

Rafael disse...

Os concursos juridicos já começam a exclusão no preço da inscrição

Anônimo disse...

os verdadeiros criminosos, que destroem a civilização em escalas incalculáveis, nunca serão sequer condenados pelos seus crimes, os verdadeiros criminosos brasileiros nem sequer moram no Brasil e não colocariam o pé aqui nem por um milhão de reais. Essas histórias de superação enchem o coração de qualquer um de esperança e gratificação.