sábado, 30 de abril de 2011

A ENCENAÇÃO QUE MANTÉM A ORDEM

Espetáculo matrimonial transmitido para o mundo inteiro

Ontem falei um tiquinho sobre o casamento real, mas tenho mais pra falar. Só que parece que o assunto já morreu (ainda bem!). Bom, pro meu curso de Crítica da Mídia, estamos lendo o ótimo livro da Marilena Chauí, Simulacro e Poder: Uma Análise da Mídia (2006) e lá ela cita Umberto Eco. Em Viagem na Irrealidade Cotidiana (1984), Eco distingue a paleotevê (o evento acontece independentemente de sua transmissão) da neotevê (o evento é preparado para ser transmitido). Ele compara as transmissões do casamento de Grace Kelly com o príncipe Rainier de Mônaco, em 1956, com o de Charles e Diana, em julho de 1981. Ambos tinham rituais parecidos, mas o da televisão antiga não foi pensado para ser transmitido. As câmeras tiveram de ir atrás, tentando se posicionar para encontrar os melhores ângulos. No segundo, de acordo com Eco, “estava absolutamente claro que tudo aquilo que acontecia fora ensaiado para a televisão”. Desde as cores das roupas dos noivos e convidados (tom pastel para criar um ar de primavera televisiva) e o vestido de noiva feito para ser visto de cima (onde ficariam as câmeras), até a cor do cocô dos cavalos (que tomaram pílulas especiais durante uma semana para que “seu esterco ficasse com uma cor telegênica”). Londres virou um estúdio. Para Chauí, “o espetáculo não se referia ao acontecimento e sim à encenação do acontecimento, ao seu simulacro” (17).
Seria um insulto à inteligência de qualquer um perguntar com qual casamento o de William e Kate, ontem, mais se pareceu, se com o de 56 ou o de 81.Tô com a daminha no meio da foto e não abro.

Isso me fez lembrar o que diz Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo (1997). Para ele, o espetáculo é uma ferramenta de pacificação e despolitização, uma guerra permanente do ópio. Apesar do espetáculo se apresentar como instrumento de unificação, o que ele realmente faz é separar. Isso fica claro no casamento real. Por um lado, um evento desses parece que une a Inglaterra e, até certo ponto, o mundo (afinal, foi visto por 2 bilhões de pessoas de todos os cantos). Por outro, no entanto, ele deixa claras as diferenças de classe. Temos o povão e a monarquia, os à margem versus os escohidos por deus. Num artigo de Michael Bristol que li já faz algum tempo, ele descreve eventos de pompa oficial e procissões reais, em que a hierarquia é exposta de forma muito pedagógica, didática até. Uma procissão mostra às pessoas as crenças da classe dominante. O casamento real faz exatamente a mesma coisa. É um selo de “É assim que vocês devem se comportar”. Quer dizer, o que é tradição senão um atestado de que a ordem (“natural”) das coisas deve ser mantida?O bolo real teve oito andares. Nenhum deles de chocolate.

Voltando a Chauí, no livro ela menciona o grande Truman Show, o Show da Vida (1998; pra mim um dos nove melhores filmes da década de 90), e eu fiquei matutando se cabe alguma comparação entre Truman e William. Desde seu nascimento, William aparece na mídia. A diferença é que ele sabe que tem câmeras apontadas pra ele, e Truman não. Todas as pessoas com quem Truman se relaciona são atores. Toda a cidade é um cenário. Sua vida é um show (onde pouco acontece) 24 horas por dia. Mas mais interessante do que pensa ou como age Truman/William é o comportamento de seu público. Truman reconforta os espectadores, que dormem com a TV ligada enquanto ele está dormindo (William lembra seus súditos que a monarquia vive e que contos de fadas podem se concretizar, desde que a plebeia venha de família milionária que já frequentava o castelo real antes do casamento).Sou a única que acha essa imagem assustadora?

O público de Truman sabe que tudo é uma farsa, mas se comporta como se aquelas vidas fossem reais.
Chauí diz que o público encara a decisão real de Truman de deixar seu show como se fosse ficção: “Truman, ou o protagonista, distingue realidade e ficção, verdade e simulacro, mas o público tornou-se irremediavelmente incapaz dessas distinções” (19). Eu acho que a monarquia sabe bastante bem o que é real e o que é ficção. E sabe melhor ainda que o público adora fingir que não sabe.
O casamento como espetáculo mais uma vez alcançou seus objetivos, que é promover o consumo e manter o status quo. Concordo com a Laurinha: amor mais sincero é o de Charles e Camilla.

14 comentários:

Pandora disse...

Desentalei!!! Você disse tudo que tava entalado na minha garganta, só que muito melhor do que eu diria e com referencial teorico!

Sinto-me contemplada por sua fala!

Anônimo disse...

É verdade, tudo hoje é pras câmeras da TV. Mas isso não se limita aos casórios da realeza; está também, por exemplo, em debates presidenciais: gravatas são escolhidas, roupas confeccionadas, cores selecionadas, ângulos que a câmera deve ou não mostrar, gestos, tom de voz, tudo é feito para causar um efeito em quem assiste e mandar uma mensagem. Só que num evento da magnitude das bodas, a dimensão fica muito maior e visível. No fundo, acho que não é muito diferente (a não ser pra quem realmente leva a sério os debates, eu já não acredito em conversa de político faz tempo...).

Quanto à realeza querer mandar a mensagem de manutenção do status quo, mesmo que seja o caso, isso nunca impediu que países como a Suécia, Dinamarca, Holanda, Espanha, etc. sejam democracias sólidas, modernas e de causar inveja a muita democracia tupiniquim, mesmo com seus reis e rainhas pra fazer pose. Acho que por lá a distinção súdito/cidadão não se aplica...
abraço
Mônica

Ana Claudia disse...

Ah,,,, Eu me sinto muito hipócrita em comentar hoje porque eu assisti o casamento. Bom, acho que meu lado mídia-manipulável se manifesta...hihihihihii! Só passei aqui rapidinho aqui para dizer que teve bolo de chocolate sim, acredita?! Como eu assisti a transmissão e todos ficavam todos os detalhes de tudo (achei até que fossem comentar a respeito do papel higiênico que os noivos usariam), a apresentadora disse que um dos bolos seria de chocolate, seguindo uma receita tradicional do palácio, a pedido do príncipe...hummmm....

Eu? Minhas circunstâncias disse...

Todos nós somos igual o Truman, encenando papeis dos quais nem mesmo sabemos... A diferença é a platéia. William sabe da platéia para quem ele faz o papel.
Nós não.

P. P. P. disse...

Permita-me indicar o exelente documentário, a seguir.

Tem muito a haver om o postt,

http://vimeo.com/21049802

Abraços.

Potyra disse...

eu assisti o casamento, mas não sei como alguém pode ter sentido inveja da kate, ela nunca mais vai poder trabalhar, vai ter que comparecer em eventos chatésimos, fazer tudo de acordo com a realeza, ter a vida vigiada, não sei se alguns privilégios da monarquia compensam esse sentimento de inutilidade, acho que era por isso que a diana era tão deprê, tem coisa mais triste que ser uma figura decorativa?

Helô disse...

Alguém prestou atenção em quando o pai "entregou" a noiva ao religioso que celebrou a cerimônia e então ao noivo? O pai põe a mão dela em cima da do religioso e depois da do noivo. Fiquei roxa!!!

Letícia disse...

essa história de casamento real me deprime. é claro que a possibilidade de transmissões "worldwide" piorou muito as coisas, mas todo tipo de encenação já é, pra mim, ridículo e desnecessário. odeio cerimônias de casamento, noivado, festinhas de 15 anos, festas de formatura, cerimônias de posse. é... pra mim, tudo que é "tradição" pressupõe falta de crítica e de discernimento. um dia vi uma frase +/- assim: "a tradição é a opinião dos imbecis".

Koppe disse...

Isso que cronicasurbanas mencionou, todo esse aparato, de gestos, cores de gravatas, ângulos... eu conheço pessoas que trabalham com marketing de rede, e eles estudam tudo isso, chama-se "programação neurolingüística", que se resume a estudar e conhecer formas de manipular as pessoas. Se metade do que dizem sobre a eficiência disso for verdade, é assustador pensar no quanto as pessoas são naturalmente manipuláveis.

Luma Rosa disse...

Para o povo, pão e circo! Sempre foi assim e sempre será! O que acho absurdo é gente que não tem onde cair morta, gastar horrores para dar festão de casamento em nome das aparências.
Acho justo que o casamento de Willian e Kate seja milimetricamente programado para ser televisionado - para alegria da plebe! Agora as moçoilas casadoiras copiarão o vestido da noiva incansavelmente assim como copiaram o vestido de Grace Kelly. Pena mesmo é que neste balcao onde recém casados deram o beijo, está vetada a presença de turistas, mas não importa! Ainda temos o balcao de Romeu e Julieta, que continuará a ser o mais visitado pelos amantes!

Somnia Carvalho disse...

Post otimo de se ler! toda vez que olho para o carequinha do Willian eu penso nele crescendo com as cameras nele! sobretudo depois da morte da mae... e acho que a comparacao com truman cabe no sentido de que sabendo ou nao a vida dele e um show e tem gente que paga caro para ficar assistindo...

Larissa disse...

Otimo post! Grata pelas referencias e comentario, uma verdadeira aula em forma de blog post, vou compartilhar.

Rita Gomes. disse...

TEVE UM BOLO DE CHOCOLATE SIM!! BEM APETITOSO E COM BOMBONS! :) PRA MIM JÁ SALVOU TUDO.. hehehe

Mariana disse...

Lola, será que teria como eu ter acesso à Bibliografia deste curso Crítica da Mídia? Estudo História da Imprensa em meu Mestrado na Universidade Federal de Goiás e gostaria muiiito de, ao menos, ter acesso a bibliografia! =)