quarta-feira, 31 de julho de 2013

GUEST POST: O VERDADEIRO SIGNIFICADO DA PALAVRA COMUNHÃO

Um relato cheio de decisões da E. As fotos usadas para ilustrar o post são da Marcha das Vadias do Rio, mas nenhuma das pessoas nas fotos é a E. 

Sou carioca, mulher, feminista, e estou grávida. Acordei triste com tudo o que tem acontecido e pensei em compartilhar com você e com seus leitorxs a minha experiência sobre o meu sentimento de não desejar esta gravidez durante esses dias de visita do Papa ao Rio e a polêmica Marcha das Vadias. 
Sempre defendi a descriminalização do aborto e o acesso ao aborto legal e seguro a todas as mulheres, independente da circunstância em que engravidarem. 
Eu quero ser mãe um dia mas, por motivos diversos, admito que este não é um momento apropriado e que seria uma irresponsabilidade imensa levar adiante essa gravidez. Por isso, essa decisão já estava tomada antes mesmo de eu engravidar e, quanto a ela, não tenho nenhum conflito. Mas, apesar de minhas convicções, reconheço que não é uma decisão fácil. Não tem nada a ver com ética, moralismo, muito menos culpa cristã. Abortar, por si só, é doloroso, independentemente se você engravidou de um estuprador ou do homem que você ama (o meu caso).
Estou grávida de quatro semanas e alguns dias e, mesmo com tão pouco tempo, já vejo o meu corpo e a minha fisiologia mudando rapidamente. E isso me deixa ainda mais ansiosa em relação ao aborto que vou fazer, já que quero resolver isso o mais rápido possível. Mas acontece que o Papa resolveu visitar o Rio de Janeiro e convocar milhões de peregrinos para confraternizar com ele, transformando minha cidade num verdadeiro inferno (com trocadilho, por favor). 
Você não imagina o caos que estava isso aqui. Trânsito interditado em muitos locais, transporte público hiper saturado, muito lixo pelas ruas, barulho de helicópteros sobrevoando a minha casa 24 horas por dia... A lista não para. Mas, para mim, o pior desse caos todo é que o serviço dos Correios foi obrigado a suspender a entrega de Sedex durante os dias de visita do Papa, por conta dos bloqueios no trânsito. Por causa disso, ainda não pude receber o Sedex que virá com os comprimidos de Cytotec que comprei, com muita dificuldade e medo, no mercado negro, para que eu possa abortar "em paz".
Não é culpa dos fiéis, sabemos disso, e sim da prefeitura e do governo estadual, que se comprometeram a fornecer uma estrutura que não foram capazes de cumprir, apesar dos mais de 120 milhões de reais gastos. Mas é impossível, para mim, olhar para cada um desses milhões de peregrinos na minha cidade e não lembrar que há séculos a Igreja endossa o sistema patriarcal vigente e incentiva o controle às nossas liberdades individuais. 
Não sei se você viu, mas entre os itens do "kit-peregrino" distribuído para os participantes, está um feto de plástico e uma mini-cartilha anti-aborto. Então, a cada peregrino que eu esbarro na rua, a cada transtorno que eu enfrento por conta da Jornada Mundial da Juventude, a cada notícia que eu vejo da cobertura do evento (e nos jornais não se fala em outra coisa), eu sinto ainda mais forte a dor da opressão da Igreja sobre o meu corpo. 
Não bastasse isso, como o aborto ainda é proibido e criminalizado no Brasil, tive que recorrer à internet para tentar me informar, pois não há alternativa. E o que vi foi um sem-número de manifestações machistas e agressivas contra as mulheres que decidem abortar. 
Tudo isso tem me dado muita raiva e tristeza. Minha sorte é que eu sou feminista desde criancinha e não me abalo com o preconceito e o conservadorismo dos outros. Minha sorte é que eu tenho um namorado feminista, que é um verdadeiro companheiro, e tem me dado muito apoio e carinho. Minha sorte é que a maioria dos meus amigos e amigas é feminista (apesar de alguns nem saberem), e posso encontrar neles todo o apoio que não encontro fora desse meio. 
Mas sei que a grande maioria das mulheres que precisa abortar não tem a mesma sorte e é para elas que eu quero dizer: não acreditem que vocês são criminosas, não acreditem que vocês são injustas, não se sintam culpadas, não aceitem que nenhuma pessoa e nenhuma religião diga o que você deve fazer com o seu corpo. Se não puderem se sentir acolhidas por seus companheiros, parentes ou amigxs, busquem o apoio dos grupos feministas que, tenho certeza, não hesitarão em oferecer o conforto de que precisam. 
Ah, sim. Já ia me esquecendo de falar sobre a Marcha das Vadias aqui no Rio, no sábado. Eu já aguardava ansiosamente pelo evento há semanas. Quando descobri que estava grávida, há poucos dias, tive ainda mais vontade de participar. E foi a melhor coisa que fiz. Não concordo com a performance do casal que quebrou imagens sacras, mas quero deixar claro que este não foi o tom da Marcha. Foi um evento alegre, bonito, irreverente e politizado. 
Ali eu pude extravasar toda a minha raiva, tristeza e indignação junto com as mulheres, homens e transgêneros que lutam pelos mesmos direitos. Ali eu pude compartilhar o meu drama com milhares de pessoas que lutavam por mim, mesmo sem me conhecer, e pude sentir o verdadeiro significado da palavra "comunhão". Ali eu pude dançar, cantar e festejar livremente a alegria de ser mulher e ter certeza de que não estou sozinha nas minhas convicções feministas. 
Bom, eu ainda não sei quando meu Sedex vai chegar e nem quando vou poder fazer o aborto. Mas uma coisa eu te garanto: não fosse a Marcha das Vadias, eu hoje estaria muito mais triste e desacreditada na humanidade. Participar da Marcha me trouxe de volta boa parte do ânimo que a JMJ minou em mim nos últimos dias. 

UPDATE DA AUTORA E.: O Sedex finalmente chegou, já fiz o procedimento e correu tudo bem. Fazer um aborto com Cytotec não é nenhum bicho-de-sete-cabeças. Mas dói. No útero e na alma. Seria muito mais tranquilo e menos arriscado se eu pudesse conversar abertamente e contar com uma orientação médica adequada, porque as dúvidas que surgem (até quanto a dor é normal? E se eu tiver uma complicação? Será que vou posso ficar estéril? E se eu precisar ir para um hospital? Será que eu vou ser presa? etc) são tão dolorosas quanto as contrações do aborto. Não estou feliz por ter passado por isso. Aborto e felicidade são duas coisas que não combinam. Mas estou satisfeita e muito aliviada por ter resolvido algo que pra mim era um problema, e não uma dádiva divina.  

terça-feira, 30 de julho de 2013

GUEST POST: UMA CAPITU QUE NÃO TRAIU BENTINHO

C., uma médica, me enviou este relato.

Tenho 34 anos, uma carreira profissional bem sucedida, sou professora universitária, mãe de dois filhos que eu amo. E mulher de um marido que eu também amo, apesar de todos os pesares. E é aqui que eu traço meu paralelo com a personagem Capitu, de Machado de Assis, que era feminina e feminista (pelo menos, tão feminista quanto a percepção de Machado de Assis permitia àquela época). Mas não é só isso: espero que meu relato mostre, de dentro, o que é um casamento disfuncional mantido por uma mulher que é esclarecida, mas que também se enreda no labirinto do ciúme doentio do parceiro, andando de mãos dadas com a agressividade e a violência.
Assim como Capitu, eu não me casei com "Bentinho" por imposição ou qualquer coisa parecida. Eu o amava, e fiz com ele todos os planos que se faz ao viver um amor romântico. Eu me mudei para outra cidade, justamente para fazer minhas especializações, e meu marido as dele. Já tínhamos um filho, e foi decidido de comum acordo que meu filho ficaria com minha família, enquanto nós nos estabilizássemos melhor. Até então, meu marido e eu éramos jovens, com pouco tempo de casados e apaixonados. Mas eu já conseguia ver o que me assombraria pelo resto de minha vida ao lado dele.
Conforme as responsabilidades profissionais foram pesando, meu marido foi ficando mais intolerante e agressivo comigo. Confesso que eu também não estava no meu melhor, já que a distância do meu filho não era fácil. E talvez por isso eu via os episódios de intolerância e agressividade desmedidas como "estresse". "Ah, mas o trabalho dele é estressante", e nessa toada eu fui assumindo, lenta e paulatinamente, a responsabilidade de zelar pela estabilidade emocional do meu marido.
Ao longo dos anos, suas explosões foram ficando mais agressivas, mas SEMPRE intercaladas por períodos onde ele parecia "voltar a si". E nesses períodos eu era feliz; e era nessa felicidade que eu buscava o sentimento que me levava a contornar seu temperamento. Na época, eu chamava isso de "temperamento", como muitas outras chamam, como o senso comum clama. "Ah, mas ele é esquentado", "tem um temperamento difícil".
Mas foi chegando o dia em que ele começou a me intimidar, cobrar que eu atendesse o telefone imediatamente, mesmo sabendo que eu estava trabalhando. Durante os episódios explosivos de agressão verbal e, algumas vezes, até mesmo física, ele chegava a jogar meus telefones na parede, pisá-los no chão, quebrá-los com um martelo. Numa das vezes eu até mesmo cheguei a fazer um BO por conta de uma agressão, e tentei pela primeira vez sair de casa pra valer. Não durou muito: Ele prometeu mudar, fazer terapia, e eu cedi. 
Neste ponto, Lola, eu gostaria de fazer uma ressalva importante: eu tinha a opção de deixá-lo. Eu tinha o apoio da minha família para deixá-lo. Eu tinha -- e tenho -- como me sustentar. Mas eu não queria sair. Não porque ele me coagia, mas porque eu não queria perder aquele outro lado dele que eu amava com loucura. Hoje, olhando pra trás, é extremamente claro pra mim o quanto isso tudo era doença.
Não sei dizer hoje se isso era doença ou amor, ou mesmo a ideia incutida na cabeça das mulheres de que "o casamento é pra sempre" ou de que você "precisa de um relacionamento vitorioso para ser uma pessoa feliz na vida". O fato é que eu voltava. E a cada concessão, cada vez eu entendia que ele "não pedia muito" quando demandava que eu atendesse o celular imediatamente, ou que "não pedia muito" que eu não tivesse amigos fora do âmbito do trabalho e da vida conjugal.
Enfim, acabamos as especializações e voltamos, eu esperando que tudo melhorasse. E melhorou: os novos desafios foram ocupando as nossas vidas, e o casamento pareceu entrar em fase de bonança. Eu me sentia recompensada. Era como se tudo o que vivi antes tivesse surtido efeito com ele. Claro que havia brigas -- e as explosões ainda estavam lá, apesar de que bem menores do que antes -- mas tudo era contornável. 
Só que, recentemente, o comportamento dele começou a recrudescer.
Veja bem, eu tenho meu próprio computador. Meu telefone, meus equipamentos eletrônicos -- eles também são ferramentas de trabalho. Por isso mesmo, são protegidos por senha, como todo notebook de uma pessoa que ande com ele por aí no porta-malas do seu carro deve fazer. É essa a recomendação dos sites especializados, não? Eu passo bastante tempo na internet, porque mesmo as amizades "de vida real" eram meio mal vistas por ele. E meus perfis (oficiais e não-oficiais) em redes sociais são protegidos por senha, como os de todo mundo. 
Isso desencadeou um novo inferno. 
Eu comecei a ser acusada de adultério. Coisa que nunca cometi, até porque essa relação toda tem um peso imenso na minha vida. Como eu iria trair um homem que eu amo ao ponto de fazer as coisas que fiz por ele? Não sei nem te dizer o quanto disso é amor, o quanto disso é doença; mas posso te garantir que, no meio de tudo isso, eu nunca tive condições psicológicas de ter uma relação extraconjugal. Até porque, caso eu me envolvesse e me apaixonasse por outra pessoa, eu poderia ter saído dessa relação, não? 
Mas as acusações, antes veladas, começaram a ganhar voz e forma. Tive de dar para ele todas as senhas dos meus perfis em redes sociais e email, bem como a senha do meu celular. A cada prova de minha fidelidade, ele melhorava, mas apenas para vir depois com uma acusação nova, e ainda mais descabida.
Há pouco tempo, estávamos nós dois no carro, viajando para uma cidade a trabalho, e entre insinuações e indiretas eu finalmente o confrontei sobre suas acusações de adultério. Ele ficou transtornado: me acusou de ter tido um caso há sete anos (daí os telefones quebrados na parede) e outro mais recente. Os objetos do ciúme dele envolvem pessoas do meu círculo de trabalho. E não há nada que tire da cabeça dele que suas acusações não são reais. 
E no fim de uma viagem tensa, onde eu passei a volta toda rezando dentro de um carro em alta velocidade, eu cheguei na cidade, fui trabalhar, peguei meus filhos e fui para a casa dos meus pais. Minha saída de casa é, para ele, uma confissão de culpa. As provas documentais de que eu não o traí (conversas de facebook, vídeos, pessoas que me conheciam daquela época e que dizem que isso é um absurdo descabido etc) são "montagens" feitas por mim para desacreditá-lo. Assim como Bentinho, ele criou uma realidade onde eu o traí, e está moldando sua vida em cima disso. E a minha, por tabela.
Hoje estou fora de minha casa, desalojada junto com meus filhos, e não saí para assumir culpa alguma -- saí porque tinha medo, porque se antes ele levantou a mão para mim por conta de coisa muito menos importante, o que ele poderia fazer no caso de uma acusação de adultério? 
Sei que ele precisa de tratamento, e por isso tentei conversar com as pessoas da família dele para intervir e ajudá-lo a se convencer de que precisa se tratar. E aqui eu traço outro paralelo com a situação de uma Capitu que não traiu Bentinho: ela foi afastada do convívio de seu marido, da "sociedade"; não porque seu marido era um ciumento doentio, mas porque na sociedade patriarcal não era possível que um homem levantasse tais desconfianças sobre sua companheira de anos sem que houvesse algum embasamento real para isso.
Foi o que eu ouvi da família de meu marido. Eles não chegaram a afirmar que ele tem razão, mas todo o tipo de indireta eu escutei. "Pra quê ter senha no seu computador?" "Pra quê trabalhar nesse lugar onde ele tem tanto ciúme?" "Por que você não atende o celular assim que ele liga?" Eu, assim como toda mulher nessa situação, tenho que aguentar não só a violência psicológica de ser acusada de um adultério que não cometi, mas de uma família que justifica o comportamento doentio do filho como "ciúmes" de homem. 
Lola, você sabe melhor do que eu quantos casos existem por aí onde mulheres são humilhadas, agredidas e mortas por conta de ciúme patológico. 
E é gritante a diferença de tratamento disso em relação ao homem e à mulher. Se a mulher é ciumenta e persegue o marido (o que não deixa de ser grave, mas é patente a diferença numérica de mulheres que procuram tratamento, comparada com o número de homens, que é bem menor), ela logo recebe a chancela de neurótica, louca e perigosa. Ela é instada por toda a sociedade a procurar LOGO um tratamento, porque MESMO que o homem a tenha traído não se justifica a perseguição "descabida" a um homem que, em caso de traição, "só está exercendo seu direito de macho". 
Podemos falar o mesmo sobre os homens ciumentos? Não. No caso de Eloá Pimentel, assassinada pelo ex-namorado em delírio de ciúmes, TODOS passaram a mão na cabeça do rapaz mesmo ANTES de que tudo aquilo tivesse aquele desfecho trágico. "Ele é só um rapaz em crise amorosa", não era o que diziam? A "crise amorosa" em questão era a perseguição a uma menina que ousou terminar um relacionamento onde ele se via DONO dela. Talvez ela até terminou por conta do ciúme doentio dele. Ninguém sugeriu que ele precisasse de um psiquiatra, de que ele precisasse de tratamento porque aquilo não era normal. Não. A sociedade considera NORMAL que um homem se sinta no direito de ser DONO de uma mulher, pelo motivo que for. Só que isso custa vidas.
E por que eu escrevo isso? Uma parte é para que eu mesma elabore meu luto por ver meu casamento (mesmo que disfuncional) se esvanecer por conta de uma ilusão que eu não posso desfazer. Mas outra parte é para que você veja o relato de DENTRO de uma relação doentia, onde uma mulher "da sociedade", independente e esclarecida, também se vê dentro de algo assim por anos, sem se impor na direção de uma solução por todo esse tempo. Não acontece só na periferia, nem na favela, nem na zona rural. O ciúme doentio e a violência doméstica andam lado a lado, dentro de todos os segmentos da sociedade, e no caso das mulheres mais abastadas a própria posição social em si pode ser uma mordaça para mantê-la sob controle.
Não sei te dizer se, um dia, poderei me recuperar de tudo o que vivi. Não sei te dizer se eu odeio meu marido pelo que ele me fez, porque sei que ele está doente, e que dentro dele ainda está o homem por quem eu me apaixonei. Não sei quanto disso é amor, o quanto é ilusão, o quanto é a vontade cega de manter os padrões da sociedade. Eu tenho dias bons e ruins, hoje parece ser um dos bons; e estou animada a tentar superar, tanto por mim quanto pelas minhas crianças.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

A DIMENSÃO DO ESTRAGO

Ontem, quando escrevi sobre a depredação de estátuas religiosas na Marcha das Vadias do Rio, peguei leve, pisei em ovos. Você pode ler o texto, não mudei uma vírgula. 
Eu me coloquei contra o ato, pois o considerei ignorante e desnecessário. Continuo com a mesma opinião. Mas, à medida que o dia foi passando, obtive mais informações. Bom, primeiro teve uns ataquezinhos básicos contra a minha pessoa (pois é, você pode se perguntar: o que eu tenho a ver com isso? É que quando você tem um blog mais lido, tudo que você diz ou não diz pode e será usado contra você). Então desde cedo teve um reaça que escreveu que eu aplaudi o ato. E uma feminista que só fala de BBB me chamando de feminista covarde porque eu não aplaudi o ato. Normal, tô acostumada: haters gonna hate. Sempre
Mas foram chegando outras imagens e detalhes do que foi o ato. Primeiro que foi uma performance de duas pessoas de um grupo que costuma fazer intervenções como essa, o Coletivo Coiote. Segundo que não foi só fazer picadinho de santa que o tal coletivo fez. Teve crucifixo sendo enfiado na vagina e no ânus. Essa imagem que eu ponho ao lado é de uma página que apoia o ato. Mas pode apostar que esta imagem e outras mais gráficas estão circulando entre reaças que neste exato momento denunciam a Marcha das Vadias ao Ministério Público. 
Porque de repente depredar símbolos religiosos pode configurar crime segundo o Código Penal, neste artigo aqui: "Art. 208 - vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa." Eu ser contra ou a favor dessa lei não muda nada (sou contra). 
Não quero que o casal do coletivo seja punido, e muito menos a organização da Marcha, que nem viu a performance e não teve nada a ver com ela. Mas num momento em que todxs nós deveríamos estar comemorando o sucesso que foi a Marcha, aqui estamos nós na defensiva, brigando entre nós, com as organizadoras precisando consultar advogados e sendo ameaçadas de estupro e morte. 
Minha pergunta é: precisava mesmo disso tudo? O que a gente ganha com o ódio de quem viu seus símbolos desrespeitados? O que essa performance acrescentou ao feminismo? À Marcha das Vadias? 
É esquisito porque só de fazer essas perguntas no Twitter já fui bombardeada e chamada de traidora por outras feministas. Eu, que sempre sou a primeira a dizer que abro mão de ser uma feminista educada e limpinha. Eu, que sempre digo que o feminismo vai ofender e escandalizar muita gente sim, e que não devemos deixar de falar e dizer as coisas por conta disso. Eu, que sou ateia, que não tenho o menor apreço pela igreja católica (ou por qualquer religião), que vivo escrevendo sobre como o cristianismo é machista, que sou frequentemente tachada de anti-religiosa. Desta vez eu fui acusada de defender o Papa e o catolicismo. 
Pô, o Papa e o catolicismo têm grana e séculos de tradição e milhões de fiéis e a mídia para defendê-los. Certamente não precisam do apoio de uma feminista ateia. Além do mais, eles não têm o meu apoio. Por mais estúpido que seja o que o Coletivo Coiote tenha feito, nada chega perto de chamar mulheres de bruxas e queimá-las em fogueiras. Ou de condenar à morte, negando-lhes a possibilidade de um aborto seguro, milhares de mulheres. Ou de, no caso de uma menina de 9 anos que foi estuprada e engravidada pelo padrasto, proibir que essa menina, mesmo correndo risco de vida, fizesse o aborto, e excomungar a mãe da menina, as feministas que apoiaram a menina, os médicos que finalmente, correndo contra o tempo, realizaram o aborto -- enfim, a igreja excomungou todo mundo menos o estuprador. Acho meio difícil defender essa igreja. 
Por outro lado, admiro o Católicas pelo Direito de Decidir, por exemplo. Já dividi mesas-redondas com suas representantes e aprendi muito. Minha chance de mudar a igreja é zero. As chances de um grupo dentro da igreja poder mudá-la? Talvez não sejam chances muito maiores que zero também, mas são maiores que as minhas. Fico pensando no que o CPDD -- que eu considero aliadas no feminismo -- sentiu ao ver o que fez o Coletivo Coiote.
Fico pensando também se haveria alguma feminista defendendo e justificando o ato se ele não tivesse vindo de um coletivo desconhecido, mas do Femen, por exemplo. Não, não estou comparando a Marcha das Vadias com o Femen. Estou comparando a performance do Coletivo Coiote com as tantas performances do Femen, que são feitas unicamente para atrair a atenção da mídia. E aí: e se fosse o Femen? Estaríamos dizendo que pior que o ato foi um participante da Jornada Mundial da Juventude que cuspiu numa das manifestantes da Marcha das Vadias? Que tudo bem desrespeitar símbolos religiosos porque a igreja desrespeita mulheres? Que os cristãos "chutam macumba" direto e ninguém faz nada, então também se pode chutar estátuas de Maria? 
Desconfio que não, que se fosse o Femen, nossa reação seria de repúdio. Elas nem são feministas, diríamos! Elas foram pra Marcha pra sabotá-la, só pode. 
Pois é. Não estou dizendo que o pobre casal do Coletivo Coiote, que certamente deve estar sofrendo centenas de ataques e ameaças (e, lembrando, ameaçar alguém é crime), foi pra Marcha sabotá-la. Provavelmente suas intenções foram lindas e nobres. Mas, diante da dimensão do estrago, eu digo que nem que alguém tivesse planejando vilipendiar a Marcha, teria se saído melhor. 
Sério. Caso real: um mascu esteve em Copacabana no sábado pra atrapalhar a Marcha. Foi premeditado -- o sujeito avisou o fórum durante semanas que iria; eu avisei a Marcha pra que ela pensasse sobre como agir (pra não correr o risco de repetir o exagero da excelente Marcha das Vadias de Brasília). O mascu levou um cartaz ridículo, que foi tirado de suas mãos em dois tempos, e voltou pra casa com o rabinho entre as pernas. Se ficou dez minutos na Marcha, foi muito. Ou seja, não fez nem cócegas.
Mas vamos supor que mascus tenham algum neurônio e decidam que, na próxima Marcha (e nem precisa ser no Rio, e nem precisa ser Marcha das Vadias; pode ser qualquer protesto feminista), pra que todo mundo fale mal das feministas, eles, em vez de levarem um cartaz mal-escrito, levem símbolos religiosos. E vamos supor que eles, fingindo fazer uma performance feminista, destruam os tais símbolos, se masturbem com eles, enfiem no c* (mascus fazem qualquer sacrifício pra desmoralizar feministas). E vamos supor que as manifestantes da Marcha, pegas de surpresa, fiquem só olhando, e talvez se deem as mãos e façam uma roda para impedir que os performáticos sejam atacados. E vamos supor que no dia seguinte todo mundo só associe uma bela marcha de mais de três horas de duração com esses dez ou quinze minutos infames. E aí? Diríamos que os mascus foram vitoriosos em arruinar a marcha, ou não?
Ontem a organização da Marcha do Rio deixou um comentário pouco incisivo no Facebook (não o encontrei mais, acho que tiraram, mas os reaças printaram; clique para ampliar). A Folha de SP interpretou a nota como se as organizadoras lamentassem a "quebra de imagens sacras". Não foi bem isso que entendi não. Tinha que ser uma nota bem mais dura, desvinculando a performance da organização. Essa desvinculação é difícil. Se no ano passado a Marcha do Rio teve um minúsculo conflito com uma igreja em Copacabana e ficou marcada por isso, imagine agora. 
Lindo ato na Marcha de São Carlos
Mas é preciso que a organização se posicione melhor, sem ambiguidades. É preciso que a Marcha do Rio (e todas as outras) discutam o que fazer se ocorrer um outro caso desses. Interromper? Expulsar e dizer que a Marcha não compactua com intolerância religiosa? Ou todas as performances (não os gritos de guerra, mas os atos artísticos, teatrais) teriam que passar pelo crivo da organização antes do dia? Eu realmente não sei. Mas pense em quantas performances têm potencial pra dar errado (sei lá, imagine alguém simulando o abatimento de um animal, ou castrando um cara fingindo ser o Feliciano, ou fazendo merchandising de alguma marca). Depois que o ato é realizado durante a Marcha, não é nada fácil explicar que ele não fazia parte da Marcha. 
Eu me solidarizo com a Marcha, com todas elas. Participei da de Fortaleza, da de Recife, e sábado estarei na de João Pessoa. Só posso imaginar como é complicado organizar tudo isso, ter que lidar com mil e um imprevistos, cuidar da segurança dxs participantes, dar declarações pra mídia que não raro são incompreendidas. É impossível ser capaz de controlar tudo num protesto ao ar livre com milhares de pessoas, mas é preciso tomar posições. E rápido.
A linda Amana
No sábado eu vi mais de duas horas da Marcha das Vadias do Rio pela internet, em tempo real, através do Mídia Ninja. E foi tudo lindo. Não vi o Coletivo Coiote. Vi um montão de gente descontraída, cantado gritos de ordem como "Ô Vaticano, vou te dizer, existe amor independente de você" e "Papa, levanta seu vestido, quem sabe aí embaixo está o Amarildo?" Óbvio que tem reaça que se ofende com isso também, com qualquer menção ao Papa, com a própria existência de mulheres (algumas de topless, algumas fora do padrão de beleza) reivindicando direitos. Mas chutar santa é descer ao nível universal do reino de deus de intolerância. É dar combustível pro inimigo. Não ajuda em nada, só atrapalha.
Apesar do meu otimismo incontrolável, eu não tenho muita esperança que o feminismo possa fazer reaças deixarem de ser reaças. Só que tem muita gente que não é reaça, e não é feminista, mas pode se identificar com as nossas lutas, e eventualmente vir a lutar conosco. Eu vejo isso acontecer todos os dias. E são essas pessoas que a gente perde ao depredar símbolos religiosos. Ou ao apoiar quem depreda.
E creio que ainda não chegamos à fase em que podemos descartar aliados. Ou chegamos?