Baseado no livro de Drauzio Varella, “Carandiru” é um daqueles filmes que estão acima do bem e do mal. Uma simples opinião do tipo “gostei” ou “não gostei” parece fútil frente à gravidade do tema, mas, se alguém quiser saber, eu gostei. Primeiro porque o diretor Hector Babenco é um mestre. Embora sua última (e mais autobiográfica) produção, “Coração Iluminado”, tenha sido uma bomba, alguém que fez “Pixote” e “O Beijo da Mulher Aranha” já tem seu lugar reservadinho na história do cinema. O cara filma bem pacas. Segundo porque “Carandiru” é fluente, conta com ótimas interpretações, e suas duas horas e pouco passam voando. E terceiro porque a mensagem é fundamental.
Num país onde de cinco em cinco anos se esquece o que aconteceu nos últimos cinco anos, é vital que uma superprodução nos faça recordar. O massacre dos 111 presos ocorreu em 92, e até hoje não houve punição. Se em São Paulo já deve ter muita gente que descartou este episódio desagradável da memória, imagina no resto do país. Duvido que os adolescentes tenham ouvido falar nisso. Bom, eu me lembro. Na época, eu ainda vivia em Sampa. Lembro da TV mostrando flashes ao vivo da rebelião. Lembro do desespero dos familiares em frente à cadeia. Lembro das fotos dos mortos no dia seguinte na capa dos jornais. Montes e montes de homens enfileirados nus. Lembro que me fixei nos detalhes, de ter observado que havia tarjas cobrindo os pênis no “Estadão” mas não na “Folha”. Lembro também que essa chacina me chocou menos que uma outra de poucos anos antes, quando um delegado trancou pilhas de presidiários num cubículo sem ventilação para castigá-los, e vários morreram. Essas coisas.
Na década de 80, eu estive no Carandiru. Não como detenta, que eu ainda era inocente naqueles tempos, mas para entrevistar presidiárias para uma reportagem pro jornalzinho da escola. O complexo feminino ficava em outro pavilhão e era bem menor, lógico, que existem menos mulheres presas. Falei com umas três ou quatro, todas pobres, todas negras, todas condenadas a mofar décadas na prisão. E o que mais me lembro era da falta de perigo que elas representavam. Aquelas com quem conversei tinham matado o marido e seguiam o mesmo padrão – apanhavam dele, eram ameaçadas de morte, se defenderam. Tudo bem, essa era a versão delas. Mas tive a nítida impressão que não estavam mentindo. Não tinham porquê. Davam suas vidas como encerradas, apesar dos filhos, apesar de algumas trocarem bilhetinhos de amor com os detentos de outros pavilhões.
Por que tenho boas lembranças delas? Porque as vi. Qualquer filme que mostra o cotidiano do preso é pró-preso e contra o sistema. Qualquer um, inclusive os americanos. E a razão é óbvia: ao enfocar um criminoso, o humanizamos. Ele deixa de ser um monstro e passa a ser uma pessoa com um passado. E, no fundo, não queremos saber nada dessa gentalha. Queremos jogar essa escória num depósito bem longe e esquecê-la. A maior parte da população é a favor da pena de morte. Logo depois do massacre, uma pesquisa entre os paulistanos revelou que a maioria apoiava a ação da tropa de choque e não via nada de mais em liquidar uns marginais. Não é à toa que Gil e Caetano puseram em sua obra-prima: “Ao ouvir o silêncio sorridente de SP diante da chacina / 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos / ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres”. “Haiti” não está na trilha sonora de “Carandiru” e faz falta. A música de André Abujamra é boa, mas, pra mim, “Haiti” é indissociável da chacina.
Talvez, se a música estivesse presente, o público teria se concentrado mais? Não sei. A reação da platéia ao filme é um capítulo à parte. Parecia que havia mais no ar que risinhos nervosos. Havia também o riso do desprezo. “Carandiru” tem algum humor, mas é difícil se divertir ao se lembrar da tragédia iminente. A maior manifestação do público veio quando Gero Camilo beija Rodrigo Santoro, um sonoro “argh!”. Mas não ouvi ninguém chorar pelos chacinados. Nem mesmo eu.
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