sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O SEGUNDO BORAT NUM MUNDO MUITO PIOR QUE O DE 14 ANOS ATRÁS

Esses dias eu vi Borat 2, que está sendo muito falado principalmente por duas coisas:

- A filha de Judith, uma simpática velhinha judia a quem o filme é dedicado (ela morreu pouco antes do lançamento), está processando a produção. Ela diz que a mãe não sabia do que estava participando e que, se soubesse, jamais teria topado (acho uma besteira. Judith é provavelmente a personagem mais fácil de amar no filme. É quase uma ode a ela. Mas o processo foi dispensado por um juiz).

- A impressionante cena envolvendo o ex-prefeito de Nova York e atual advogado pessoal de Trump, o republicano Rudy Giuliani (voltarei a falar nisso).

Pra ser franca, eu nem saberia da estreia de Borat 2 (direto na Amazon Prime Video) se não fosse por esses dois contratempos, digamos. Mas assim que soube corri pra ver. 

Eu me lembro pouco do primeiro Borat, que é de 2006, anos-luz atrás (leia minha crônica aqui). Sei que ri bastante, mas também reclamei do seu humor de mentalidade "frat-boy" (até o termo tá datado. Refere-se aos rapazes que fazem parte de fraternidades nas universidades dos EUA e que não são conhecidos pela sua inteligência). 

Olha como o mundo mudou nesses 14 anos de diferença entre os dois Borats. Se em 2006 alguns dos piores tipos que tínhamos eram os frat boys, hoje temos neonazis negacionistas milicianos com quem o presidente fala diretamente. Se em 2006 tínhamos Bush Jr, provavelmente o líder mais ignorante e medíocre a já governar os EUA, em 2020 temos Donald Trump, um completo psicopata capitalista selvagem que quase faz Ronald Reagan parecer um carinha equilibrado (eu disse quase). E melhor nem mencionar o Brasil. Em 2006 tínhamos esperança e o Brasil crescendo e saindo do mapa da fome com Lula. Hoje temos a terra arrasada de Bolsonaro. Não preciso dizer mais nada. 

Com o crescimento da direita, e com a pior crise sanitária dos últimos cem anos, o planeta piorou muito de lá pra cá. E isso tem influência no humor. Como afirma o criador de Borat, o humorista britânico (e judeu) Sasha Baron Cohen numa excelente palestra que deu na Liga Anti-Difamação no ano passado, as teorias da conspiração, antes relegadas a nichos estúpidos, hoje viraram mainstream. As piadas para zombar dos otários funcionavam porque a maior parte do público entendia, por exemplo, que a Terra não é plana. Hoje vão rir de quê? Das suas próprias crenças?

Cohen inventa uma punição pro seu famoso personagem Borat, que por ter humilhado o Cazaquistão no filme anterior, é condenado a trabalho forçado num gulag pelo resto da vida. Mas ele agora tem uma chance de sair dessa: basta entregar o Ministro da Cultura Johnny, o Macaco (não dá pra rir: melhor que o nosso Mario Frias) para Trump. Só que Borat não pode chegar perto do laranjão, pois no primeiro filme ele (Borat, não o trumposo) defecou na frente de um hotel Trump Tower. Então ele opta por tentar dar o macaquinho ao vice-presidente Mike Pence.

Quem brilha no filme é a atriz búlgara Maria Bakalova, que na vida real tem 24 anos. Escolhida entre 600 atrizes para o papel de Tutar, a filha de 15 anos de Borat, Bakalova tem um timing cômico fantástico e muita energia. Anote aí: talvez ela ganhe melhor atriz coadjuvante no próximo Oscar. Sem dúvida o filme fez dela uma estrela.

Minha cena favorita na produção é com ela. É uma em que, depois de comprar um cupcake com um mini-bebê de plástico em cima, e acidentalmente engolir o bebê, ela e o pai vão ao Crisis Pregnancy Center (um centro evangélico para convencer mulheres a não abortarem; veja um trecho da cena aqui). Há mais de 3 mil centros desse tipo nos EUA. Eles geralmente ficam próximos a clínicas onde uma mulher ou menina pode realizar um aborto legalmente, e enganam as pacientes, fingindo que irão resolver o problema da gravidez indesejada, quando na realidade farão de tudo para assustar a pessoa a não abortar. Esses centros, obviamente, não são atendidos por médicos, mas por pastores. 

E é isso que acontece em Borat 2: Borat diz, "Eu me sinto mal porque eu pus o bebê dentro dela" (ao tentar ajudar a filha a tirar o mini-bebê da boca, ele o empurrou pra dentro da garganta), e o pastor, acreditando tratar-se de um bebê de verdade, responde "Não se sinta mal", encerrando com um "Deus é quem cria a vida e ele não comete acidentes". 

Outra cena bizarra (e hilária pelo nível do absurdo) é uma em que Borat, disfarçado, leva a filha para um baile de debutantes. No meio de uma "dança típica" do Cazaquistão (só que não: a nação, uma ex-república soviética de 18 milhões de habitantes, existe de verdade, é o nono maior país do mundo em tamanho, e obviamente não ficou nada feliz ao ser alvo de calúnias e piadas xenofóbicas já no primeiro Borat), a jovem Tutar levanta o vestido, revelando uma calcinha cheia de sangue menstrual. As expressões nos rostos dos convidados são impagáveis. 

Como sempre num mockumentary (falso documentário) como este, a gente fica pensando no quanto é real, e quanto é encenado. Li que, para esta cena do baile, figurantes foram contratados (receberam cem dólares cada um) para participar de uma história "coming of age" (de transição para a vida adulta). 

Mas outras figuras são bem reais, como o cirurgião plástico que cobra 21 mil dólares para colocar silicone nos seios de uma menina de 15 anos (Borat quer saber se não pode colocar batatas de boa qualidade), os lunáticos integrantes do QAnom (é engraçado vê-los condenando a "teoria da conspiração" sobre mulheres cazaques), os supremacistas brancos no protesto, o encontro das mulheres republicanas etc. 

Uma das poucas personagens queridas, a babá negra de Tutar, é uma avó e babá na vida real, Jeanise Jones. Falaram pra ela que ela estaria num documentário em que uma jovem garota está sendo preparada para se casar com um homem muito mais velho. Jeanise recebeu apenas US$ 3,600 pela sua participação, mas depois seu pastor organizou uma vaquinha e arrecadou 50 mil dólares em três dias. Tenho certeza que não vai faltar emprego pra ela, porque ela é maravilhosa. 

O que nos leva à já clássica cena com Rudy Giuliani. Tutar finge ser uma repórter que vai entrevistá-lo numa salinha de um quarto de hotel. O ultraconservador se comporta de forma patética, embasbacado com a graça da menina, até que os dois vão para o quarto, Giuliani se deita na cama e põe uma mão pra dentro da sua calça, depois de tocar nas costas da garota. Nesse momento, Borat, disfarçado de mulher, entra no quarto gritando "Ela é muito velha pra você" e se oferece pra transar com Rudy em vez dela. Em seguida, pai e filha saem correndo do hotel. 

A cena, que foi filmada em julho, sem que Giuliani soubesse que estava num filme, mas crendo que iria ser entrevistado por uma jornalista-mirim de 15 anos, é chocante. Quer dizer que é assim que homens brancos velhinhos agem quando estão sozinhos com adolescentes?! O reaça explicou que estava só ajeitando sua camisa pra dentro da calça, mas não é o que parece mesmo. 

Cohen declarou que as pessoas devem ver o filme e decidir por si próprias sobre o que ocorre na cena: "Eu diria que se o advogado do presidente acha que o que ele fez é um comportamento adequado, só o céu sabe o que ele faz com jornalistas mulheres em quartos de hotel. Vejam o filme. É o que é. Ele fez o que fez. Pra gente está bastante claro". O ator e produtor, que estava escondido no quarto durante a filmagem da cena, preocupou-se com a segurança da atriz. Foi avisado quando o político se deitou na cama, e aí invadiu a cena. 

Giuliani, que tem 76 anos, contou na ocasião -- sem citar a presença de uma garota -- que um homem vestido com lingerie entrou no seu quarto de hotel e ele chamou a polícia. "Só depois percebi que devia ser o Sacha Baron Cohen. Pensei em todas as pessoas que ele já enganou e me senti bem porque ele não me pegou". Esses reaças, além de tarados, não parecem ser muito perspicazes. 

Trump comentou diante da controvérsia: "Faz anos, [Sacha Cohen] tentou me enganar. É um cara falso, um impostor. Não o acho engraçado. Pra mim ele é um pulha". Cohen agradeceu a publicidade gratuita e respondeu: "Donald, eu admito, eu também não te acho engraçado. Ainda assim o mundo inteiro ri de você. Estou sempre procurando gente pra interpretar palhaços racistas, e você vai precisar de um emprego depois de 20 de janeiro. Vamos conversar!"

Na cara não, Cohen! Nem precisava de mais esta humilhação pública pro trumpista. Uma cena no filme já diz muito. Tutar pergunta se ela não pode se oferecer para algum outro amigo do Trump além do Mike Pence. Ela mostra uns quatro ex-assessores, perguntando: "E este?" Pra todos, incluindo o guru da extrema-direita Steve Bannon, Borat diz: "Ele está preso". 

Oxalá este também seja o destino de Trump em 2021 e de seu cãozinho de estimação, Bozo. 
Veja meu vídeo sobre o filme no Fala Lola Fala. E, por favor, inscreva-se no canal. 

9 comentários:

Leonardo Lawlyet disse...

achei engraçado ver o imbecil do Bolsonaro... pensei q se o Baron Cohen lembrou dele, poderia ter uma zoeira com Olavo.... pena q nao teve .. mas talvez seja melhor. bom saber q aquele cretino está a cada dia mais irrelevante

Anônimo disse...

Boa noite Lola, tudo bem?
Uma mulher negra foi assassinada essa semana na França dentro de uma igreja. Por que ninguém está falando nisso? Qdo um policial matou um negro nós Estados Unidos foi uma comoção mundial. Por que ninguém diz nada agora?

Anônimo disse...

Angela Davis on the Struggle for Socialist Internationalism and a Real Democracy
https://jacobinmag.com/2020/10/angela-davis-socialist-internationalism-democracy

Anônimo disse...

00:35: Uma mulher negra, brasileira.

Anônimo disse...

20:11, se fosse uma branca estaria td ok? Porque ressaltar o "NEGRA"? Agora cor de pele da vítima define se um crime é mais ruim que o outro?

Anônimo disse...

Divida histórica

Anônimo disse...

19:11: Não ressaltei o "negra", ressaltei o "brasileira". Mas também esse não é o cerne. Muitos muçulmanos são negros, parece que o real conflito é de aspecto religioso.

Anônimo disse...

No Brasil de 2020, se vc nascer preto, tem 50% da vida garantida. Se for mulher, preta, 75% da vida ok. Se vc resolver ser gay, além de mulher preta, pronto! A mágica está feita, e vc NUNCA MAIS precisará estudar, sempre vai ter emprego pra vc (alô Luiza!), sempre vc vai ser a vitimizada, a que tem que ser defendida, centenas de pessoas irão te defender, irão te dar coisas de graça, cestas básicas, grana, emprego, casa, comida e roupa lavada de GRAÇA pro resto da vida! Agora, experimente nascer homem, branco e ser heterossexual. Vc será o fudido, o responsável por td a desgraça do País, será sempre o culpado, terá que ralar muito pra estudar e trabalhar, ñ tem cota nem vaga pra vc, etc etc e etc. Ou seja: aqui o poste mija no cachorro td dia!

Brunno. disse...

Tem uma thread ganhando força no twitter onde "mostra" que Mariana Ferrer não foi estuprada, mas o mais engraçado é que a tal thread (feito por uma bacharel em direito) diz analisar apenas o caso com provas do processo e tal. Ali ela usa imagens do celular da vítima, imagens de vídeos, mas esquece completamente do sêmen do acusado na calcinha dela (a thread mostra que mariana foi demitida porque não seguiu as regras da casa onde trabalhava e tal, mas esquece esse ponto importantíssimo), e pelo fato da thread esquecer esse ponto e ninguém que comentou apontar esse esquecimento, fico imaginando: o sêmen dele foi encontrado na calcinha ou nela? Porque se foi, quem fez essa thread devia ser perguntado do porquê esqueceu, se responder que ela pode ter forjado, então a thread, na verdade, era uma defesa dele, e perde validade total.

A thread: https://twitter.com/mdamarisn/status/1320880326101602304

Como fiquei sabendo (foi em twitter de petistas que não acreditam nela): https://twitter.com/schmittpaula/status/1323754502680387587

Um testemunho sobre como uma mulher pode ser estuprada e sair normalmente do local: https://twitter.com/bonitorubi/status/1321445478685442052