Eu adoro xadrez. Não só pelo maridão ser jogador e professor de xadrez (nos conhecemos num torneio em SP). Já gostava muito antes, desde que meu amado pai me ensinou a mexer as peças. Decidi contar um episódio famoso no mundo enxadrístico que os leigos provavelmente não conhecem. Não, claro que não é sobre mim, mas preciso dar um pouco de contexto antes, e esse contexto é sobre esta amadora que vos fala.
Existem partidas às cegas no xadrez. Isso quer dizer que não é necessário possuir um jogo para poder jogar. Ter um tabuleiro, peças e inclusive relógio (para delimitar o tempo de cada jogador) ajuda muito, mas não é imprescindível. Se eu estivesse confinada a um só lugar num BBB da vida sem nada pra fazer, ensinaria o pessoal a jogar xadrez a cegas. Não seria muito interessante para o espectador, mas eu ensinaria. Num universo fútil desses fica todo mundo preocupado com exercício físico, mas ninguém gasta dois segundos com exercício mental.
Acho que só joguei duas partidas a cegas na minha vida. Uma foi numa viagem de carro de SP, capital, a Americana. Felizmente era o maridão que tava dirigindo. A gente começou a jogar do nada. Eu fiz um lance e ele continuou. É assim: no xadrez, existe um método descritivo e um algébrico, pra poder anotar as partidas. A descritiva, já meio fora de uso, é, por exemplo, P4R (ou seja, o peão avança pro quarto quadrado na frente do rei). A algébrica é e4. Cada casinha do tabuleiro tem uma letra e um número, e você ocupa esses quadrados com peças, como se fosse Batalha Naval, sabe? Bom, então lá estava eu no carro, e eu digo e4 pro maridão, e ele responde com e5. E aí eu sigo com f4, que eu gosto de (embora não saiba como) jogar Gambito do Rei (é uma abertura romântica que envolve o sacrifício de um peão logo de cara). E a partida seguiu inteirinha nas nossas cabeças, e foi bacana, um excelente exercício mental. Só que, chegando a Americana, eu estava totalmente grogue por causa do esforço. Tanto que fui me servir um copo d'água na casa da minha cunhada, e acabei despejando a água fora do copo. Meu raciocínio espacial tinha ido pro espaço!
Um pouco por causa disso, uma das histórias que mais me fascinam no xadrez é um recorde de simultâneas às cegas. Simultânea é quando um jogador desafia vários jogadores ao mesmo tempo. Cada oponente tem seu tabuleiro e suas peças, e o jogador vai passando um por um, fazendo sua jogada ao passar. Ou seja, ele pode jogar 10, 50, 100 partidas ao mesmo tempo (minha querida leitora Liris participou de uma simultânea com o Mequinho no ano passado, né, Li?). Jogar uma simultânea já é muito difícil e desgastante. Agora, imagine fazer isso sem olhar pros tabuleiros! Foi isso que Najdorf fez.
Miguel Najdorf foi um fortíssimo jogador polonês. Houve uma Olimpíada de Xadrez em Buenos Aires em 1939, e os jogadores judeus acabaram ficando por lá pra salvar suas vidas, ao invés de retornar a uma Europa ameaçada por Hitler. Isso deu uma energia enorme ao xadrez argentino, que “ganhou” novos jogadores importantes. Najdorf foi um deles. Enquanto boa parte de sua família era assassinada em campos de concentração na Polônia, ele se naturalizou argentino pra poder sobreviver. Em 1947, pouco depois do final da guerra, ele quis ver se conseguia encontrar parentes sobreviventes e, para isso, tratou de chamar a atenção da imprensa internacional. Escolheu São Paulo para bater o recorde de simultâneas a cegas. Disputou 45 partidas ao mesmo tempo, sem ver nenhuma. Ele ficou quase 24 horas num outro recinto, e um microfone lhe cantava as jogadas. Tipo: tabuleiro 1: d4. E ele precisava responder com um lance. Tabuleiro 2: Cf3. Tabuleiro 3: c4. Pense em 45 partidas inteiras assim. Repetindo: sem ver os tabuleiros!
Das 45 partidas, ele ganhou quase todas. Perdeu duas e empatou quatro (três delas contra mulheres). Venceu as outras 39, e entrou pra história. Algo que eu acho curioso é que, pelo relato do Herman (um forte jogador holandês radicado em SP), uma das moças que empatou com Najdorf nessa célebre simultânea foi a Otilia, que depois tornou-se campeã paulista. Num dos meus primeiros torneios profissionais, eu joguei com a Otilia, que já era bem velhinha (e continuava simpática).
E tive a honra de conhecer Najdorf num campeonato em Buenos Aires, no ínicio dos anos 90. Ele morreu na Espanha em 1997, com 87 anos de idade. Numa comparação tosca, a façanha das 45 simultâneas a cegas de Najdorf equivale a memorizar 12 milhões de algarismos aleatórios, ou de aprender três idiomas num só dia. Viu, gente? Por isso que eu não consegui acertar a água no copo lá em Americana!
E agora, tá esperando o quê? Vá logo aprender xadrez! Pode até usar um tabuleiro no começo.
(Foi o Mário Sérgio, vulgo Masegui, lá de Minas, que me inspirou a escrever este post. Reclamem com ele!).
Existem partidas às cegas no xadrez. Isso quer dizer que não é necessário possuir um jogo para poder jogar. Ter um tabuleiro, peças e inclusive relógio (para delimitar o tempo de cada jogador) ajuda muito, mas não é imprescindível. Se eu estivesse confinada a um só lugar num BBB da vida sem nada pra fazer, ensinaria o pessoal a jogar xadrez a cegas. Não seria muito interessante para o espectador, mas eu ensinaria. Num universo fútil desses fica todo mundo preocupado com exercício físico, mas ninguém gasta dois segundos com exercício mental.
Acho que só joguei duas partidas a cegas na minha vida. Uma foi numa viagem de carro de SP, capital, a Americana. Felizmente era o maridão que tava dirigindo. A gente começou a jogar do nada. Eu fiz um lance e ele continuou. É assim: no xadrez, existe um método descritivo e um algébrico, pra poder anotar as partidas. A descritiva, já meio fora de uso, é, por exemplo, P4R (ou seja, o peão avança pro quarto quadrado na frente do rei). A algébrica é e4. Cada casinha do tabuleiro tem uma letra e um número, e você ocupa esses quadrados com peças, como se fosse Batalha Naval, sabe? Bom, então lá estava eu no carro, e eu digo e4 pro maridão, e ele responde com e5. E aí eu sigo com f4, que eu gosto de (embora não saiba como) jogar Gambito do Rei (é uma abertura romântica que envolve o sacrifício de um peão logo de cara). E a partida seguiu inteirinha nas nossas cabeças, e foi bacana, um excelente exercício mental. Só que, chegando a Americana, eu estava totalmente grogue por causa do esforço. Tanto que fui me servir um copo d'água na casa da minha cunhada, e acabei despejando a água fora do copo. Meu raciocínio espacial tinha ido pro espaço!
Um pouco por causa disso, uma das histórias que mais me fascinam no xadrez é um recorde de simultâneas às cegas. Simultânea é quando um jogador desafia vários jogadores ao mesmo tempo. Cada oponente tem seu tabuleiro e suas peças, e o jogador vai passando um por um, fazendo sua jogada ao passar. Ou seja, ele pode jogar 10, 50, 100 partidas ao mesmo tempo (minha querida leitora Liris participou de uma simultânea com o Mequinho no ano passado, né, Li?). Jogar uma simultânea já é muito difícil e desgastante. Agora, imagine fazer isso sem olhar pros tabuleiros! Foi isso que Najdorf fez.
Miguel Najdorf foi um fortíssimo jogador polonês. Houve uma Olimpíada de Xadrez em Buenos Aires em 1939, e os jogadores judeus acabaram ficando por lá pra salvar suas vidas, ao invés de retornar a uma Europa ameaçada por Hitler. Isso deu uma energia enorme ao xadrez argentino, que “ganhou” novos jogadores importantes. Najdorf foi um deles. Enquanto boa parte de sua família era assassinada em campos de concentração na Polônia, ele se naturalizou argentino pra poder sobreviver. Em 1947, pouco depois do final da guerra, ele quis ver se conseguia encontrar parentes sobreviventes e, para isso, tratou de chamar a atenção da imprensa internacional. Escolheu São Paulo para bater o recorde de simultâneas a cegas. Disputou 45 partidas ao mesmo tempo, sem ver nenhuma. Ele ficou quase 24 horas num outro recinto, e um microfone lhe cantava as jogadas. Tipo: tabuleiro 1: d4. E ele precisava responder com um lance. Tabuleiro 2: Cf3. Tabuleiro 3: c4. Pense em 45 partidas inteiras assim. Repetindo: sem ver os tabuleiros!
Das 45 partidas, ele ganhou quase todas. Perdeu duas e empatou quatro (três delas contra mulheres). Venceu as outras 39, e entrou pra história. Algo que eu acho curioso é que, pelo relato do Herman (um forte jogador holandês radicado em SP), uma das moças que empatou com Najdorf nessa célebre simultânea foi a Otilia, que depois tornou-se campeã paulista. Num dos meus primeiros torneios profissionais, eu joguei com a Otilia, que já era bem velhinha (e continuava simpática).
E tive a honra de conhecer Najdorf num campeonato em Buenos Aires, no ínicio dos anos 90. Ele morreu na Espanha em 1997, com 87 anos de idade. Numa comparação tosca, a façanha das 45 simultâneas a cegas de Najdorf equivale a memorizar 12 milhões de algarismos aleatórios, ou de aprender três idiomas num só dia. Viu, gente? Por isso que eu não consegui acertar a água no copo lá em Americana!
E agora, tá esperando o quê? Vá logo aprender xadrez! Pode até usar um tabuleiro no começo.
(Foi o Mário Sérgio, vulgo Masegui, lá de Minas, que me inspirou a escrever este post. Reclamem com ele!).
20 comentários:
meu pai tentou me ensinar xadrez tb, mas nunca peguei gosto. tanto é q, poucos anos depois, eu nem lembrava mais o nome das peças... :S meu raciocínio matemático é nulo! aliás, um dos motivos q me fez retomar o estudo de música foi tentar minimizar minha incompetência numérica. depois de 5 anos estudando psicologia, cheguei num ponto q até conferir troco é um suplício.
ah, vi essa foto de xadrez humano e lembrei q, no ensino médio, eu e meus amigos brincávamos assim, mas com damas. uma parte da escola tinha um piso quadriculado onde cabia certinho uma pessoa em pé. os negros eram as peças pretas e os brancos, as brancas. divertidíssimo!!!
Que post legal, Lola! Me deu até vontade de voltar a jogar :-)
Só de ouvir como é o jogo, fiquei cansada... 0.o
Aprender a jogar xadrez está na minha lista. Até baixei uma cartilha do governo que ensina a jogar. Só espero que eu consiga desenvolver o raciocínio estratégico necessário a um bom jogador: acho que isso vai ser o mais difícil...
Muito bom o post! :)
Obrigado, Lolinha, tornei-me um devedor... prometo tolerar suas implicâncias com o CM até terça!
Beijos agradecidos.
que vergonha! e eu tô estudando Japonês há 5 meses e ainda nem decorei os primeiros 200 símbolos. =(
Acho que eu demoraria para aprender. haahahahaha
Eu sempre quis aprender a jogar xadrez. Eu até sei os movimentos das peças, mas não sei o que me falta: se disposição ou alguem com quem treinar. Acho que é mais a segunda opção. A partir de amanhã, entretanto, será mais falta de tempo, pois retornam as aulas da faculdade (sim, o período começa agora, uma greve há 3 anos atrás bagunçou todo o calendário).
Divagações a parte, ótimo post lola!
Ah, e o Haneke ganhou a Palma de Ouro! Aêeeeee \o/
Aliás, vi um dele hoje: 71 fragments of a chronology of chance. Viram?
Só de ouvir como é o jogo, fiquei cansada... 0.o [2]
Tenho übber vontade de conseguir fazer coisas fantásticas... Mas sinto que antes preciso aprender a gostar das coisas comuns...
Twittei esse texto, lola! É realmente incrível!
Ai, fiquei tonto do de imaginar. Prefiro jogos de adivinhacao ou perguntas e resposta, tipo perfil, imagem e acao e master. Sou otimo nesses.
E eu que quando fui ler o post já estava com enxaqueca...
abraço
Nossa,gente!Como um dia me repassou o Sílvio,vulgo maridão,jogar xadrez é como aprender a tocar piano:aprende-se a jogar em um mês mas tocar bem leva a vida toda.Tem gente que tem talento.Eu já me sinto feliz em,depois de três anos sem tocar nas pedras,desafiar meu namorado às seis da manhã(com público e tudo)para uma partida de xadrez.Quando ainda não namorávamos trocávamos e-mails com músicas e textos,partilhando informação.Logo,ele me veio com um link,aquela coisa e4.A coisa foi se desenvolvendo e ele músico e jornalista que é,acabou esquecendo(creio eu)de continuar as jogadas.Insisti que continuasse,lembrando aquele espírito esportivo(hehe) que tenho eu diante da bela voz falada,cantada e escrita que tem ele.No bar ele não teve como fugir,e eu com tanta sede,analisando a partida,lembrando do Sílvio e final de peões,fiz duas damas(siiimmmm,fui cruel e quase anti-esportiva)e ele desistiu me informando que eu tinha sido a primeira mulher a ganhar dele.Perguntei se aquilo era um comentário machista e que se fosse ele teria que corrigir para:-Carol,você foi a primeira mulher a me humilhar no xadrez.Ele disse que não e ,meio intimidado me deu um beijo e sorriu.Sei não.Enfim,esse post me deu saudade do xadrez e de de tudo o que o jogo traz consigo,nesse caso...conosco.Obrigada,Lola.Obrigada,Sílvio.
Cara, deixei um recado e depois excluí sem saber...que horrível! Beijos, Lola, essa memória numérica para mim é algo dos deuses e das deusas, eu sou mera mundana desmemoriada!!!
Jogar xadrez é um das coisas, como tocar violão e montar quebra-cabeça que eu e o marido protelamos por causa de séries e video-games. Ficam lá as coisas nos esperando e nós, preguiçosinhos adiando. Mas um dia vai.
"Jogo" xadrez desde 8 anos de idade, mas nunca fui apresentado às coordenadas do tabuleiro, o que me torna incapaz para jogar xadrez às cegas...
Aliás a única jogada que eu sei de cor é xeque pastor, impossível de realizar com quem sabe o mínimo de xadrez. :)))
Eu aprendí a jogar, mas não tenho a paixão pelo jogo. Xadrez, gamão, damas, nada disso me atrai.
Pena, né?
Beijos
Amei, o post!! Adorei a história, obrigada por compartilhar algo tão interessante!
Estou aprendendo xadrez!!
Bjoks
Paula
Lola, foram 2 simultâneas.
E nem preciso dizer que foram 2 humilhações...huahuahuahuahuah.
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