quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

DE VALENTÃO A PIANINHO - O DESTINO DE TODOS OS TROLLS

Os mascus sanctos voltaram a dar as caras esta semana, quando abriram uma comunidade no orkut para rir da tragédia de Santa Maria. Não vou por o link, e peço a vocês, encarecidamente, que vocês não divulguem uma página quando querem denunciá-la. Sei que as intenções são as melhores possíveis, mas acabamos viralizando um blog/site/comunidade etc que quer exatamente isso -– chamar a atenção antes de ser deletado. Basta denunciar individualmente, sem espalhar o link pra todos os seus contatos. Denuncie pra Safernet e pra Polícia Federal, e aguarde.
Bom, pros mascus sanctos chamarem a atenção até num espaço moribundo como o orkut, quer dizer que o negócio foi brabo. Entre outras “gracinhas”, eles colocaram imagens de dois de seus ídolos, ambos masculinistas, o atirador norueguês e Wellington, responsável pelo massacre de Realengo, no Rio, em 2011, barrando a saída das vítimas da boate Kiss. Entre muitas outras barbaridades. No Twitter, perfis sanctos também atacaram. Vamos ver por quanto tempo eles fazem isso, agora que a Polícia Federal anunciou que irá atrás desses comentários ofensivos.
Se tem alguém que sabe do que a PF é capaz, esse alguém são os mascus sanctos. No final de março fará um ano que dois dos maiores líderes sanctos, Engenheiro Emerson e Marcelo, foram presos. E eles continuam na cadeia. Três habeas corpus para responder a seus crimes em liberdade já foram negados. Se você não lembra, no final de 2011 os mascus sanctos, através do blog Silvio Koerich (o blog mais popular que os mascus já tiveram, e eu já disse que a única diferença entre as várias facções mascus é na intensidade do ódio), aterrorizaram a internet através de ameaças de morte a várias pessoas (eu inclusa), imagens e textos tenebrosos do tipo “Faça você mesmo: Estupre e mate uma mulher”, e a promessa de que iriam cometer um atentado no prédio de Ciências Sociais da Universidade de Brasília.
Durante muito tempo eu pensei que os mascus sanctos eram apenas valentões da internet, covardes demais para cometer qualquer crime longe da tela de um monitor. Eu estava enganada. Quando a PF prendeu Emerson e Marcelo, em Curitiba, encontrou com eles mapas da UnB e outros indícios de que iriam concretizar a ameaça. Mesmo com os dois presos, os rumores de que haveria um atentado na UnB estavam tão fortes que a universidade não abriu as portas numa sexta-feira 13, em abril. Sabemos que não há tantos mascus sanctos, mas vários continuam à solta. Poucos meses atrás houve um rumor grande que mais um tinha sido preso. Um outro, um menor de idade, foi preso e solto. Ele alcançará a maioridade este ano, e vamos ver se ele seguirá com o mesmo discurso e arriscará ir pra cadeia.
O legal é como, antes de serem presos, todos eles são corajosos e audazes. Mas na prisão, ou diante de um juiz, tudo muda de figura. No YouTube tem um vídeo com o termo de transcrição dos depoimentos de Marcelo, Emerson e testemunhas. A descrição do vídeo diz que os dois “são integrantes da quadrilha neo-nazista intitulada Homens Sanctos” e cita os codinomes de demais integrantes, entre eles Mó Humirde e Cobra, velhos conhecidos de fóruns mascus “Guerreiros da Real” (facção que alega não ser misógina nem ter conexão com os sanctos). 
Vale lembrar que Marcelo já havia sido condenado em 2009, por crime de racismo. Mas ele foi considerado semi-imputável por ser portador de “transtorno de personalidade”. Há também um boletim de ocorrência contra ele da própria mãe, em quem ele batia. Emerson também respondeu a processo por violência doméstica. Ou seja, tudo gente da melhor estirpe.
De quando eles estavam soltos, do blog SK
Entre as testemunhas de defesa, num gesto de pura trollagem, foi chamado o proprietário da agência Afropress, site que os sanctos tentaram derrubar. Durante meses, Dogival Vieira Santos, que é negro, foi ameaçado pelos sanctos! E aí ele é arrolado como testemunha de defesa...
As outras testemunhas de defesa todas falam a mesma coisa: que não conheciam o lado racista de Emerson ou Marcelo. Como apenas racismo é crime (misoginia e homofobia ainda não são), é só disso que eles estão sendo acusados, além de incitação ao crime e publicação de material com pedofilia. Um amigo de Emerson diz: “ele sempre foi um rapaz muito culto, educado principalmente [...], sempre foi uma criança e adolescente tranquilo, nunca apresentou nenhum tipo de desvio assim grave a esse ponto que tô vendo agora”.
O vídeo começa a esquentar a partir do segundo minuto, com a transcrição do depoimento de Emerson.  Primeiro, sobre o vídeo da Índia (em que ele diz que "o estado inerente do preto é a sujeira, o estado inerente da mulher é a prostituição"), Emerson alega que recebia provocações da ex-namorada, que havia chegado “a enviar um vídeo mantendo relações com negros e menosprezando a minha capacidade sexual. […] Sei que nada se justifica, uma coisa da qual me envergonho e me arrependo profundamente porque ofendeu não somente aos meus amigos, mas também não expressa aquilo que eu penso”. 
Quanto ao blog SK, Emerson diz que fazia apenas comentários e que é contra a pedofilia. “Esse site na verdade eu passei a conhecer através do Marcelo, enfim por fora, pra comentar, enfim, certas provocações porque, não somente através do site, mas a própria internet, o meu nome estava saindo em todos os, ah...” (clique pra ampliar).
Emerson diz que contratou Marcelo pra dar uma chance a ele, que havia sofrido bullying na infância e sido injustiçado por uma condenação por racismo. E fala que não sabe quem era o administrador do site. Neste trecho ele confirma que os rumores que ouvimos (que Marcelo foi estuprado na cadeia) podem ser verdadeiros. 
E aqui o ato falho:
No depoimento de Marcelo, ele nega as acusações, e afirma que está preso por “Emerson já estar sendo investigado e eu estar junto dele”. Ele diz que foi “contratado por pessoas na internet pra hospedar o site”. Quando perguntado porque, a princípio, o site estava hospedado nos EUA, Marcelo responde que era por ser mais barato. E que recebia o dinheiro do Ministro Claudio. Ele nega ter sido administrador do site, só administrador do servidor. “Sou o empresário”. A maior cara de pau de todas as transcrições está aqui:
Ele afirma que não sabia o conteúdo do site que hospedava!
Em seguida faz uma defesa à la Veja: ele não é racista porque não existem raças.
O advogado de defesa pergunta se ele tem algo contra os alunos da UnB. Marcelo responde que não, e que se considera injustiçado.
Aqui, o sujeito que, muito antes da prisão, já era uma celebridade entre o pessoal dos Chans (fóruns anônimos), porque nunca saía de lá, diz que não tinha tempo pra brincadeira, pois trabalhava demais.
Agora eles são todos inocentes cordeirinhos que não tinham nada a ver com o site de ódio. Na época do site, todo dia tinha post dizendo “Vocês nunca vão nos pegar”, “Não temos medo”, “Temos um blog que está humilhando o Brasil”, “Não tenho nada a perder”. Pelo jeito, todo mundo tem algo a perder. Até os maiores perdedores do Brasil, os mascus.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

GUEST POST: NÃO QUEIRAM MEDIR O QUANTO SOU MULHER

Como esta semana estamos falando muito em Visibilidade Trans, publico outro guest post sobre o tema, com um enfoque bem diferente. 
Este foi escrito por Hailey, que, assim como Daniela, também é uma ativista. Hailey é mulher trans*, tradutora em SP, e editora do blog Transfeminismo
Creio que esse relato sincero e corajoso da Hailey pode fazer inclusive com que  mulheres cis (ou seja, não trans) reflitam sobre a ditadura do que é "ser mulher" (e ser homem, evidentemente). Que sirva de exemplo para mostrar como o transfeminismo pode ser útil para qualquer feminista.

Gostaria de relatar minha experiência positiva com o feminismo, e posteriormente com o transfeminismo.
Há mais ou menos seis anos, iniciei o que muitas pessoas trans* [entenda o porquê do asterisco usado por algumas ativistas] chamam de transição, ou seja, passei a usar roupas e acessórios considerados femininos, deixei meu cabelo crescer, comecei a fazer as unhas e me depilar – comecei a fazer tudo o que é socialmente considerado feminino. De certa forma, nessa época eu achava que o “sacrifício” de ter que me arrumar todos os dias era o preço que eu deveria pagar por “querer ser mulher”. Usar saltos e sapatos desconfortáveis, menores, inclusive, que meu pé (eu calçava 40, mas comprava 39 por falta de opção), deixando-o cheio de calos; gastar um belo tempo e dinheiro (que eu não tinha) com cosméticos e produtos caros, maquiagem, cremes, perfumes, etc.
Somente alguns anos depois conheci o feminismo, e lentamente percebi o quanto essa cobrança me fazia mal. Mas no caso de nós, mulheres trans*, as coisas não são tão simples. Além da cobrança machista do ideal feminino, há outra cobrança. Para sermos “verdadeiramente” mulheres, devemos sacrificar todos os nossos “hábitos” masculinos. Caso contrário, seremos consideradas falsas, não transexuais o suficiente. Essa é a baliza que os profissionais da saúde utilizam para medir quem é mais ou menos transexual.
Não preciso dizer o quanto é ridículo, senão inútil, tentar medir transexualidade. Gênero é algo fluido e complexo, e obviamente não tem como ser medido sem cair em estereótipos (machistas).
Sinto que levei (e ainda levo) uma vida dupla. No consultório, tenho que mentir: dizer que sou heterossexual (quando sou bi); repetir a narrativa tradicional encontrada nos manuais (pseudo)científicos (como o discurso do “sempre me senti mulher”); mostrar “feminilidade” etc. Os critérios que esses ditos profissionais utilizam são os mais machistas possíveis: A mulher trans* de verdade é a mulher da década de 50: usa salto e maquiagem, roupas femininas, fala delicadamente e seu sonho é ter um marido macho para poder lhe fazer o jantar. E não estou exagerando.
Se as mulheres cisgêneras (não trans*) conquistaram, digamos, em partes, a recusa dessa imagem, nós mulheres trans* ainda estamos presas a um ideal ultramachista de mulher que, se não nos encaixarmos, teremos nossas identidades automaticamente invalidadas, nosso acesso à saúde negado, e nossa alteração do prenome e/ou sexo nos documentos também negados. Nossa existência está constantemente por um fio caso fizermos os gestos errados, caso digamos as palavras erradas, ou se contarmos alguma experiência que fuja minimamente do tradicional. É claro que existem exceções, mas esses têm sido os relatos de pessoas trans* ao longo de seus atendimentos nos hospitais das clínicas pelo Brasil (a socióloga Berenice Bento fez um amplo trabalho de campo nos HCs, o que resultou em bela pesquisa).
Após um tempo no feminismo, comecei a ler o que ativistas trans* dos EUA chamam de transfeminismo: um tipo de feminismo aplicado às questões trans*. Não consigo expressar o quanto me ajudou!
Com o transfeminismo aprendi a amar meu corpo, inclusive meu pênis (e perdi o medo/disforia de utilizar o termo pênis para se referir ao meu genital. Embora eu pessoalmente não tenha problemas em designar meu genital como pênis, não o considero “masculino”, e vale ressaltar aqui que muitas mulheres trans* não compartilham dessa visão e talvez se ofendam caso se insinue ou diga que elas têm um pênis. Como eu disse, as experiências são diversas e temos que respeitar sempre a experiência da pessoa trans* em questão); amar minha altura, meus pés grandes (para o padrão de mulher ideal), enfim, tudo o que socialmente é designado como “masculino” em mim e que corroboraria para me deslegitimar como mulher.
Aprendi que não preciso depilar minhas pernas para ser mulher, não preciso me portar como mulher (seja lá como for isso); preciso somente ser eu e me identificar como mulher. A categoria de mulher independe de (meus) genitais (e consequentemente de quaisquer cirurgias), pois eu sou apenas um tipo diferente de mulher -- assim como existem mulheres altas e baixas, gordas e magras, com seios maiores ou menores, enfim, com várias morfologias -- minha morfologia é somente uma a mais dentro do espectro que é ser mulher.
Sem a cobrança pela imagem da mulher perfeita, pude me livrar de vários desconfortos com meu corpo. Claro, não são todas as pessoas trans* que conseguem isso. Muitas irão fazer várias cirurgias, e essas não devem ser criticadas. Eu creio que cada um tem a capacidade para decidir como se sente melhor, se deseja ou não realizar alterações corporais. A minha experiência é apenas uma dentre as várias diferentes vivenciadas por pessoas trans*. Por isso, costumo dizer que não há uma narrativa legítima para ser trans* -- existem narrativaS.
Por fim, gostaria de reiterar o caráter fluido da transexualidade. Não há receita de bolo. Todxs somos diferentes. Encontraremos, certamente, as pessoas trans* mais alinhadas com a cisgeneridade (estrutura que designa quem é homem/mulher “de verdade”; a estrutura que confere originalidade aos corpos percebidos como "naturais”), e encontraremos aquelas que divergem da norma, assim como existem homens e mulheres cis que são muito diferentes do ideal machista de gênero (ainda bem!). Sendo cis ou trans*, pagaremos o preço do desvio. Mas vamos seguir lutando para subverter as categorias rígidas de gênero.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

SONHEI QUE VOCÊS IAM ENTRAR NO BOLÃO

Continuo esperando vocês entrarem no bolão do Oscar, seus miseráveis

Já falei que estou torcendo muito pra que a Anne Hathaway leve a estatueta de atriz coadjuvante? Ela está maravilhosa em Os Miseráveis, e sua interpretação da linda "I Dreamed a Dream", em close-up, sem cortes, é nada menos que comovente. Só que Tina Fey e Amy Poehler arruinaram tudo. 
No hilário discurso no Globo de Ouro, elas disseram que nunca viram alguém tão desamparada e abandonada desde que Anne apresentou o Oscar com o James Franco. E aí quando eu vejo a Anne cantando em Les Mis eu lembro dela com o James, e, de fato, nenhuma miséria se compara à daquela noite!
Bom, queridas pessoas, participem do bolão do Oscar. Basta fazer as apostas nesta página, mais nada.
Mas, se vocês não forem completos miseráveis, entrem no bolão pago. Depositem ou  transfiram R$ 15 pra uma das duas contas que tenho –- Banco do Brasil, agência 3653-6, cc 32853-7, ou Santander, agência 3508, cc 010772760 -–, me enviem um comprovante por email (lolaescreva@gmail.com), e façam suas apostas aqui.
Vamulá, pessoal! Aí a gente pode torcer pela Anne juntinhos no dia 24 de fevereiro.  

GUEST POST: TODO DIA DEVE SER DE RESPEITO A TRANS

Hoje é um dia muito importante na luta da tolerância, da inclusão e dos direitos humanos: é o dia da Visibilidade Trans. Pra celebrar a data, pedi um guest post especial, e a Daniela aceitou.
Daniela Andrade mora em São Paulo e é uma mulher transexual ativista, formada em Letras e Análise de Sistemas, com pós-graduação nas áreas de Psicanálise, Língua Portuguesa, Literatura e Informática. Multifacetada e aguerrida lutadora pelos direitos das pessoas transgêneras, ela, além de ter um blog, é responsável por muitas das imagens da página do Facebook que eu peguei emprestadas pra ilustrar o post (clique nelas para ampliá-las).

O Dia da Visibilidade Trans surgiu em janeiro de 2004 por conta do lançamento da Campanha Nacional “Travesti e Respeito”, do Ministério da Saúde. Nesse dia 29, representantes da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) entraram no Congresso Nacional, em Brasília, para lançar nacionalmente a campanha.
Dessa iniciativa, as cinquenta e duas organizações afiliadas à ANTRA foram orientadas a sair às ruas para comemorar essa data em todo o país, para mostrar as suas caras e consequentemente reivindicar seus direitos.
Mas, quando se fala em visibilidade, o que se quer dizer com isso? Significa primariamente que travestis e transexuais continuam invisíveis do ponto de vista do respeito aos direitos e da dignidade tanto para o governo, quanto para a sociedade.
Infelizmente, há um sentimento generalizado de que toda vez que uma travesti ou uma mulher transexual aparecer na mídia, salvaguardando raras exceções, será para ridicularizá-las nos programas de humor, que só o que fazem é reforçar o estereótipo e o preconceito de que elas são homens, invalidando suas identidades femininas, ou como exibição em programas policialescos onde, geralmente, o apresentador fará o que a claque pede: transformará essa pessoa em peça de jardim zoológico ou circo de aberrações. Acostumada que está a sociedade a ver e associar travestis e transexuais ao mundo do crime, da farsa, do engano; e, tão logo, a jamais vê-las como vítimas, inclusive quando são elas as agredidas, estupradas ou assassinadas, nesse caso também a maioria dirá: “ah, mas era travesti, travesti é tudo p*ta mesmo! Tudo bandido!”, e todos consentirão com a cabeça, embasados numa pretensa estatística universal que não dá direito de defesa a elas, de que transfobia é algo inexistente.
Aliás, o próprio termo “travesti” é frequentemente usado no masculino, e do mesmo modo a mídia prefere frisar o nome do RG dessas pessoas, como se o que elas pensam e a forma como preferem ser tratadas -– no feminino: A travesti -- não significasse nada, como se a língua devesse necessariamente ad eternum e ad nauseam ser utilizada para oprimir xs sem voz. E como se o nome social fosse algo não importante, e o do RG fosse estritamente necessário para entendermos a matéria em questão.
Mas, se alguém se detiver um pouco sobre o tema, e pesquisar o que significa ser travesti ou transexual no Brasil, não dificilmente descobrirá que essas pessoas precisam estar sempre preparadas para receber sopapos, tapas, cusparadas, xingamentos, deboches e descrenças de todas as partes. É como ser uma ilha, rodeada de violência por todos os lados.
De um modo geral, vemos o desrespeito, as diárias agressões e a incompreensão por parte dos pais e da família. Em muitos casos são expulsas de suas casas ou forçadas a isso dado o histórico de violência. Sem ter onde morar, acabam tantas vezes caindo nas garras das cafetinas e cafetões que lhes oferecem um lugar para dormir em troca de trabalho: entenda aqui a prostituição.
Durante a vida escolar, geralmente verifica-se o fenômeno da evasão, já que a maioria acaba por não aguentar as agressões diárias vindas não apenas dos demais alunos, mas também daqueles que deveriam protegê-las: professorxs e gestores escolares que insistem em afirmar que a identidade de gênero que elas dizem possuir é inválida, mentirosa, fantasiosa, negando-se a tratá-las pelo nome social.
Sem escolaridade, tudo parece ficar extraordinariamente mais difícil quando o assunto é trabalho –- que já é dificultado a qualquer uma, independente de estudo, pelo grande preconceito do empresariado que, de um modo geral, não quer em seu quadro de funcionários pessoas que a sociedade associa ao crime, ao errado, ao que se deve evitar.
Mesmo no serviço de saúde, também são pessoas desrespeitadas -– ainda que nacionalmente o SUS indique que devam ser tratadas pelo nome social. Primeiro que há apenas quatro hospitais públicos em todo o país capazes de realizar a cirurgia de transgenitalização, onde pessoas transexuais esperam por anos pelo “privilégio” de que o governo as escolham para lhes devolver a dignidade roubada por um destino que lhes privou de ter um corpo ajustado de acordo com aquilo que necessitam e da forma como se enxergam.
Endocrinologistas especializados nesse público também são raros (lembrando que hormônios são feitos pensando no corpo de pessoas não transexuais e, inclusive sua bula não diz respeito às pessoas transexuais), o que força muitas dessas pessoas a se hormonizarem por conta própria, incorrendo em diversos riscos de saúde como tromboses e infartos. Mas são os hormônios que também trazem uma melhor percepção e aceitabilidade do próprio corpo, ao transformá-lo de acordo com o gênero exercido socialmente.
Dado esse panorama, fica agora esclarecido que nesse dia da visibilidade trans, o que se almeja é que esses cidadãos e cidadãs pagantes de impostos tenham suas necessidades respeitadas e conhecidas. E, que essa visibilidade se estenda para os demais dias do ano, já que ser travesti ou transexual é todo dia, e todo dia é dia de respeito e empatia pelo outro.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

COM TRAGÉDIA NÃO SE BRINCA

...mas ainda não avisaram certas pessoas

Ontem foi um domingo deprimente. Assim que liguei o computador, a primeira coisa que vi foi a hashtag #ChupaNordeste no Twitter. Parece que foi uma brincadeira com a seca terrível e insistente, a pior dos últimos trinta anos, que anda fulminando a região. Tweets preconceituosos contra o Nordeste e nordestinos são comuns. Toda semana tem um. Mas rir da seca é dose. 
Embora esse desastre climático não esteja afetando tanto as pessoas quanto em outras épocas (graças ao Bolsa Família que a mesma galera do #ChupaNordeste condena), ela faz rios e lagos desaparecerem, muda a vegetação, e causa a morte de milhares de animais. Em dezembro fui de carro de Fortaleza pra região oeste do Estado, e, em janeiro, pra região leste, chegando até o Rio Grande do Norte. Nunca vi tanto cavalo, jumento, bode, boi atropelado (pra não falar dos cães e gatos). Acho que eles, famintos, tentam atravessar a estrada pra conseguir grama e água do outro lado, e são surpreendidos por automóveis.
Mas não é só isso. Em alguns trechos da estrada mal dá pra respirar, porque o cheiro de carniça é forte, um cemitério a céu aberto. E os animais que teimam em sobreviver estão magérrimos, com todas as costelas aparecendo. Um cenário desses não tem graça nenhuma.
A outra tag que vi no Twitter ontem foi sobre a tragédia na boate em Santa Maria, RS, o segundo maior incêndio na história do país em número de vítimas (só perdendo para o incêndio num circo em Niterói, em 1961, quando morreram 500 pessoas). Muita, muita dor. Boa parte das vítimas era estudante da UFSM.
Conheço várias cidades gaúchas; Santa Maria ainda não é uma delas. Mas, durante os sete anos que dei aula de inglês em Joinville, tive inúmeros alunos engenheiros que haviam se formado na UFSM. E, recentemente, fui convidada para dar uma palestra lá, em março, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. Então a tragédia doeu como se eu conhecesse cada uma das 233 pessoas mortas. Me afetou pessoalmente. 
Como tanta gente, estou chocada. E exijo, além da adoção de medidas para que esses acidentes criminosos não aconteçam mais, a punição dos culpados. Como pode alguém disparar um sinalizador num lugar fechado? Os seguranças bloquearam a única saída da boate? O extintor de incêndio não funcionou? Onde ficava a saída de emergência? O alvará de funcionamento estava vencido? A luz de emergência não funcionou, gerando ainda mais pânico? Há muitas outras questões, e quero resposta pra todas.
As 650 pessoas que sigo no Twitter (ou seja, minha timeline) foram exemplares. Não houve sensacionalismo nem piadas, só comoção e revolta. Mas elas também informaram, indignadas, que havia muita gente fazendo brincadeira com a tragédia. Como assim? Tão cedo? No mesmo dia? Será que essa gente não compreende a definição do Mark Twain, de que humor é tragédia mais tempo? E que não deu tempo ainda pra se acostumar com a ideia? Claro, a gente pode se perguntar quanto tempo precisa passar pra que seja aceitável tentar fazer rir em cima da morte de jovens por asfixia e queimaduras. Dias? Semanas? Meses? Nunca?
Fora a turma do “foi merecido, os jovens deveriam estar em casa, não em festas” e do castigo divino (que, imagino, devem ser da mesma turma -– e eles não estavam brincando), teve humoristas amadores que criaram frases como “festa em Santa Maria pega fogo”, “gaúchos queimaram rosca em boate”, “gaúcho gosta de churrasco”, “hoje eu vou fritar na balada”, “pena que meus ex não frequentavam a Kiss”, além de coisas relacionadas a 233 tons de cinza, sujeito dizendo que iria se mudar pra Santa Maria porque agora teria vaga numa universidade federal, e os prints que leitorxs me enviaram pra ilustrar este post.
Interessante foi ver a atitude muito séria de humoristas profissionais, divulgando endereço de hemocentro, pedindo doações, soando como os melhores samaritanos. Ué, mas não eram eles que se vangloriavam de ser possível fazer piada com tudo? Não são eles que pregam que não há limite pro humor? Não são eles que insistem que é só uma piada? (aliás, um leitor me mandou ontem esta imagem chamando de estuprador um famoso comediante brasileiro de stand up, mas tudo bem, ninguém deve se ofender, porque é só uma piada). Por que, na tragédia de Santa Maria, esses humoristas que fazem piada com estupro, racismo e holocausto cederam o palco pra amadores? Ou é muito cedo?
Uma das piadas no Facebook
Não, não quero que eles se juntem aos humoristas amadores e passem a tuitar “chistes” como “Promoção: Necrofilia liberada a noite inteira”. Eu só queria saber onde está o limite. Se eles fizessem uma piada dessas, quantos de seus milhões de seguidores aplaudiriam? Quantos se ofenderiam? Quantos ficaram frustrados que seus comediantes de estimação não aproveitaram a tragédia pra arrancar algumas risadas?
Tweet de humorista amador
Ou será que um incêndio numa boate é mais trágico que o estupro de mulheres? E se fosse um incêndio numa boate gay, haveria piadas? Conhecendo os alvos habituais desses humoristas, minha aposta é que sim.
Mas é só uma conjectura. De certeza mesmo, só o repúdio de quem acha que com certas coisas não se brinca a quem não tem a menor empatia pelo sofrimento alheio. E a solidariedade a todas as vítimas, de todas as tragédias, inclusive as mais cotidianas. Sempre. 
Charge infeliz do cartunista Chico Caruso, criticando Dilma.