sexta-feira, 15 de julho de 2011

GUEST POST: O MASCULINO COMO GÊNERO PADRÃO DA HUMANIDADE

Eu sempre estranho quando uso "queridas leitoras" (já que a maior parte das pessoas que me lêem é mulher) e os meus queridos leitores sentem-se excluídos. Mas, se eu adotasse "queridos leitores" para falar de todas as pessoas que me lêem, isso incluiria as mulheres, e ninguém acharia esquisito. Já parou pra pensar por quê, ou como a linguagem que falamos não é inclusiva de todos os seres humanos? Esta é a segunda parte (aqui a primeira) do guest post de Robson Fernando de Souza, autor do blog Consciência.

A discussão sobre o uso genérico da palavra homem vem esquentando apenas desde a segunda metade do século passado, mas desde as revoluções burguesas do século 18 desperta dubiedades oportunamente aproveitadas como motivos de exclusão feminina. Olympe de Gouges foi talvez a primeira pessoa a se insurgir contra o uso falsamente neutro do termo, ao reclamar que as mulheres não estavam sendo amparadas pela francesa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a qual teoricamente, mas não na prática, abarcava os dois gêneros. Isso levou-a a criar uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, algo que infelizmente não foi levado a sério na época -– e lhe rendeu a guilhotina.
Previamente percebeu-se que os discursos dos filósofos que exaltavam aquele sujeito que ao mesmo tempo tinha e não tinha um rosto masculino -– o tal do homem –- dificilmente encaravam a mulher em pé de igualdade com os machos. Rousseau, segundo nos revela Simone de Beauvoir, pensava que “toda a educação da mulher deve ser relativa ao homem (…) A mulher é feita para ceder ao homem e suportar-lhe as injustiças” (O Segundo Sexo). Marina Basso Lacerda, por sua vez, em seu artigo "A gênese da divisão público/masculino e privado/feminino" (leia aqui), acusa: “a tradição filosófica de origem kantiana, quando considera o indivíduo moralmente autônomo, toma raramente a identidade feminina como ligada a essa noção de indivíduo.”
E demorou para que os discursos que visavam o homem “sem distinção de gênero” passassem a abraçar a mulher, considerando-se que direitos como o voto, a atividade política legislativa e executiva e a posse de propriedade só foram conquistados por ela -– e graças a suas lutas, não por concessões gratuitas por parte dos homens -– entre os meados do século 19 e os do 20 tanto nos países desenvolvidos como na maioria das nações em desenvolvimento. Enquanto isso, contraditoriamente, os livros das então nascentes Ciências Sociais abusavam de falar do homem como se tal palavra representasse a humanidade inteira sem nenhuma polêmica, dubiedade ou injustiça linguística.
Mesmo atualmente, o uso indiscriminado desse verbete da discórdia continua, inclusive entre muitas e muitas mulheres, que desconhecem -– ou mesmo ignoram ou irrelevam quando avisadas -– (por) que estão aceitando tacitamente o masculino ser o gênero padrão da humanidade.
Diz-se comumente ainda hoje, num senso comum seguido até pelos intelectuais mais cultos e cientificistas, que “homem tem dois significados: os humanos adultos do sexo masculino e os seres humanos indistintos de gênero e de idade”. Mas é considerado muito esquisito, e às vezes até ofensivo, que se diga, por exemplo:
- Eu sou um homem! (dito por uma mulher)
- Eu, você aqui, vocês duas sentadas ali, vocês rapazes aí no fundo, todos nós aqui somos homens de bem. (dito por uma mulher)
- Nós homens devemos respeitar mais os outros animais. (dito por uma mulher)
- Neste congresso de mulheres, nós devemos nos firmar como homens capazes de mudar a História. (dito por uma mulher para um público totalmente feminino)
- As mulheres são homens do sexo feminino.
- Metade dos homens têm a capacidade de engravidar e se reproduzir.
- Aquele lugar não aceita homens fêmeas.
- Aqui homens do sexo feminino só pagam metade do preço do ingresso.
- Alguns homens podem sofrer complicações no parto.
- Moram comigo e com meu marido quatro homens, sendo eles três filhas pequenas e um filho adolescente, dois cães e três gatos.
- Crianças e mulheres são homens ainda hoje pouco valorizados.
- Minhas filhas serão homens valorosos para a humanidade.
- Segundo o Censo 2010, há 190.732.694 homens no Brasil, incluindo-se entre eles 97.342.162 mulheres.
- Todos os homens no Brasil tiveram enfim direito ao voto no governo Vargas, com a instituição do voto feminino.
- Minha filha, que está na faculdade, é um homem exemplar.
- Sabia, Fulana, que você é um homem sensacional?
- Alguns homens precisam se cuidar por causa da menopausa.
- Metade dos homens têm o estrógeno como seu hormônio sexual.
- Alguns homens têm cromossomos XX, outros têm XY.
- Gosto de você como namorada linda e amável, como professora devotada, como homem espetacular.
- Simone de Beauvoir, Olympe de Gouges, Marie Curie, Rosa Parks, Emma Goldman… Todas elas foram homens de grande valor!
- Exemplos de mamíferos: homem (mas a foto é de uma mulher), girafa, elefante, cão, gato, leão…
Assim percebemos que a palavra homem não é tão unissex assim, mesmo que seus cognatos originais (homo, mann…) o tenham sido na Idade do Ferro. Reconheceu Paulo Freire diante desse inconveniente:
(…) É que, diziam elas, com suas palavras, discutindo a opressão, a libertação, criticando, com justa indignação, as estruturas opressoras, eu usava, porém, uma linguagem machista, portanto discriminatória, em que não havia lugar para as mulheres. (…) Em certo momento de minhas tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo, a linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da verdade que havia na afirmação: ‘Quando falo homem, a mulher está incluída’. E por que os homens não se acham incluídos quando dizemos: ‘As mulheres estão decididas a mudar o mundo’? (…) A discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso machista e encarnada em práticas concretas, é uma forma colonial de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer posição progressista, de mulher ou de homem, pouco importa. (…) A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo. (…) Não é puro idealismo, acrescente-se, não esperar que o mundo mude radicalmente para que se vá mudando a linguagem. Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo. A relação entre linguagem-pensamento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória.” (Pedagogia da Esperança – Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido).
Desse discurso, aliás, extrai-se uma pergunta muito pertinente: por que os homens não se acham incluídos quando falamos a mulher ou as mulheres? A resposta mais fácil é o que foi exposto neste artigo: homem, e não mulher, serviu originalmente como denominação da espécie humana. Daí aparece algo interessante: se o cristianismo, a sociedade grega e os povos europeus antigo-medievais tivessem sido ginocráticos e misândricos em vez de androcráticos e misóginos, as mulheres hoje é que se chamariam as homens/las hombres/hommes/men, e aqueles que hoje chamamos homens continuariam sendo chamados por cognatos derivados de were/vir.

A parte final do guest post do Robson está aqui.

25 comentários:

Bela Campoi disse...

Ótimo post, Robson. Mas devo discordar de uma coisa: Olympe de Gouges foi tão levada à sério, que foi condenada à guilhotina. No mais, reflexão importante essa aqui...

Daní Montper disse...

Eu ia dizer a mesma coisa que a Isabela, que a Olympe tanto foi levada a sério que foi parar na guilhotina! xD

Estamos caminhando para um excelente guest post, mas aguardarei a última parte!

Ju Garcês disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

O meio da postagem está ótimo! (Ainda vou ler o início...) Já pensava no que o Roberto Freire disse na citação, mas, convenhamos, não é fácil mudar a linguagem, até porque esse masculino "genérico" não atinge só o homem, mas machos e fêmeas de todas as espécies, e portanto não basta criar um vocábulo novo. É algo mais impregnado na linguagem, afinal, metade dos cavalos têm órgãos que lhes possibilitem a prenhez... Mas, por outro lado, podemos ver nessa confusão do homem "genérico" uma opressão machista sobre o próprio homem do sexo masculino (muito menor que aos do sexo feminino, claro - aliás, você nota que escrevi "aos" do sexo feminino?), que é ter de posar de machista, mesmo que tente não ser. Nenhum homem pode admitir ser uma mulher do sexo masculino, ou vai virar motivo de muita gozação e até de ódio pelos mais trogloditas da espécie (trogloditas machos e fêmeas). Enfim, só apresento alguns problemas a mais, porque a solução é muito complicada...

Abraços de uma mulher do sexo masculino,

Leandro Arndt

Anônimo disse...

Não posso deixar de acrescentar: como fica estranho escrever "abraços de uma mulher do sexo masculino"! Os olhos não querem concordar...

Abraços

Leandro

Gaia disse...

Ótimo texto! Espero ansiosamente a terceira parte.
E o cartaz do filme X-Men é bem ilustrativo.

aiaiai disse...

Lindo Robson! Mais claro do que isso, impossível.
Adorei vc ter citado Paulo Freire porque li, só recentemente infelizmente, a Pedagogia do Oprimido, adorei, mas fiquei com esse incomodo, pq ele fala o tempo todo em Homem...

Bom saber que existe uma revisitação dele própria a essa questão. Vou procurar ler em breve.

É incrível que as pessoas tenham tanta dificuldade em ver o óbvio e, neste caso, é tão fácil mudar: basta dizer "pessoas" "humanidade" "ser humano"...

Mas eu tenho bastante esperança de q vai mudar...em 20 ou 30 anos, no máximo, todos vão achar muito estranho alguem se referir à Humanidade usando a palavra "homem".

Parabéns e obrigada pelo texto.

sabrina disse...

Olá Lola td bem? Acho que vc ira gostar desta série. Bjocas
http://www.videobbseries.net/necessary-roughness.html

Eduardo Gomes F. disse...

Gosto muito dos seus textos! sou um leitor acíduo que acabou de entrar pro mundo dos blogs,sem você escreve divinamente!
Eu acredito que a igualdade é o primeiro grande passo para Democracia,no nosso mundo nao se deve ter beneficios quanto ao sexo!

Letícia disse...

eu concordo plenamente com tudo que foi dito, mas não sei como se muda uma língua (ou várias línguas). na verdade, o pensamento da sociedade como um todo teria que ser alterado em seu âmago pra que se conduzisse uma mudança na língua... pq esta é parte integrante, impossível de ser isolada de um contexto social. acho que uma imposição artificial de novo vocabulário seria tão ineficaz quanto essas alterações ortográficas que se fazem... mudam-se as palavras, permanece o sentido.

Camila disse...

Achei o texto super bacana e gostaria de contribuir com duas coisinhas do idioma alemao: ser humano, por aqui, é der Mensch. E serve para os dois gêneros. Mann é homem, Frau é mulher. E os dois podem ser Mensch.

Todo e qualquer plural ganha automaticamente o artigo feminino - ainda que o substantivo seja masculino. Por exemplo - o homem (der Mann), os homens (die Männer). Acho divertido traduzir isso ao pé da letra, as homens... :-)

Sexo c/ Amor? disse...

Muito legal este post! Aguardo, ansiosa, a outra parte. O mais interessante é que dizem que as mulheres são as precursoras da linguagem...

aiaiai disse...

Laetitia,

as linguas estão sempre mudando...não existe lingua parada, a não ser que esteja morta (ninguem mais usa/fala).
Recomendo q leia livro que mudou minha visão sobre lingua e linguistica

Preconceito Linguistico, do marcos bagno. Dá até para baixar na internet, de graça, e é um livro q vc lê rapida e facilmente.

Luiz Prata disse...

@Laetitia e @Marxismo Online
No caso específico da designação da espécie humana, a aiaiai já citou uma solução simples e natural, sem "artificialidades" ou "novo" vocabulário:
"pessoas", "seres humanos". A expressão, hoje natural e difundida, "Direitos Humanos" surgiu em resposta à questão da dubiedade de "Direitos do Homem".

Exemplos:
- O ser humano é um animal racional;
- Há pessoas íntegras capazes de mudar a História;
- A história da humanidade: da descoberta da escrita ao e-mail;
- Humanos podem pensar, embora nem sempre o façam com propriedade.

@Gaia
Bem lembrado sobre o cartaz de "X-Men". Nos quadrinhos surgiram grupos derivados, como X-Factor, X-Force, Excalibur e Generation X; Por que não "X-People"?

Letícia disse...

aiaiai e Luiz, vcs estão certos, sem dúvida: as línguas estão sempre mudando, "novas" maneiras de expressão são encontradas... por exemplo: o que era "homossexualismo", com esse sufixo relativo a doença, tornou-se "homossexualidade", hoje se fala em "homoafetividade"... e que isso é um produto da variação do pensamento da sociedade, e também uma maneira de se influenciar esse pensamento, eu não duvido. a questão que eu quis levantar é justamente essa: uma sociedade machista pode produzir uma língua não-machista? até que ponto uma língua não-machista combateria o machismo na sociedade? eu tb não sei responder a essas questões. são coisas que eu passei a pensar no meu curso de letras :)

Letícia disse...

ah, e não conheço esse livro. vou procurá-lo!

Barbara disse...

Gente, esse guest post tá sensacional. Estou amando acompanhar.

Ramon Duarte disse...

O Robson ainda está escrevendo o post? Porque, honestamente, não entendo por que dividir o post em três.

No mais, o uso da palavra "homem" com esse significado poderia ser abolido de vez da língua, por ter o potencial de causar sérios problemas de ambiguidade. Percebi isso ao ouvir um trecho de uma música outro dia:

Houve um tempo em que os homens
Em suas tribos eram iguais
Veio a fome e então a guerra
Pra alimentá-los como animais
Não houve tempo em que o homem
Por sobre a Terra viveu em paz
Desde sempre tudo é motivo
Pra jorrar sangue cada vez mais.

O homem é o lobo do homem!
O homem é o lobo do homem!

Pitty - O Lobo


O "homem", neste contexto, é o ser humano independente de gênero ou o ser humano do sexo masculino?

Provavelmente, a artista empregou esta expressão para fazer uma crítica velada, mas esta classe de ambiguidades é nociva na comunicação cotidiana.

Milena disse...

O Robson já escreveu o post inteiro há muito tempo (está no blog dele até), a Lola que quis dividí-lo, o que eu achei uma bobagem. De repente, se o post tivesse vindo completo desde o começo, o número de trolls na parte I seria menor. É difícil argumentar com ou contra uma linha de raciocínio quebrada.

Ju Garcês disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ivan B. Prado disse...

Para deixar o idioma menos sexista, bastaria usar "QUERIDES Leitores". ;-)

Aoi Ito disse...

Acho que dividiram o post porque ficaria grande demais pra ser lido em uma só leva, e tem gente que não curte ler coisas muito longas. É algo bem básico, pessoas costumam ler coisas curtas a coisas longas e comentar mais em coisas curtas e tal.

Isso me lembra uma coisa interessante. A gente discutindo Iluminismo nas aulas de Moderna, tive que escrever um sei lá o que e usei tudo "humano" em vez de "homem". Mas acho que nesse contexto tava muito errado. Ninguém ligava pras mulheres na época, então acho que o correto era dizer homem mesmo, já que dificilmente mulheres tinham um mínimo de reconhecimento e ficavam de fora de tudo. Acho que, no caso, pode até ser usado como crítica. Afinal, que sociedade é essa onde "humanos" não fica tão bem quanto "homens"? É como a democracia grega, cidadania a todos, só que cidadão só o homem livre. Mulher de qualquer posição social e homens escravos não eram cidadãos. Então calma lá ao falar da democracia grega e o iluminismo como a melhor coisa da humanidade desde Tetris.

Só pensamentos soltos mesmo sobre minhas aulas, juntando com o assunto em pauta... :)

James Hiwatari disse...

Descobri esse blog faz pouco e gostei tanto que ando tentando ler o máximo que der, mesmo quando já faz mais de um ano que a coisa apareceu...

Concordo com quase tudo que diz o Robson, mas gostaria de acrescentar que, quando ele usou exemplos de frases que ficam "estranhas" ou "sem sentido" quando se usa homem no sentido de "ser humano", algumas dessas frases na verdade não estavam tão erradas.

Existe uma certa parcela da população que é homem (no sentido de humano do sexo masculino mesmo) e tem útero, vagina, mestrua, tem cromossomos XX e já até ficou grávido (assim como tem mulheres que tem pênis, barba, e todas essas coisas). Homens trangêneros também são homens, e naõ é a nossa anatomia, nossos órgãos internos ou nossos cromossomos que invalidam a nossa identidade. Sabendo qual é a intenção do post, é até um pouco ofensivo ler essas frases, porque elas apagam a existência de uma população que já é bastante marginalizada e esquecida.

Sugiro dar uma olhada nesse site http://transfeminismo.com/2012/07/04/o-que-e-cissexismo/ pra ver mais coisas sobre esse tipo de situação (chamado cissexismo, ou seja, já sair supondo que pessoas trans não existem e se esquecer de que ser cisgênero é também uma forma de privilégio).

Não sei se adianta muito comentar em um post tão antigo, mas enfim...

Patty Kirsche disse...

Bem bacana este texto. Eu sempre pensei nisso, desde criança. Quando eu falava para as professoras, elas diziam que "homem" significava a espécie humana, mas aquilo não deixava de me incomodar. Até hoje eu não uso "homem" como humanidade.

camila santos disse...

Tem casos bizarros que até quando se referem a mulheres chamam no masculino. Quando vejo algumas frases sempre tem "o pensamento do homem" " liberdade do homem" o homem isso/o homem aquilo nem sei se estão falando de mulheres, algumas ignoro porque tem tanto homem que dói os olhos.