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sábado, 16 de maio de 2015

GUEST POST: ROSA CHOQUE, PARA QUE HAJA O ENCONTRO

A atriz e produtora cultural Cris Moreira me enviou um lindo texto sobre o espetáculo que estreou. Fica até o dia 17 de maio (amanhã!) no Galpão Cine Horto, em BH. 

A ideia de fazer um espetáculo que levantasse a questão da violência contra a mulher surgiu há um ano, quando eu e Guilherme Théo, um amigo e parceiro de trabalho, nos encontramos para ir a um outro espetáculo que levantava questões importantes sobre as relações trabalhistas. Saímos de lá em busca de um tema tão relevante quanto, para uma possível criação cênica. 
Como mulher, já vivenciei várias formas de violência, desde o machismo estrutural, que me impõe ser mais responsável pelo meu filho do que o meu companheiro e mais responsável pela minha mãe do que meus irmãos, à violência física.
Fora a vivência pessoal, diariamente acompanho notícias de jornal, postagens em redes sociais, blogs e sites que tocam no assunto. Diariamente. Isso fez com que eu, cada vez mais, me aproximasse da temática, buscasse dados, informações. 
A partir disso, nos debruçamos na construção de um rascunho de cena, uma cena de oito minutos, para participação no projeto Cena Espetáculo, do Galpão Cine Horto. A ideia do projeto é selecionar, inicialmente, 12 cenas de oito minutos; dessas 12 são escolhidas quatro para se transformarem numa cena de 15 minutos, e das quatro, uma é escolhida para se transformar em um espetáculo.
Para as duas cenas curtas, eu e o Gui fizemos todo o trabalho de atuação, dramaturgia e direção, contando com a orientação cênica da diretora Cida Falabella, reconhecida por seu trabalho de teatro realidade.
Fomos os selecionados para a criação do espetáculo e estreamos no dia 1 de maio de 2015. No espetáculo, em alguns momentos, invertemos os papéis. A ideia da inversão entre homens e mulheres cumpriu (e vem cumprindo) a tarefa de distanciar a análise viciada do assunto para algo simples, mas instigante -– colocar-se no lugar da(o) outra(o). Outros caminhos surgiram -– a performance, a utilização de depoimentos e cenas que ressaltam o absurdo da cultura machista.
A construção do espetáculo trouxe toda a multiplicidade do tema. As mulheres na nossa sociedade são cerceadas de muitas formas, tão numerosas quanto complexas. Para não nos perdermos e não perdermos o foco, optamos por um recorte do assunto: tratamos das formas de violência a que a mulher está submetida, e da estrutura que dá terreno para que esta violência esteja enraizada e cresça. Além disso, homenageamos ilustres mulheres que se dedicaram a quebrar regras ultrapassadas e ampliar nossa consciência sobre nós mesmxs, como Frida Kahlo, Simone de Beauvoir, Leila Diniz, Rosa Parks e Malala.
Durante a temporada, estamos percebendo, com mais potência, a real importância do assunto. Percebemos que o espetáculo está cumprindo sua função de provocar reflexões e sensibilizar o público para a questão. Ao final das apresentações, pedimos ao público que preencha o nosso cadastro. Todos os dias, várias pessoas nos escrevem, agradecendo, contando suas experiências e propondo mais reflexões (afinal de contas, e infelizmente, não conseguimos atender toda a demanda sobre o machismo em um espetáculo de apenas 55 minutos), e a partir do olhar do público, buscamos suprir outras questões que antes, ou não tínhamos nos atentado para elas, ou não havíamos encontrado espaço para expô-las.
No princípio, o incômodo foi nossa válvula propulsora, hoje, podemos dizer que o contato com o público e a percepção de que essa violência está longe de ter fim, nos move em busca de, não apenas cumprir temporadas com o espetáculo, mas de conseguir atingir o maior número possível de pessoas para que possamos, juntos, refletir e questionar a cultura machista e patriarcal em que vivemos, onde milhares de mulheres são violentadas, espancadas, estupradas e mortas todos os dias.
É importante dizer: o choque que propomos não é de mulheres contra os homens. Não estamos aqui para nos separar. O choque é contra um pensamento que limita a liberdade humana, mas principalmente, a liberdade das mulheres. O choque -– sem violência -– é para que haja o encontro.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

GORDA, A PEÇA. RAPAZES QUE ODEIAM GORDA, AS PEÇAS

Fat Pig em Nova York. Agora no Rio também.

Tem uma peça chamada Gorda em cartaz no Rio que eu gostaria muito de assistir. O texto é do cineasta americano Neil Labute, que volta e meia faz filmes polêmicos como Na Companhia dos Homens, Enfermeira Betty, e seu mais recente (e não muito bom) O Vizinho. Sua primeira obra, Na Companhia dos Homens (1997), ainda hoje é um modelo de cinema independente, sobre dois executivos que decidem, só de sacanagem, seduzir e brincar com os sentimentos de uma mulher surda. O filme é cruel, e uma bolada de gente o considera misógino, mas eu não. Pra mim, ele é misantropo, contra os homens, as corporações, o espírito competitivo que é a chave de tantas “amizades” entre marmanjos. Não contra a moça surda, de jeito nenhum. Eu gosto pacas de Na Companhia e nem sabia que era uma adaptação do Labute de uma peça que ele próprio escreveu. Aliás, nem sabia que o Labute era dramaturgo. Faz sentido, porque seus diálogos são sempre marcantes.
Essa peça em cartaz no Rio, que no original chama-se Fat Pig e vem sendo encenada em vários países, tem um tema bem universal nesses tempos de obsessão pelo padrão único de beleza: o preconceito contra as gordas. Fala de um rapaz que se apaixona por uma bibliotecária bem acima do seu peso ideal. A moça se aceita como ela é e não tem vergonha do seu corpo, mas os amigos do rapaz não o deixam em paz por ele namorar a base mais baixa da pirâmide social, uma gorda, eca! Pra quem é gorda e bem resolvida, como eu e tantas leitoras, chega a ser engraçado ouvir algo assim. Porque quem cresceu gorda ouviu milhares de vezes que nenhum homem vai nos querer assim. As almas mais gentis ainda dizem: “Você tem o rosto tão bonito, só falta emagrecer”. E tudo isso, toda essa opressão, é pro nosso próprio bem, lógico, pra que a gente saiba que está gorda e tome uma atitude. Pô, obrigada! Se ninguém falasse, eu jamais notaria que estou gorda! E se discriminar as pessoas as fizesse mudar, não haveria gordos no mundo. E nem baixinhos, nem velhos, nem gays, nem negros, nem mulheres, nem portadores de deficiência física (a lista é longa). Mas o que é engraçado é que, mesmo ouvindo que vamos morrer sozinhas (e cedo, estamos com um pé na cova, é só uma questão de tempo), a maior parte de nós tem namorado ou marido (ou namorada, mas como minhas amigas lésbicas me contam que lésbica tem muito menos preconceito contra gordas que os homens héteros, vamos falar dos machinhos). Ué, mas não nos avisaram que ninguém em sã consciência vai se aproximar de nós, até porque gordura deve ser contagiosa? E aí a gente encontra uma pessoa legal (ou mais de uma, já que estudos mostram que gordas fazem mais sexo que magras. O quê? Como pode ser?! Mentiram pra gente?), que gosta da gente como a gente é, que de repente até gosta de mulheres cheinhas, ou que simplesmente vê outras qualidades mais importantes na gente do que aparência física.
Os carinhas que odeiam gordas não se dão por vencidos: correm pra sacanear os homens que têm esse fetiche, essa tara por gordas (incrível é que sentir atração sexual por esqueletos ambulantes como os que a gente vê nas passarelas não é fetiche, é normal). Não se sabe bem por que alguns rapazes odeiam tanto as gordas. É por que uma mulher não deveria ousar ter um formato de corpo que não os excita, já que nossa função na vida é unicamente causar ereções em metade da humanidade? Ou é porque insultar gordas é um tipo de male bonding, um jeito de criar laços afetivos com outros machos preconceituosos? Se eles não fossem pra cadeia por racismo, ainda estariam xingando negros. Mas ninguém jamais foi preso por insultar uma gorda, então tudo tranquilo, vamos continuar a trollagem.
Outro dia li por alto um post no blog de um escrotossauro que dizia que toda mulher é chata, e que eles, homens machões, só ficam com elas porque são guiados pelo pênis. Mas que é justamente por isso que toda gorda é mais chata ainda: como ela não atrai o trollzinho sexualmente, ele não precisa perder tempo com ela. Pode destratá-la sem dó. Aí, no twitter de outro humanista, o sujeito dizia que toda gorda tem que se ferrar (não com essas palavras), e que gorda merece morrer. Por quê? Ele não diz, mas seu interlocutor dá uma dica: “Eu nunca vou comer uma gorda, não encontrei meu pinto no lixo”. Ahá! Então esse ódio às gordas é porque o pintinho do cara não subiu? E a culpa é nossa, claro, de quem mais!
Evidentemente que esses rapazes não são apenas gordofóbicos, mas também racistas, misóginos, homofóbicos (e, por coincidência, de direita). Ainda não largaram o jardim de infância, quando se divertiam chamando o coleguinha que ousava usar óculos de “quatro olhos”, ou sei lá que tipo de bullying se usa hoje em dia. E lógico que esses tipinhos são mais populares na internet que os blogs e twitters que lutam contra os precoceitos. Porque os reaças martelam lugares-comuns, e muita gente não quer pensar. Quer apenas um tapinha nas costas dizendo que seus pensamentos preconceituosos continuam aceitos, apesar dessa asquerosa onda do politicamente correto, argh, que prega que a gente deveria ser respeitoso com os outros e pensar um tiquinho antes de falar besteira.
Então. Eu li no blog da Marina que ela foi ver a peça, Gorda, e gostou. Mas que ficou chocada ao perceber como o público ria na hora em que um personagem beijava ou xingava a gorda. O que pra muita gente seria dramático, pra parte dos espectadores era motivo de riso, de identificação. Bom, isso não é novidade. Rir às vezes funciona como válvula de escape (quem não pegou gente rindo nervosamente em Brokeback Mountain levante a mão). E às vezes funciona como forma pra uma comunidade se unir: nós todos rimos porque detestamos gordas, ha ha. Mas fica a esperança que, mais tarde, voltando pra casa, longe da matilha e da claque, esse espectador individual se pegue pensando em quem é o verdadeiro idiota da peça: a mulher gorda, que vive a sua vida sem atrapalhar ninguém? O carinha, que cogita deixar de amar quem ama porque a pressão dos amigos fala mais alto? Ou os amigos do carinha, que não têm vida pessoal, se divertem ofendendo os outros e funcionam como patrulheiros da normalidade?
Quem mora no Rio, por favor, vá ver a peça e me conte. Tem o blog da peça aqui também, com uma pergunta sugestiva: “Quanto pesa o amor?”. Tem peso? Tem preço?

quinta-feira, 4 de junho de 2009

UM EXEMPLO DE UMA MONTAGEM EQUIVOCADA DE MACBETH

Eu e meus amiguinhos num lindo museu em La Plata, Argentina.

Em outubro, estive em um congresso internacional em La Plata, uma cidade argentina perto de mi Buenos Aires querida. Foi tudo ótimo, mesmo que o trânsito da cidade meta medo. Sabe como é você pensar que será atropelado a cada vez que atravessa a rua? Pois é, com argentino dirigindo é assim. Pior é que com brasileiro também. Mas não é sobre isso que eu quero falar. O congresso foi um estouro. A ideia foi do meu orientador, que era um dos principais palestrantes, aquele que fecha o congresso. Ele incentivou que seus orientandos de mestrado apresentassem seus projetos por lá, e aí me convidou pra ser moderadora da mesa redonda. Eu acabei apresentando o meu projeto também, o que é um pouco estranho, porque já passei dessa fase de projeto faz um tempão. Mas a gente foi muito aplaudida, todos vieram nos parabenizar, disseram que éramos um exemplo pros alunos argentinos seguirem (chique!), e já nos convidaram pra dois outros congressos nos próximos dois anos, um em Mendoza, outro em Córdoba (mais chique ainda!). Ou seja, recepção mais calorosa, impossível. Valeu muito a pena ter ido lá.
Mas também não era sobre isso que eu ia falar. É que, durante o congresso, houve uma apresentação de uma montagem teatral de uma peça shakespereana. E logo qual? Macbeth! Não era nada amador, era num teatro lindo, e ela já vinha se apresentando há alguns meses. Eu tava super ansiosa pra ver uma montagem logo do meu objeto de estudo no doutorado, e em espanhol! O problema é que ela era péssima. Você não tem noção da ruindade do espetáculo. Nada funcionava. Cheia de erros conceptuais. Ok, sei que tudo é questão de interpretação, mas as pontas têm que fechar um tiquinho. A interpretação precisa ser coerente. Não pode desvirtuar totalmente o texto. Por exemplo, em 2006, em Curitiba, vi uma montagem fantástica chamada Otelo da Mangueira. Era Otelo, lógico, mas transformado num musical, com canções da Mangueira. E foi simplesmente extasiante. Todo mundo amou. Mas esse Macbeth argentino... Primeiro que acho que tentaram transformar uma tragédia numa comédia. Até aí sem problemas, adaptações estão aí pra isso. Mas se o negócio não faz rir, fica ruim. O chato é que nossa mesa redonda no congresso foi na manhã seguinte ao espetáculo, e como eu expus meu projeto sobre violência em Macbeth, alguém no público perguntou o que eu tinha achado da montagem. E aí sabe quando você não quer falar mal, quer ser diplomática? Olha, não foi fácil. Eu tive que me virar com a linha “Há qualidades”, sem deixar de apontar, por cima, os defeitos. Minha resposta rapidinho se espalhou pelo congresso.
No dia seguinte, o diretor e a produtora da montagem apresentaram eles mesmos um trabalho discorrendo sobre seu Macbeth, e aí, na hora das perguntas, eu achei que tinha o direito de questionar algumas escolhas. Tudo em espanhol (no meu caso, portunhol)! Tipo, por que o Banquo, melhor amigo de Macbeth, é retratado como um tarado na montagem? É até compreensível que ele estupre a bruxa que lhe conta as profecias (é uma interpretação válida, imagino; afinal, as mulheres eram cidadãs de terceira classe), mas por que, ao falar de Lady Macbeth, ele faz um gesto imitando um boquete? Olha o que o diretor, muito arrogante, respondeu: que no texto o Banquo pergunta pras bruxas “Que uso vocês têm?”, e ele levou isso pro lado sexual. E que o Polanski também sugeria que as bruxas eram estupradas, já que elas aparecem nuas. Oh my God, fiquei de cara com esse machismo! Só porque uma mulher aparece nua ela tem que ser estuprada?
Sobre o filme do Polanski, é o seguinte: ele o fez em 1971, pouco tempo depois de sua mulher grávida, a atriz Sharon Tate, e mais quatro amigos, terem sido barbaramente assassinados pela gangue do Charles Manson na mansão de Polanski em Hollywood (o diretor estava na Inglaterra). Polanski achava, erroneamente, é óbvio, que filmar uma peça de Shakespeare afastaria comparações com a tragédia da sua vida real. Ele conseguiu financiamento da Playboy, e isso também pegou mal. Os críticos da época, machistas que só eles (não muito diferentes dos de hoje), cismaram que a Lady Macbeth aparece nua na cena do sonambulismo pra agradar o dono da Playboy, Hugh Heffner. É ridículo, porque não dá pra ver nada da sua nudez (seu cabelo cobre tudo). Eles também invocaram com a cena do covil das bruxas, em que elas estão nuas (mais de um crítico disse que a cena era chocante e asquerosa, porque, sabe, corpo de mulher nua que não seja coelhinha da Playboy é nojento). E um menino também está nu numa cena, enquanto sua mãe lhe dá banho. Nenhuma dessas cenas é gratuita ou apelativa, e sua intenção parece ser a de unir todas essas personagens, destacando sua vulnerabilidade.
Mas o diretor da montagem argentina, por ser homem, interpretou que as bruxas nuas no filme do Polanski denotam sedução, e por isso fez com que Banquo estuprasse uma delas. Ué, o que sedução tem a ver com estupro?
Eu perguntei se a intenção da montagem era ser cômica, e ele disse que não exatamente, mas que ele usou elementos cômicos pra acentuar a tragédia, como Shakespeare faz em todas as suas peças. Certo, isso se chama comic relief (alívio cômico), no que o velho Shake é mestre. Mas Macbeth é famosa por ser praticamente livre de comic relief. Na peça inteira, há só um momento de alívio, quando o porteiro do castelo de Macbeth atende a porta e se diz "porteiro do inferno". Talvez por isso Macbeth seja a peça mais densa e compacta entre a vasta produção shakespeareana. O diretor argumentou comigo que a cena do massacre da família do Macduff é cômica, já que é ridículo, segundo ele, que a mulher seja advertida que estão vindo matar todo mundo, e ela fica lá, parada. Putz, você acha engraçado ou patético, no sentido de gerar pena, que ela diga “Mas eu não tenho para onde ir”? Ou que ela afirme pro seu interlocutor, “Mas eu não fiz nada”?
Na montagem argentina, Lady Macbeth diz que está grávida. Isso não está no texto, mas é uma possibilidade - inclusive, Kurosawa adota essa estratégia em Trono de Sangue, filme de 1957. Só que não dá pra só jogar esse dado e deixar por isso mesmo. Tem que ir além. Essa novidade tem que servir algum propósito. Senão, porque inclui-la? Em Trono, Kurosawa faz isso como uma tentativa de Lady Macbeth de acalmar a loucura de seu marido (e ela está grávida de verdade, não está mentindo). Com ela grávida, Macbeth terá um herdeiro; logo, não precisará matar Banquo e seu filho. Mas na montagem argentina Lady aparece tramando o assassinato de Banquo. E o diretor, pra se explicar, disse que, no texto do Shake, a Lady está por trás de todas as mortes! Não está, não. É textual: ela pergunta o que Macbeth está tramando, e ele responde “melhor não saber de nada”.
Também questionei por que, na montagem, a Lady parece meio louca desde sua primeira aparição no palco, muito antes do assassinato de Banquo (porque isso prejudica o desenvolvimento da personagem), e o diretor respondeu que a intenção era mostrar a Lady como se fosse uma criança. Hã?
O debate foi interessante, mas fiquei abismada em como o cara interpretou mal Shake, Polanski, Kurosawa, e quem mais apareceu pela frente. Ao mesmo tempo, não quis ser tão dura, porque sei que tem muito esforço, dinheiro e dedicação numa montagem dessas. E é chato uma pessoa vir de um outro país pra falar mal de algo feito no país anfitrião. No entanto, eu queria dar o meu feedback, até porque é raro a gente estar numa posição em que é especialista em alguma coisa. O diretor ficou espumando, mas pouco depois a produtora veio falar comigo e, muito simpática, me abraçou e agradeceu as críticas. Bom, eu sabia que não era a única a ter detestado a montagem, mas não sabia se alguém iria querer ouvir o porquê.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

MINHA TESE DE DOUTORADO É SOBRE MACBETH

Vera Fischer e Antonio Fagundes no Macbeth de Ulysses Cruz.

Eu sempre amei teatro, mas da maneira errada. “Ué, existe maneira errada?”, você pode perguntar. Existe. É que eu sempre fui mais de ler peças de teatro que de assisti-las, e os autores não as escrevem para serem lidas, e sim encenadas. Há até uma categoria de teatro que é bem isso, peças para serem lidas, mas esse não é o caso da enorme maioria. A questão é que o texto é apenas uma partezinha de uma produção teatral, e há inúmeras outras, como as atuações, a iluminação, os cenários, a música, os figurinos, a marcação de cena, e inclusive a interpretação/leitura que a equipe faz daquele texto. Claro, ninguém tá me proibindo de continuar lendo as peças que tanto adoro do Chekov, O'Neill, Tennessee Williams, Arthur Miller, Nelson Rodrigues, Ibsen, Edward Albee, Shaw, Peter Shaffer, Beckett, Strinberg, focles, Shakespeare etc, mas é bom eu ter em mente que só ler a peça equivale a plantar uma sementinha e não deixá-la crescer muito, como se fosse um bonsai. Ela não atinge seu potencial de virar uma bela árvore frondosa.
Samantha Monteiro e Luis Melo em Trono de Sangue do Antunes.

Apesar de eu amar teatro desde que me conheço por gente, nunca imaginei que estaria fazendo um doutorado em Shakespeare. Ok, é ridículo dizer que meu doutorado é nisso, já que o velho Shake escreveu 39 peças (e sim, ele existiu mesmo; hoje em dia não há mais dúvidas a respeito), e eu estou falando de somente uma. E nem posso dizer que meu doutorado seja sobre Macbeth (que desde sempre foi minha peça shakespeareana favorita), porque é “só” sobre a violência e o uncanny (o conceito do bizarro, de algo que é estranho e familiar ao mesmo tempo) em Macbeth. E nem é sobre o texto em si, e sim sobre cinco produções da peça, uma britânica, de 1976, com os superdupers Ian McKellen e Judi Dench, duas brasileiras, ambas de 92 (uma com o Antonio Fagundes e a Vera Fischer; a outra do Antunes Filho, com o Luis Melo), e dois filmes - um do Polanski, de 71, e uma adaptação independente de 91, chamada Homens de Respeito, com o John Turturro.Jon Finch e Francesca Annis no Macbeth do Polanski.

Em linhas muito gerais, eu analiso como a violência em cinco momentos cruciais da peça é encenada em cada uma das produções, se dentro ou fora do palco/tela. Minha inspiração foi Cães de Aluguel, do Tarantino. Sabe aquela cena da tortura do policial, em que o Michael Madsen dança e corta a orelha de um tira amarrado, e a gente tem certeza de ter visto a cena mais sangrenta, chocante e horrorosa de nossas vidas, daquela de fechar os olhos mesmo? E aí a gente revê o troço e percebe que o Taranta deliberadamente faz a câmera filmar uma parede! Ele não mostra nada! A gente ouve os gritos e tal, mas não vê as imagens. Acontece que ninguém nota esse “detalhe” na primeira vez. A nossa imaginação se encarrega de fantasiar algo ainda mais atroz do que as imagens poderiam exibir.
Katherine Borowitz e John Turturro em Homens de Respeito.

Macbeth é um prato cheio pra se falar disso, porque a peça, embora curtinha, é ultra violenta, com um assassinato depois do outro. Ela se passa na Escócia no século 11, e Macbeth, general e braço direito do rei Duncan, ouve de três bruxas uma profecia que será rei e, que seu amigo, Banquo, outro general, será pai de uma longa linhagem de reis. Balançado pelas boas novas, Mac escreve uma carta pra sua amada esposa, Lady Macbeth, contando-lhe tudo. Mas o rei nomeia seu filho Malcolm pra ser o próximo na sua sucessão, o que faz Mac pensar sobre como ele precisará agir pra virar rei. Sua Lady insiste para que o marido dê cabo a seus planos de matar Duncan. Quando ele pensa em desistir, ela questiona sua masculinidade. Finalmente, o casal (que se ama e não tem herdeiros) decide aproveitar uma passagem de Duncan pelo castelo deles para matá-lo.Ian McKellen e Judi Dench no Macbeth de Trevor Nunn.

É Mac que faz tudo; a Lady apenas embebeda os guardas, e, mais tarde, depois que Macbeth se esquece de deixar as espadas ensanguentadas com eles, volta ao quarto e arma isso. Ela diz que ela mesma mataria o rei se ele não a fizesse lembrar tanto de seu pai, mas quem o mata de fato é Mac. Malcolm, temendo pela própria vida, foge pra Inglaterra, e Macbeth vira rei. Na vida real, Macbeth reinou durante uns vinte anos, e só alguns desses anos foram conturbados e violentos, mas Shakespeare condensa toda a ação em poucos momentos. Mac manda matar Banquo e seu primogênito, com medo que a outra profecia se concretize. Ele tem uma ataque epiléptico num banquete, onde imagina que o fantasma de Banquo está presente. Ele e Lady vão se separando cada vez mais, porque ele não compartilha nada com ela, e ela é consumida pela depressão e pela culpa. Quase toda noite, ela, sonâmbula, tenta tirar de suas mãos o sangue de Duncan. Enquanto isso, Macbeth, preocupado, volta a falar com as bruxas, que lhe dizem que ele só será derrotado quando a floresta chegar ao seu castelo, e que só um homem que não tenha nascido de mulher pode matá-lo.
Trono de Sangue do Antunes.

Mac sente-se aliviado, porque não imagina que essas coisas possam ocorrer, mas mesmo assim, gratuitamente, sem nenhum motivo, ordena que seus capatazes assassinem a família de Macduff (um nobre que havia sido fiel a Duncan e que estava na Inglaterra com Malcolm). Na cena do texto de Shake, o filhinho de Macduff é morto no palco, e a mãe sai correndo, com seus algozes atrás dela - uma cena terrível, onde vemos a morte de uma criança e de uma mulher que não têm nada a ver com a história. Malcolm e Macduff, com a ajuda do exército inglês, decidem invadir o castelo de Macbeth para derrubar o tirano. Como estratégia de combate, eles mandam que cada soldado pegue um galho da floresta para se camuflar, o que dá a impressão que a floresta está se mexendo, concretizando uma das profecias. Lady Macbeth, alheia a tudo isso, cada vez mais insana, se suicida. Quando Macbeth é notificado da sua morte, segue-se um dos monólogos mais famosos da língua inglesa: Ian McKellen e Judi Dench no Macbeth de Trevor Nunn.

Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow,
Creeps in this petty pace from day to day,
To the last syllable of recorded time;
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life's but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.
Antonio Fagundes como Macbeth na montagem de Ulysses Cruz.

Quem sou eu pra traduzir Shake? Vou aproveitar a tradução da montagem do Ulysses Cruz:
Amanhã, o amanhã, outro amanhã avança
Dia após dia, até a última sílaba da memória;
E os nossos ontens deixam para os tolos
A estrada empoeirada da morte. Apague-se, candeia transitória!
A vida nada mais é do que uma sombra que passa,
Um pobre ator que gesticula em cena durante algumas horas
Depois ninguém vê mais. A existência,
Uma desesperada istória contada por um louco,
Cheia de som e de fúria,
Significando nada.
"Macbeth" e as três "bruxas" em Homens de Respeito.

Lindo, não? Por isso que o Shake é vangloriado e que Faulkner intitulou um de seus melhores romances O Som e A Fúria. Porém, continuando, Macbeth luta, mata um ou outro soldado, e quando chega a hora de enfrentar Macduff, este lhe confidencia que nasceu de uma cesareana (não de mulher, sacou?). Mac fica com medo mas acaba lutando, e Macfuff o mata. A peça termina com Malcolm sendo coroado rei, com a cabeça de Macbeth exposta pra que todos vejam o destino dos traidores.
Vera Fischer e Paulo Goulart como Duncan no Macbeth de Ulysses Cruz.

Bom, aí é tudo uma questão de interpretação, certo? E ela muda de acordo com o lugar e a época em que a peça é montada. Tipo, por que temos que enxergar Macbeth como ditador sanguinário que aplica um golpe de estado, e Duncan e Malcolm como reis legítimos? Desde quando existiam reis bonzinhos, ainda mais na Idade Média? Praticamente todas as montagens atuais terminam sugerindo que Macduff também será picado pela ambição, derrubará Malcolm e se tornará rei. Ou seja, que a violência não começa ou acaba com Macbeth, mas é fruto de todo um sistema.
Agora, sabe uma interpretação que detesto? A de que Lady Macbeth é a déspota da história! Essa é uma visão muito machista, a meu ver. São os homens que guerreiam, ficam se matando uns aos outros, governam, mandam matar mulheres e crianças, e aí a culpa é toda da Lady?! Como? A gente pode dizer que ela é tão responsável por convencer Macbeth a matar Duncan como as bruxas são responsáveis. Se elas não tivessem feito a profecia, a ambição de Mac não viria à tona (antes, inclusive, d'ele compartilhar o segredo com sua esposa).
As bruxas do Macbeth de Polanski encontram-se na praia.

Não há nenhum consenso sobre as bruxas, se elas são mulheres de carne e osso (pro Polanski, são
) ou espíritos, se elas realmente podem ver o futuro ou se elas apenas refletem o que Macbeth quer ouvir. Quanto à Lady, ela participa apenas do primeiro assassinato, como cúmplice. Em seguida, Macbeth a exclui de todos os outros. Um dos motivos que muitos estudiosos apontam pra sua loucura é essa exclusão, ela passar a ficar tão à margem dos acontecimentos. Ela quer governar junto, mas Mac não permite. Ele comanda toda a carnificina sozinho. Ela se arrepende de ter instigado a matar Duncan, enlouquece, se suicida, e ela é a vilã?! Conta outra!
Judi Dench e Ian McKellen no Macbeth de Trevor Nunn.

Nada disso faz parte diretamente da minha tese, mas faz parte da minha verve feminista. Afinal, Lady Macbeth sempre foi a minha personagem feminina preferida do universo de Shake. Mesmo que - tenho que concordar com meu orientador, um dos maiores especialistas em Shakespeare no país - Cleópatra seja mais completa.
Ah, talvez você esteja boquiaberta(o) por um bloguinho tão pouco erudito como este estar mencionando Shakespeare. Mas lembre-se que, 400 anos atrás, quem prestigiava as peças dele não era a elite, e sim o povão. E aí, posso falar um tiquinho mais depois? Deixa?Samantha Monteiro no Trono de Sangue de Antunes Filho.